Do real ao imaginário

Por Sílvia Santos Assis de Jesus | 19/05/2014 | Literatura

SÍLVIA SANTOS ASSIS DE JESUS

Graduada em Letras com francês, Pós graduanda em Estudos Literários pela Uefs (Universidade Estadual de Feira de Santana).

 

DO REAL AO IMAGINÁRIO: UMA LEITURA DO ROMANCE “A CONFISSÃO DE LÚCIO” DE MÁRIO DE SÁ CARNEIRO

 

RESUMO

O presente artigo realiza uma leitura do romance “A confissão de Lúcio” (1914), de Mário de Sá Carneiro, ao mesmo tempo que objetiva fazer uma análise da realidade vivenciada pelo protagonista Lúcio Vaz e o enredo fictício criado pela mente humana. É uma obra repleta de idealizações e incertezas que conduzem o leitor a fazer indagações da veracidade dos fatos relatados e a abraçar o mundo dos sonhos, erigido com o auxílio do transbordamento das sensações, devido ao excesso imagético utilizado por Mário de Sá Carneiro.

 

A MEMÓRIA ENTRE O REAL E O IMAGINÁRIO NA CONFISSÃO DE LÚCIO

 

Situado na época do Modernismo português, o poeta Mário de Sá Carneiro nasceu em 1890 em Lisboa. Filho único de pai rico e órfão de mãe desde dois anos de idade, Mário de Sá juntamente com seu melhor amigo Fernando Pessoa colaboraram na fundação da revista Orpheu.

Mário possuía uma enorme incapacidade de adaptação ao mundo moderno e isso era claramente denunciado em suas obras, pois podemos perceber que os seus inscritos versam sobre temas como: o suicídio, o amor pervertido e a anormalidade, chegando ao ponto da loucura.

Para alguns estudiosos de sua obra, Mário ousou correr o risco de encarnar a imaginação na vida ao ponto de converter toda a realidade em realidade poética. Segundo Perrone-Moisés, o drama que está na origem de suas narrativas, como de seus poemas, é o do desdobramento narcísico da personalidade.

 

Raramente, na literatura, o narcisismo foi levado a tais excessos. Em sua poesia, Sá-Carneiro dirige versos às suas próprias mãos,” brancas e lindas”; nos contos, os heróis beijam suas próprias imagens nos espelhos, prodigam a eles mesmos carícias e palavras ternas. Na vida, Sá-Carneiro sofria por ser gordo e ter traços vulgares, por não se achar fisicamente à altura de sua Alma e de seu Gênio (PERRONE MOISES, 2000, p.165).

 

A Confissão de Lúcio é uma obra narrada em primeira pessoa sendo o protagonista o escritor Lúcio Vaz. Toda a história desta narrativa é contada por Lucio que acaba de cumprir dez anos de prisão por um assassinato que segundo ele não cometeu. E somente agora ele decide fazer sua confissão explicando todas as circunstâncias do assassinato de seu amigo demonstrando total inocência.” E são apenas fatos que relatarei. Desses fatos, quem quiser, tire as conclusões. Por mim declaro que nunca o experimentei. Endoideceria, seguramente.” (SÁ-CARNEIRO,1995 p.352)

O enredo dessa narrativa é todo baseado na memória do escritor Lúcio Vaz. É interessante como o protagonista busca nas palavras e nos fatos ocorridos ou não, um elemento para a comprovação de sua inocência e ao mesmo tempo acusação, pois a confissão de Lúcio por diversos momentos deixa fatos obscuros e confusos, gerando uma incerteza nos acontecimentos destes.

Constitui-se como uma obra muito complexa com contradições, ambiguidades, incoerências e mistérios. Mário deixou aflorar todo o seu poder imaginário no intuito de provocar no leitor uma série de questionamentos que ficam sem respostas possíveis.

Lúcio Vaz faz uso da memória para relatar essa história que teve um desfecho trágico. No entanto é importante ressaltar que toda essa narrativa se constitui uma história vivenciada por mais de uma pessoa. Desta maneira, por que somente é evidenciado as observações de Lúcio? Por que os demais personagens envolvidos no romance (exceto a figura de Ricardo e Marta) eram vistos de forma depreciativa por Lúcio? Em que mundo esse protagonista vivia ao ponto de excluir todos os outros seres humanos e se importar somente com duas pessoas?

 Em seus estudos sobre Mário de Sá-Carneiro, Leyla Perrone-Moisés declara sobre alguns defeitos no romance em questão:

 

 

A Confissão de Lúcio (1914) e nos contos de Céu em fogo (1915) obras em que abundam as cenas melodramáticas e estereotipadas, os estados de alma raros ditados por modelos estéticos, as preciosidades estilísticas por vezes terrivelmente datadas. Tais defeitos nos inclinariam a considerar essa obra como farsa, artificial e mal-acabada. Ora, pela realização efetiva de uma de suas fantasias, no ato mais verdadeiro e definitivo que pode haver, Sá-Carneiro nos impõe uma suspensão de julgamento. Quase todos os seus contos terminam de modo decepcionante. O desenlace nunca está à altura das expectativas criadas, a conclusão é frequentemente substituída por enigmáticas exclamações ou por reticências (PERRONE-MOISÉS, 2000 p.163).

 

Considerando tais defeitos elencando por Perrone-Moisés, torna-se difícil ter uma interpretação como sendo a única correta desse romance, pois não se pode dizer ao certo até que ponto o próprio Lúcio está fazendo uso da razão e do seu imaginário para narrar toda sua amizade e história com Ricardo de Loureiro, o seu amigo que foi morto, e Marta, a sua suposta esposa.

No início da narrativa percebe-se que o poeta não tinha amigos, andava vagando no seu mundo imaginário, no entanto, ao decorrer do romance é observável um crescente laço de amizade entre ele e Lúcio Vaz. Essa amizade vai gradativamente se estreitando e chega ao ponto de se confundirem um com o outro, se considerando “companheiros inseparáveis” e se tornando “amigos íntimos”, conforme afirma Ricardo: “Não pode imaginar, Lúcio, como a sua intimidade me encanta, como eu bendigo a hora em que nos encontramos” (SÁ –CARNEIRO, p.376, l.13).

Percebemos a partir daí que Mário de Sá direciona o leitor a uma interpretação ambígua de sua obra, pois fica evidente a existência do homoerotismo como uma marca visível. Os dois amigos se tornaram íntimos que não existia mal-entendidos, nem “quase” segredos. No entanto, após estabelecer uma relação profundo de amizade com Lúcio, Ricardo deixa aflorar uma personalidade até então desconhecida por seu amigo. Personalidade essa que transportava Ricardo para um mundo bem distante do real, um espaço criado por sua imaginação que divergia totalmente da realidade vivida e se misturava com seus textos literários.

Nessa perspectiva Mário de Sá Carneiro coloca todo o seu potencial poético fora dos limites da experiência possível, permitindo, desta maneira, o pleno jogo da imaginação sobre o real. Ele faz da figura de Ricardo, um sujeito que se diferenciava dos outros pela sua incapacidade de ser amigo de alguém, mas ao mesmo tempo se apoiava na amizade de Lúcio Vaz por que para ele “a amizade máxima traduzir-se–ia unicamente pela maior ternura. E uma ternura traz sempre consigo um desejo caricioso: um desejo de beijar... de estreitar... Enfim: de possuir” (p. 376, l.25).

Ao consolidar sua amizade com Lúcio Vaz, Ricardo permite a transparência de alguns desejos estranhos de sua mente, e vai elencando-os com muita facilidade: desejava ardentemente ser mulher “para que, num encantamento, pudesse olhar as minhas pernas nuas, muito brancas, a escoarem-se, sob um lençol de linho” (p.375, l. 29).

Era muito recorrente esse desejo de Ricardo em se transformar no belo corpo de uma mulher ou à possibilidade de mudança de sexo. Com essa revelação, o autor reforça o mistério que envolve a existência da personagem Marta durante todo o enredo, elemento que funciona como forte indício dessa figura ser apenas uma imagem fictícia, criada por uma mente fértil, para uma possível fuga da realidade. 

Nesse contexto, entra novamente o imaginário, o irreal. E desta forma surgem os questionamentos: Será que existiu uma amizade verdadeira entre Lúcio e Ricardo ou foi somente uma projeção dos desejos carnais um do outro? E Marta, será que ela realmente existiu?

Ao que parece, Ricardo projetou seus desejos na figura imaginária de Marta e através disso conseguiu possuir o corpo do amigo como uma recompensa por sua amizade. E não muito diferente Lúcio se deixou iludir por essa imagem e mergulhou em um mundo fantasioso, tornando-se amante da mulher do seu melhor amigo.

No entanto, a identidade de Marta era um mistério que atormentava Lúcio e embora já tivessem se tornados amantes, ele nunca conseguia obter dela uma confidência que lhe desse a certeza de sua existência, permanecendo o enigma que reforçava ideia da inexistência daquela mulher quo o atormentava constantemente.

Não era com efeito o mistério que encerrava a mulher do meu amigo que, no fundo mais me torturava. Era antes esta incerteza: a minha obsessão seria uma realidade, existiria realmente no meu espírito; ou seria apenas um sonho que eu tivera e não lograra esquecer, confundindo-o com a realidade? (SÁ CARNEIRO, 1995, p.382, l.37).

Lúcio se sente completamente dominado pelo mundo fictício que a todo tempo ele confundo Ricardo e Marta, como se eles fossem uma mesma identidade. Sua mente está tão presa nesse mundo imaginário que no momento de seu relato sua memória não consegue elucidar a existência dessa mulher que o deixou enlouquecido e anestesiado de prazer.

Em torno dessa crise existencial da figura de Marta, a memória de Lúcio o impede a criar de criar um mundo de ilusões, transportando-o para uma “realidade” interior que predomina o vazio do mundo onde vagueia um” eu” incompleto e inconsciente, impulsionando-o a relatar os seus desejos sem um compromisso firmado na verdade.

No final da narrativa percebe-se que a figura de Marta desaparece misteriosamente da mesma maneira que aparece não início, dando uma ideia de que ela era apenas um fruto das idealizações das mentes de Ricardo e Lúcio. O que impulsiona o leitor a fazer muitas indagações acerca dessa terceira personagem.

Nesse sentido, Mário de Sá elucida na figura de Marta personificação de seus desejos, projetando a existência num plano de existência-imagem que se manifesta no excesso imagético que segundo Gomes (1994) expressa o desejo de “eu” expatriar-se, para se livrar do espartilho da pequenez humana.

Segundo alguns estudiosos como Gomes (1994) e Perrone-Moisés (2000), Mário de Sá vivia em constante crise que refletia em seus personagens, chegando ao ponto de ser criado outro eu como forma de inadaptação ao mundo real.

A crise de Sá-Carneiro, mesmo em sua melhor expressão literária, permaneceu no terreno psicológico individual. Como uma mosca presa entre dois vidros, ele buscou uma saída impossível entre o “eu” e o “ideal do eu”. Daí a constante dualidade de sua personalidade poética e de suas personagens de ficção (PERRONE-MOISÉS, 2000, p.166).

Mário de Sá é um poeta que ansiava um enorme desejo de ultrapassar a realidade vivida e vivenciar um espaço fictício onde as sensações e pensamentos configuravam-se um mundo ideal e possível de se habitar. Nessa perspectiva, vários elementos compõem o romance em questão, a narrativa se encontra mergulhada em um mundo imagético, brincando constantemente com a análise interpretativa do leitor ao tempo em que o leva a um lugar de incertezas quanto a inocência do narrador, transportando-o para um espaço que somente é possível experimentar através das narrativas metaforizadas e carregadas de imagens poéticas do escritor Mário de Sá-Carneiro.

Desta maneira, Mário de Sá Carneiro parece brincar com o leitor, deixando-o em constante dúvida se os fatos relatados por Lúcio Vaz foram reais ou simplesmente eram frutos imaginários da sua mente. Assim, o escritor busca utilizar elementos estratégicos que funcionam como dispositivo do imaginário do leitor, oferecendo-lhe a oscilação entre o real, o possível e o imaginário no romance, incitando-o na busca pela veracidade dos acontecimentos e permitindo a reflexão do questionamento: o romance em evidência se constitui uma confissão de Lúcio Vaz ou uma autobiografia de Mário de Sá Carneiro?

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

GOMES, Álvaro Cardoso. A Literatura portuguesa em perspectiva. Direção: Massaud Moisés. Editora Atlas S.A., São Paulo, 1994.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Inútil poesia e outros ensaios breves. Companhia das Letras. São Paulo, 2010

SA-CARNEIRO, Mario de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

VIGOTSKI, L.S. A formação social da mente: O desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. Martins Fontes. São Paulo, 2010.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

SÍLVIA SANTOS ASSIS DE JESUS

Graduada em Letras com francês, Pós graduanda em Estudos Literários pela Uefs (Universidade Estadual de Feira de Santana).

 

DO REAL AO IMAGINÁRIO: UMA LEITURA DO ROMANCE “A CONFISSÃO DE LÚCIO” DE MÁRIO DE SÁ CARNEIRO

 

RESUMO

O presente artigo realiza uma leitura do romance “A confissão de Lúcio” (1914), de Mário de Sá Carneiro, ao mesmo tempo que objetiva fazer uma análise da realidade vivenciada pelo protagonista Lúcio Vaz e o enredo fictício criado pela mente humana. É uma obra repleta de idealizações e incertezas que conduzem o leitor a fazer indagações da veracidade dos fatos relatados e a abraçar o mundo dos sonhos, erigido com o auxílio do transbordamento das sensações, devido ao excesso imagético utilizado por Mário de Sá Carneiro.

 

A MEMÓRIA ENTRE O REAL E O IMAGINÁRIO NA CONFISSÃO DE LÚCIO

 

Situado na época do Modernismo português, o poeta Mário de Sá Carneiro nasceu em 1890 em Lisboa. Filho único de pai rico e órfão de mãe desde dois anos de idade, Mário de Sá juntamente com seu melhor amigo Fernando Pessoa colaboraram na fundação da revista Orpheu.

Mário possuía uma enorme incapacidade de adaptação ao mundo moderno e isso era claramente denunciado em suas obras, pois podemos perceber que os seus inscritos versam sobre temas como: o suicídio, o amor pervertido e a anormalidade, chegando ao ponto da loucura.

Para alguns estudiosos de sua obra, Mário ousou correr o risco de encarnar a imaginação na vida ao ponto de converter toda a realidade em realidade poética. Segundo Perrone-Moisés, o drama que está na origem de suas narrativas, como de seus poemas, é o do desdobramento narcísico da personalidade.

 

Raramente, na literatura, o narcisismo foi levado a tais excessos. Em sua poesia, Sá-Carneiro dirige versos às suas próprias mãos,” brancas e lindas”; nos contos, os heróis beijam suas próprias imagens nos espelhos, prodigam a eles mesmos carícias e palavras ternas. Na vida, Sá-Carneiro sofria por ser gordo e ter traços vulgares, por não se achar fisicamente à altura de sua Alma e de seu Gênio (PERRONE MOISES, 2000, p.165).

 

A Confissão de Lúcio é uma obra narrada em primeira pessoa sendo o protagonista o escritor Lúcio Vaz. Toda a história desta narrativa é contada por Lucio que acaba de cumprir dez anos de prisão por um assassinato que segundo ele não cometeu. E somente agora ele decide fazer sua confissão explicando todas as circunstâncias do assassinato de seu amigo demonstrando total inocência.” E são apenas fatos que relatarei. Desses fatos, quem quiser, tire as conclusões. Por mim declaro que nunca o experimentei. Endoideceria, seguramente.” (SÁ-CARNEIRO,1995 p.352)

O enredo dessa narrativa é todo baseado na memória do escritor Lúcio Vaz. É interessante como o protagonista busca nas palavras e nos fatos ocorridos ou não, um elemento para a comprovação de sua inocência e ao mesmo tempo acusação, pois a confissão de Lúcio por diversos momentos deixa fatos obscuros e confusos, gerando uma incerteza nos acontecimentos destes.

Constitui-se como uma obra muito complexa com contradições, ambiguidades, incoerências e mistérios. Mário deixou aflorar todo o seu poder imaginário no intuito de provocar no leitor uma série de questionamentos que ficam sem respostas possíveis.

Lúcio Vaz faz uso da memória para relatar essa história que teve um desfecho trágico. No entanto é importante ressaltar que toda essa narrativa se constitui uma história vivenciada por mais de uma pessoa. Desta maneira, por que somente é evidenciado as observações de Lúcio? Por que os demais personagens envolvidos no romance (exceto a figura de Ricardo e Marta) eram vistos de forma depreciativa por Lúcio? Em que mundo esse protagonista vivia ao ponto de excluir todos os outros seres humanos e se importar somente com duas pessoas?

 Em seus estudos sobre Mário de Sá-Carneiro, Leyla Perrone-Moisés declara sobre alguns defeitos no romance em questão:

 

 

A Confissão de Lúcio (1914) e nos contos de Céu em fogo (1915) obras em que abundam as cenas melodramáticas e estereotipadas, os estados de alma raros ditados por modelos estéticos, as preciosidades estilísticas por vezes terrivelmente datadas. Tais defeitos nos inclinariam a considerar essa obra como farsa, artificial e mal-acabada. Ora, pela realização efetiva de uma de suas fantasias, no ato mais verdadeiro e definitivo que pode haver, Sá-Carneiro nos impõe uma suspensão de julgamento. Quase todos os seus contos terminam de modo decepcionante. O desenlace nunca está à altura das expectativas criadas, a conclusão é frequentemente substituída por enigmáticas exclamações ou por reticências (PERRONE-MOISÉS, 2000 p.163).

 

Considerando tais defeitos elencando por Perrone-Moisés, torna-se difícil ter uma interpretação como sendo a única correta desse romance, pois não se pode dizer ao certo até que ponto o próprio Lúcio está fazendo uso da razão e do seu imaginário para narrar toda sua amizade e história com Ricardo de Loureiro, o seu amigo que foi morto, e Marta, a sua suposta esposa.

No início da narrativa percebe-se que o poeta não tinha amigos, andava vagando no seu mundo imaginário, no entanto, ao decorrer do romance é observável um crescente laço de amizade entre ele e Lúcio Vaz. Essa amizade vai gradativamente se estreitando e chega ao ponto de se confundirem um com o outro, se considerando “companheiros inseparáveis” e se tornando “amigos íntimos”, conforme afirma Ricardo: “Não pode imaginar, Lúcio, como a sua intimidade me encanta, como eu bendigo a hora em que nos encontramos” (SÁ –CARNEIRO, p.376, l.13).

Percebemos a partir daí que Mário de Sá direciona o leitor a uma interpretação ambígua de sua obra, pois fica evidente a existência do homoerotismo como uma marca visível. Os dois amigos se tornaram íntimos que não existia mal-entendidos, nem “quase” segredos. No entanto, após estabelecer uma relação profundo de amizade com Lúcio, Ricardo deixa aflorar uma personalidade até então desconhecida por seu amigo. Personalidade essa que transportava Ricardo para um mundo bem distante do real, um espaço criado por sua imaginação que divergia totalmente da realidade vivida e se misturava com seus textos literários.

Nessa perspectiva Mário de Sá Carneiro coloca todo o seu potencial poético fora dos limites da experiência possível, permitindo, desta maneira, o pleno jogo da imaginação sobre o real. Ele faz da figura de Ricardo, um sujeito que se diferenciava dos outros pela sua incapacidade de ser amigo de alguém, mas ao mesmo tempo se apoiava na amizade de Lúcio Vaz por que para ele “a amizade máxima traduzir-se–ia unicamente pela maior ternura. E uma ternura traz sempre consigo um desejo caricioso: um desejo de beijar... de estreitar... Enfim: de possuir” (p. 376, l.25).

Ao consolidar sua amizade com Lúcio Vaz, Ricardo permite a transparência de alguns desejos estranhos de sua mente, e vai elencando-os com muita facilidade: desejava ardentemente ser mulher “para que, num encantamento, pudesse olhar as minhas pernas nuas, muito brancas, a escoarem-se, sob um lençol de linho” (p.375, l. 29).

Era muito recorrente esse desejo de Ricardo em se transformar no belo corpo de uma mulher ou à possibilidade de mudança de sexo. Com essa revelação, o autor reforça o mistério que envolve a existência da personagem Marta durante todo o enredo, elemento que funciona como forte indício dessa figura ser apenas uma imagem fictícia, criada por uma mente fértil, para uma possível fuga da realidade. 

Nesse contexto, entra novamente o imaginário, o irreal. E desta forma surgem os questionamentos: Será que existiu uma amizade verdadeira entre Lúcio e Ricardo ou foi somente uma projeção dos desejos carnais um do outro? E Marta, será que ela realmente existiu?

Ao que parece, Ricardo projetou seus desejos na figura imaginária de Marta e através disso conseguiu possuir o corpo do amigo como uma recompensa por sua amizade. E não muito diferente Lúcio se deixou iludir por essa imagem e mergulhou em um mundo fantasioso, tornando-se amante da mulher do seu melhor amigo.

No entanto, a identidade de Marta era um mistério que atormentava Lúcio e embora já tivessem se tornados amantes, ele nunca conseguia obter dela uma confidência que lhe desse a certeza de sua existência, permanecendo o enigma que reforçava ideia da inexistência daquela mulher quo o atormentava constantemente.

Não era com efeito o mistério que encerrava a mulher do meu amigo que, no fundo mais me torturava. Era antes esta incerteza: a minha obsessão seria uma realidade, existiria realmente no meu espírito; ou seria apenas um sonho que eu tivera e não lograra esquecer, confundindo-o com a realidade? (SÁ CARNEIRO, 1995, p.382, l.37).

Lúcio se sente completamente dominado pelo mundo fictício que a todo tempo ele confundo Ricardo e Marta, como se eles fossem uma mesma identidade. Sua mente está tão presa nesse mundo imaginário que no momento de seu relato sua memória não consegue elucidar a existência dessa mulher que o deixou enlouquecido e anestesiado de prazer.

Em torno dessa crise existencial da figura de Marta, a memória de Lúcio o impede a criar de criar um mundo de ilusões, transportando-o para uma “realidade” interior que predomina o vazio do mundo onde vagueia um” eu” incompleto e inconsciente, impulsionando-o a relatar os seus desejos sem um compromisso firmado na verdade.

No final da narrativa percebe-se que a figura de Marta desaparece misteriosamente da mesma maneira que aparece não início, dando uma ideia de que ela era apenas um fruto das idealizações das mentes de Ricardo e Lúcio. O que impulsiona o leitor a fazer muitas indagações acerca dessa terceira personagem.

Nesse sentido, Mário de Sá elucida na figura de Marta personificação de seus desejos, projetando a existência num plano de existência-imagem que se manifesta no excesso imagético que segundo Gomes (1994) expressa o desejo de “eu” expatriar-se, para se livrar do espartilho da pequenez humana.

Segundo alguns estudiosos como Gomes (1994) e Perrone-Moisés (2000), Mário de Sá vivia em constante crise que refletia em seus personagens, chegando ao ponto de ser criado outro eu como forma de inadaptação ao mundo real.

A crise de Sá-Carneiro, mesmo em sua melhor expressão literária, permaneceu no terreno psicológico individual. Como uma mosca presa entre dois vidros, ele buscou uma saída impossível entre o “eu” e o “ideal do eu”. Daí a constante dualidade de sua personalidade poética e de suas personagens de ficção (PERRONE-MOISÉS, 2000, p.166).

Mário de Sá é um poeta que ansiava um enorme desejo de ultrapassar a realidade vivida e vivenciar um espaço fictício onde as sensações e pensamentos configuravam-se um mundo ideal e possível de se habitar. Nessa perspectiva, vários elementos compõem o romance em questão, a narrativa se encontra mergulhada em um mundo imagético, brincando constantemente com a análise interpretativa do leitor ao tempo em que o leva a um lugar de incertezas quanto a inocência do narrador, transportando-o para um espaço que somente é possível experimentar através das narrativas metaforizadas e carregadas de imagens poéticas do escritor Mário de Sá-Carneiro.

Desta maneira, Mário de Sá Carneiro parece brincar com o leitor, deixando-o em constante dúvida se os fatos relatados por Lúcio Vaz foram reais ou simplesmente eram frutos imaginários da sua mente. Assim, o escritor busca utilizar elementos estratégicos que funcionam como dispositivo do imaginário do leitor, oferecendo-lhe a oscilação entre o real, o possível e o imaginário no romance, incitando-o na busca pela veracidade dos acontecimentos e permitindo a reflexão do questionamento: o romance em evidência se constitui uma confissão de Lúcio Vaz ou uma autobiografia de Mário de Sá Carneiro?

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

GOMES, Álvaro Cardoso. A Literatura portuguesa em perspectiva. Direção: Massaud Moisés. Editora Atlas S.A., São Paulo, 1994.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Inútil poesia e outros ensaios breves. Companhia das Letras. São Paulo, 2010

SA-CARNEIRO, Mario de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

VIGOTSKI, L.S. A formação social da mente: O desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. Martins Fontes. São Paulo, 2010.