DO “PORTO DO AÇA͔ À “PRAÇA DALCÍDIO JURANDIR”: ENCONTROS E SOCIABILIDADES NA CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS PÚBLICOS NA METRÓPOLE PARAENSE

Por Márcio Rubens dos Santos Cardoso | 27/05/2015 | Geografia

 

RESUMO: Este artigo analisa dois espaços públicos da metrópole belenense produzidos por inter-relações sociais, encontros entre múltiplos sujeitos e a partir de uma dialética relação entre dinâmicas de desigualdade social e diferença cultural-simbólica. A natureza desses espaços, expressa em suas formas e conteúdos, permite-nos pensar em possibilidades de construção de uma nova vida urbana, cujo atributo basilar seja o uso irrestrito da cidade. Palavras-Chave: espaço público, encontro e acessibilidade.

INTRODUÇÃO: O processo de metropolização de Belém, resultante da convergência de fluxos diversos que articulam um conjunto hierarquizado de cidades, é indutor do surgimento de novas atividades urbanas que transformam esta cidade em um centro irradiador de um meio técnico-científico-informacional na região amazônica. Dentro dessa dinâmica metropolitana, observamos a proliferação de uma temporalidade hegemônica em Belém pautada na reprodução do valor de troca, que subtrai processos e relações ligados ao uso e apropriação de lugares, de sorte que são cada vez mais residuais encontros e inter-relações sociais que pressupõe a constituição de espaços públicos metropolitanos. Nesse sentido, questionamos: será que podemos visualizar espaços públicos nesta metrópole produzidos por encontros entre múltiplos sujeitos? De que maneira entender a dinâmica desses espaços em Belém? Partindo dessa problemática objetivamos analisar as espacialidades e inter-relações sociais dos espaços do Porto do Açaí e da Praça Dalcídio Jurandir, demonstrando os encontros e sociabilidades processados nestes lugares, bem como a configuração física dos mesmos, para melhor entendermos a dinâmica de acessibilidade e a localização estratégica desses espaços públicos. A importância desta análise, então, eleva-se pelo fato da mesma buscar entender uma dinâmica residual metropolitana que pode apontar para uma nova visão de cidade que fundamente novas perspectiva de desenvolvimento urbano. Nesse sentido, com o intuito de atingir os propósitos levantados, estruturamos nossas idéias de forma a partir de uma revisão teórico-conceitual sobre o espaço público, para em um segundo momento entrarmos em um exame crítico dos encontros e da configuração física dos espaços em questão, para, então, pensar estes espaços públicos como ponto de partida de uma política urbana insurgente, mais humana e democrática.

MATERIAIS E MÉTODOS :Nossa análise pautar-se-á no método de interpretação do materialismo histórico e dialético, de maneira que queremos reconhecer as contradições envolvidas nos processos analisados para, assim, melhor compreendermos nosso objeto de pesquisa. Dentro dessa referência, distribuímos os procedimentos metodológicos em alguns momentos, quais sejam: levantamento e análise bibliográfica de temas pertinentes à realização da pesquisa (espaço público, desigualdade, diferença, etc.); levantamento e análise documental de informações em documentos oficiais nas secretarias da Prefeitura Municipal de Belém (PMB) a respeito do “Porto do Açaí” e da “Praça Dalcídio Jurandir”; elaboração de um mapa temático com a localização dos espaços públicos analisados feito com utilização dos Sistemas de Informação Geográfica (SIG) a partir do tratamento de informações da base cartográfica de Belém; e observações sistemáticas qualitativas, nas quais coletamos dados empíricos que foram de fundamental importância para melhor entendermos a dinâmica dos espaços estudados.

ESPAÇO PÚBLICO: UM CONCEITO EM ANÁLISE: O conceito de espaço público pouco tem sido discutido no âmbito da ciência geográfica, com exceção das atuais discussões de Gomes (2002) e Serpa (2004). Em contrapartida, em outros campos do saber existe um acúmulo teórico a respeito dessa temática, o que nos coloca a necessidade de considerarmos essas diferentes leituras, para que possamos, posteriormente, lançar olhares geográficos ao conceito em questão. Uma primeira contribuição refere-se às formulações acerca da vida activa3 de Hannah Arendt (1991). Esta autora mostra-nos que a esfera pública relaciona-se a idéia de ação que, por sua vez, só pode ser pensada se existir uma reunião entre os homens (pluralidade), se existir uma vida em comum que se constitui na condição fundamental de uma vida política. Essa pluralidade de sujeitos reunidos constituinte da esfera pública se realiza a partir da aglutinação de uma multiplicidade de perspectivas distintas, de opiniões diversas, todas articuladas a um objetivo em comum. Não muito distante de tal leitura lembramos das contribuições de Habermas (1997, p. 92, grifos do autor) que nos mostra a esfera pública enquanto “uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo”. Esse agir orientado para o entendimento constitui-se em um agir comunicativo que envolve interações múltiplas que pressupõem operações cognitivas de caráter intersubjetivo e cooperativo que permitem a comunicação entre indivíduos diferentes. Nessas interações comunicativas, portanto, “as pessoas envolvidas se põem de acordo para coordenar seus planos de ação” (HABERMAS, 1989,p. 79). Falamos até então de esfera pública, mas como poderíamos, a partir desses elementos levantados, pensar em um espaço público, em uma visão geográfica da vida pública? Gomes (2002) nos fornece ferramentas fundamentais para começarmos a perceber a vida pública tomando como ponto de partida o espaço geográfico, lembrando que essa contribuição toma como fundamento os trabalhos de Arendt (1999), de Habermas (1989), além dos construtos de Richard Sennet (1998, p. 414) que, mesmo mostrando um declínio do homem público na modernidade e uma certa tirania da intimidade, ressalta que a cidade deveria se constituir em esfera do encontro, em um “fórum no qual se torna significativo unir-se a outras pessoas sem a compulsão de conhecê-las enquanto pessoas”. O exame conceitual sobre o espaço público feito por Gomes (2002) é realizado a partir de uma leitura geográfica, de modo que desse ponto de vista o olhar sobre o espaço público deve levar em conta, tanto sua configuração física, quanto o tipo de práticas e dinâmicas sociais que aí se desenvolvem, considerando, dessa forma, esse espaço como um conjunto indissociável de formas e práticas sociais. Com efeito, podemos perceber os espaços públicos a partir de seus sistemas de objetos e de ações (SANTOS, 2004), como formas-conteúdo. Enquanto físico-material, o espaço público é “qualquer tipo de espaço, onde não haja obstáculos à possibilidade de acesso e participação de qualquer tipo de pessoa” (GOMES, 2002, p. 162), lembrando que essa ordem espacial é condição e resultado das das ações sociais. Nesses termos, a acessibilidade, como propõe Serpa (2004, p. 22) não é apenas física, “mas também simbólica, [pois] a apropriação social dos espaços públicos urbanos tem implicações que ultrapassam o design físico de ruas, praças, parques, largos, shoppings e prédios públicos”. Adentramos, dessa maneira, no conjunto de práticas espaciais representativas dos espaços públicos, percebendo que tais práticas denotam uma mistura social, um encontro entre diferentes expectativas e interesses, as quais nutrem-se da co-presença, denotam, ainda, contradições, problematizações, uma tensão evidente entre a diferença e a possibilidade de coabitação, entre a individualidade e a pluralidade (GOMES, 2002). Serpa (2004) teorizando sobre essas práticas espaciais públicas, mostra-nos que a alteridade é o elemento fundamental para melhor entendermos as mesmas. Nesse sentido, esse autor nos alerta que esse contato com o que externo (alteridade), ou melhor, entre diferenças, é um atributo do espaço público, sendo que a acessibilidade, desse modo, não pressupõe apenas diferenças culturais ou simbólicas (o acesso irrestrito a identidades sociais distintas), mas também desigualdades entre classes (livre acesso independente do poder econômico). Para melhor entender essa acessibilidade que se liga não apenas a uma dinâmica de diferença, mas também de desigualdade, inscreve-se como fundamental uma rápida distinção entre estes conceitos. Com efeito, segundo Haesbaert (1997), enquanto a desigualdade é definida por parâmetros comuns, classificatórios e de comparação geral, em termos quantitativos, a diferença tem um sentido de alteridade, manifestando-se no confronto de identidades (HAESBAERT, 1997). Porém, enfatizamos que essas interações entre desigualdade e diferença não se restringem ao critério da acessibilidade, pois então também nos os encontros. Nesse sentido, reconhecendo o espaço público (forma-conteúdo) a partir da co-presença, da coabitação entre múltiplos sujeitos, percebemos que esses encontros não se ligam apenas a uma lógica da diferença cultural e simbólica (que pressupõe um confronto de identidades, o reconhecimento do “eu” e do “outro”), a qual é, quase sempre, priorizada pelos autores supracitados; esses encontros ligam-se, também, e de maneira dialeticamente articulada a essa lógica de diferença, a uma esfera da sobrevivência, das desigualdades sociais, de sociabilidades construídas tendo como mediador a necessidade, a penúria, a precarização da vida. Essa leitura deve ser feita principalmente porque projetamos olhares a um contexto amazônico entrecortado de desigualdade social e pobreza, o qual nos mostra imperativamente a consideração da relação dialética de uma dinâmica de desigualdade e de diferença na produção e reprodução de espaços públicos.

DA ACESSIBILIDADE AOS ENCONTROS: O PORTO DO AÇAÍ E A PRAÇA DALCÍDIO JURANDIR COMO ESPAÇOS PÚBLICOS: Os espaços para os quais lançaremos os olhares nesse ensaio localizam-se relativamente próximos, mas possuem dinâmicas distintas. Em uma primeira análise, percebemos que a própria localização diferencial desses lugares na cidade interfere na dinâmica de relações processadas nos mesmos. O Porto do Açaí localizado às margens do rio Guamá insurge na paisagem da cidade de Belém como um lugar do reconhecimento e do encontro, sendo que sua movimentação advém, em muito, de sua localização estratégica: às margens de um rio e de uma avenida (Av. Bernardo Sayão) que o liga ao centro da cidade. Isso nos indica um acesso contínuo de sujeitos vindos em barcos de cidades à beira-rio próximas à Belém, ou ainda, vindos em bicicletas, carros e caminhões do interior da metrópole, sintetizando, assim, duas dinâmicas distintas: uma ribeirinha, cujo fluxo fluvial é característico, e outra metropolitana, na qual o fluxo viário é imperativo. Esse espaço localizado no bairro do Jurunas próximo à Rua Fernando Guilhon (antiga Rua Conceição), sintetiza, assim, tempos em seus desenhos coloridos de rio/floresta ou em seus embalos rítmicos comandados pelo “brega” 4 (Figura 1). Por outro lado, a Praça Dalcídio Jurandir localizada no cruzamento entre quatro movimentadas vias de Belém (Av. Fernando Guilhon, Av. Alcindo Cacela, Tv. 9 de Janeiro e da Rua São Miguel – bairro da Cremação), sintetiza em seu conteúdo uma temporalidade veloz metropolitana, um tempo, ou vários ritmos que se articulam em uma lógica eminentemente urbana. Essa estratégica localização permite à praça condensar, em seu interior, uma multiplicidade de sujeitos distintos que vêm de pontos diferentes do interior da metrópole, seja através de longas ou pequenas caminhadas, seja ainda através de ônibus, de carro, ou de bicicleta (Figura 1). Desenham-se, assim, dois espaços públicos com ritmos diferentes, relações distintas, encontros e sociabilidades diversas. Cabe entender agora a natureza dessa diferenciação e, por isso, faremos uma viagem interpretativa que parte do rio, chega no Porto do Açaí e adentra a metrópole até a Praça Dalcídio Jurandir. Figura 1 – Localização dos espaços públicos analisados, Porto do Açaí e Praça Dalcídio Jurandir, em Belém (PA). Chegando em pequenas embarcações ao Porto do Açaí logo percebemos uma dinâmica de relações marcada pela pobreza, por uma lógica de sobrevivência. Neste caso, há de se considerar esse espaço enquanto caracterizado pelo desenvolvimento de interações, que têm no circuito inferior da economia urbana (SANTOS, 1979) um de seus principais atributos, visto que os agentes que acessam esse espaço são sujeitos excluídos de um circuito econômico moderno e sobrevivem de um comércio à margem desse circuito moderno a partir de atividades voltadas, sobretudo, para a sobrevivência. Dentre esses sujeitos que cotidianamente acessam o porto, estão o ribeirinho da região das ilhas e de outros municípios próximos à Belém, que trazem sua produção de açaí, cupuaçu, bacuri e outra gama de produtos regionais; os homens urbanos que acessam o rio com vistas a vender produtos através de um comércio ambulante, ou ainda, a comprar produtos chegados ao porto, como o açaí, principal produto desembarcado nesse local; o feirante que dia-a-dia realiza seu comércio no trapiche; além do “carregador” das mercadorias chegadas ao trapiche e de uma diversidade de outros agentes que compõem a complexidade de relações desse espaço. O contato entre a cidade e o rio que é, portanto, mediado pela dificuldade e pela necessidade de sobrevivência, produz um lugar às margens do rio e também dos benefícios da metrópole, um lugar de intensas experiências vividas e de raízes ribeirinhas, pois nele o rio é o local de trabalho, fonte de recursos, por onde navega o imaginário e, ainda, local para o lazer. Temos, assim, que o motor dos encontros na realidade cotidiana do Porto do Açaí é uma dinâmica de desigualdade que, por sua vez, não produz apenas um espaço de comércio importante para o abastecimento da cidade de Belém – no qual em 2003 foram desembarcados 12.593.158Kg de produtos diversos, sendo destes 12.293.775Kg de açaí, segundo os dados da Secretaria Municipal de Economia (SECOM) – produz, também, e a partir da dinâmica de sobrevivência, um espaço dos encontros, um lugar de reconhecimentos que tem movimentação durante as 24 horas do dia, com a realização de 4 feiras diárias, as quais demonstram que nesse espaço as trocas são mais amplas, não se resumem a simples permuta de mercadorias, pois se alimentam de narrativas, de fofocas, de conversas... Mas queremos “entrar” na cidade, reconhecer espaços públicos escondidos em meio à velocidade dos automóveis, à pressa dos sujeitos metropolitanos, enfim, lugares, no interior da metrópole, produzidos a partir da coabitação entre múltiplos mundos. Queremos, portanto, analisar a realidade de uma praça cuja dinâmica escapa ao distanciamento das relações urbanas, pois se constrói por sociabilidades mais próximas. Descendo a Av. Fernando Guilhon saindo do Porto do Açaí, após alguns passos avistamos uma antiga chaminé e um forno incinerador de lixo, resíduos de uma política de higienização e limpeza da cidade, marcas de uma Belém da “Belle Époque” do século XIX. A importância deste forno está simbolicamente inscrita no nome do bairro onde se localiza o mesmo: Cremação, de sorte que é a partir desta forma espacial herdada do passado que a praça Dalcídio Jurandir é construída, sendo também seu uma alusão a um importante escritor romancista paraense que, em uma de suas obras, – “Passagem dos Inocentes” – tem como pano de fundo, o forno crematório. A praça como um cruzamento de vias permite o acesso por diversas formas e por variados grupos e sujeitos. São homens e mulheres que chegam a pé e usam deste espaço para suas caminhadas diárias, são estudantes que ali se reúnem após suas aulas matinais, são amigos que desviam seus itinerários cotidianos para ficarem na praça e conversarem por longas horas, são senhores e senhoras que chegam de bicicleta, de carro, ou mesmo a pé para aproveitarem dos jogos de carteado, realizados constantemente nos bancos da praça, enfim, são diversos mundos que se encontram a partir do lúdico, do lazer, da diferença. Parece, então, que o motor dos encontros na praça é uma lógica de diferença, é a possibilidade de inter-relações que ela proporciona, de uma vida compartilhada que ela produz e a partir da qual a mesma é produzida. Porém, a relação entre desigualdade e diferença é mais ampla no que concerne à apropriação espacial desse espaço público. Se o motor do encontro é a diferença, esta pode atrair grupos sociais motivados pela desigualdade, pela sobrevivência. Exemplo disso é a dinâmica do circuito inferior da economia urbana (SANTOS, 1979) que se prolifera neste local, a qual, por sua vez, envolve uma gama de sujeitos, dentre os quais estão: a vendedora de sanduíches, salgados e comidas típicas; o vendedor de produtos infantis que cotidianamente acessa a praça e utiliza-se dos gritos como forma de propaganda para seduzir as crianças que ali estão; o vendedor de água de coco que instala seu quiosque estrategicamente em um canto da praça; além de outros sujeitos que não se inserem no mercado formal de empregos da cidade e acessam a praça para sobreviver. É importante acrescentar que existe uma relação mais próxima entre esses sujeitos e os demais grupos sociais que freqüentam a praça. Exemplos dessas trocas mais amplas podem ser identificados no reconhecimento mútuo entre uma vendedora de churrasco e seus clientes, na realização do crédito pessoal entre o vendedor de sanduíches e seus já conhecidos clientes que, por vezes, transformam-se em amigos. Percebemos a partir dos elementos levantados que os dois espaços analisados configuram-se enquanto espaços públicos, pelo livre acesso, mas também pelas inter-relações sociais e a vida compartilhada que processam. Porém realizam-se de maneira diferencial a partir de dinâmicas de desigualdade e diferença que interagem de maneira diversa nos locais estudados. Cabe agora, entender melhor os objetos/símbolos desses espaços públicos, os quais materializam e irradiam para a cidade o estatuto público desses lugares.

A ESPACIALIDADE DA VIDA PÚBLICA: OS OBJETOS/SÍMBOLOS DE UMA VIDA COMPARTILHADA: Partindo da idéia de que o espaço público constitui-se em uma forma-conteúdo, partiremos, doravante, a uma interpretação das principais formas espaciais dos lugares analisados, ou melhor, partiremos a uma análise de seus objetos/símbolos a fim de melhor compreendermos suas dinâmicas e inter-relações. Como primeiro objeto/símbolo do Porto do Açaí, o rio aparece nas relações cotidianas processadas nesse espaço, como espelho do movimento, da troca, cujo ritmo em muito nos faz lembrar um tempo da natureza constituído pelo ciclo das águas dos rios, das cheias e das vazantes, que anuncia e diferencia as atividades e os produtos desembarcados no porto. Como foi possível observar no exemplo do açaí, a existência de períodos de maior comercialização desse produto ainda é condicionada por seu período de safra (de agosto a dezembro), de maneira que a organização produtiva e familiar dos agentes responsáveis pela coleta e venda se altera nos períodos de maior escassez desse produto. O movimento do rio parece mesmo se confundir com o movimento do porto, pois é por meio dele que chegam as mercadorias e os sujeitos do “além rio” ao longo das 4 feiras realizadas diariamente. O rio, então, indica-nos um movimento de distribuição no espaço, porém, ao lado desse processo, anuncia-se o movimento de localização, compreendendo as relações que permanecem nesse lugar, e que, a partir dele, são irradiadas para a cidade e se manifestam no sensível, como o encontro. Contudo, entre a distribuição e a localização, encontramos um elo cuja forma espacial mais adequada parece ser dada pelos barcos que emolduram estas paisagens vivas. As embarcações ditam as relações do porto, por serem as mesmas o elo entre a cidade e o rio, entre “milhares” de povoados e a cidade de Belém. Se, por um lado, esses objetos trazem reminiscências de um tempo que para muitos se refere ao tempo ribeirinho, por outro lado, eles promovem o encontro deste tempo com uma temporalidade hegemônica da metrópole. Neste sentido, são elos não só de lugares, mas de relações. Representam a ligação entre a opacidade de um tempo ribeirinho e a luminosidade da metrópole. Porém, esses sujeitos ancoram, essas relações se processam em lugar fundamental: o trapiche. Esse objeto/símbolo aparece, dessa forma, como a síntese de uma cadeia de relações que envolvem mundos diversos, pois nele se processa, com maior intensidade, o contato entre esses mundos, nele amontoam-se objetos espaciais materializados por esta relação, e, sobretudo, nele o encontro se liga ao evento, ao espontâneo, ao vivido. Se deslocarmos nossa análise ao espaço da praça Dalcídio Jurandir, perceberemos também alguns objetos característicos da vida pública, objetos/símbolo de uma vida compartilhada. O primeiro objeto que emerge para análise é o forno crematório que, como o rio para o porto, apresenta-se enquanto o espelho do movimento processado na praça, pelo fato de ser o forno o ponto de referência, o objeto que simboliza a praça. Aos moldes das grandes chaminés da época da Revolução Industrial inglesa, o forno crematório poderia ser representado como um “grande farol” que “ilumina” a cidade e dá referência aos moradores do bairro da Cremação. Foi a partir deste “farol” que surgiu o projeto de construção da praça, sendo, por isso, a partir do mesmo que as pessoas identificam e caracterizam este local, como a praça do Forno Crematório. Os tijolos alaranjados cobertos de limo, de raízes e de plantas que brotam das frestas da chaminé, são marcas de uma nova função desta forma. A chaminé incineradora passa a representar um “prisma óptico”, não por refletir feixes luminosos de diversas cores, mas por espelhar diferentes grupos e atores sociais que dão conteúdo à praça. Outro objeto/símbolo da vida compartilhada processada na praça é a rampa que foi adaptada sobre o forno crematório, ficando à frente da chaminé do incinerador de lixo, onde também ficam dispostos os bancos para as pessoas conversarem. Localizada próxima a Avenida Alcindo Cacela, a rampa, talvez como os barcos para o porto, mostra-se como o elo entre os mundos que se encontram nesse local, pois sua disposição espacial, na realidade, é um “convite” para que as pessoas freqüentem o espaço da praça, sendo que a partir dela se tem uma visão geral da praça, na qual podemos identificar as “diferenças” dispostas. É neste local que identificamos com mais freqüência, os casais de namorados, além de jovens e velhos moradores do bairro que se reúnem para jogar carteado, dominó e dama nos bancos dispostos entre e sobre a rampa. O objeto/símbolo da praça que, como o trapiche ao porto, sintetiza os mundos que ali se encontram é o anfiteatro que, localizado próximo à confluência da Rua São Miguel com a Tv. 9 de janeiro, é um local constituído de degraus que formam um semi-círculo que pressupõe algo inacabado, algo sempre em vias de construção. O anfiteatro, portanto, presta-se à “reunião”, ou seja, nele as diferenças são dispostas lado a lado em uma dinâmica de alteridade, do reconhecimento do “eu” e do “outro”, nele se realizam a maioria das atividades lúdicas e de recreação da praça (skate, jogos de futebol, etc.) e, também, os eventos e programações culturais (apresentações teatrais, de dança e de música). Entre grupos de adolescentes que se reúnem para conversar, beber, tocar música, grupos de homossexuais, casais e antigos moradores, percebemos códigos de corporeidade, gestos e posturas comportamentais marcando diferenças no espaço. Porém, essas territorialidades projetadas a esse lugar são fluidas e são constantemente redefinidas, visto que a marcação da diferença no espaço é tributária da co-presença, do encontro, de sociabilidades mais amplas entre grupos. De maneira geral, percebemos que a dinâmica dos lugares analisados pode ser visualizada a partir de objetos/símbolos que caracterizem uma vida pública a partir do atributo da co-presença e coabitação. Nesse sentido, o rio, o barco e o trapiche, além do forno crematório, da rampa e do anfiteatro são formas concretas que são condição e também produto de uma vida compartilhada; tornam-se, dessa maneira, elementos definidores dos espaços públicos analisados.

À GUISA DE CONCLUSÃO: Buscamos ao longo deste artigo compreender as relações e dinâmicas de dois espaços públicos presente na cidade de Belém, o Porto do Açaí e a Praça Dalcídio Jurandir. Constatamos, a partir de nossas interpretações, que a localização destes lugares delineia um livre acesso aos mesmos, de toda sorte que as suas dinâmicas, embora diferenciadas do ponto de vista das relações entre desigualdade e diferença, colocam-se enquanto tributária dos encontros e inter-relações sociais neles processadas. O estatuto público desses espaços emergiu, dessa forma, em objetos/símbolos de uma vida compartilhada presente nestes locais. Parece que esses espaços nos indicam a existência de uma metrópole ofuscada, uma dinâmica residual cujo atributo fundamental são os encontros e, em última análise, o uso irrestrito da cidade. Nesses termos, talvez estejamos diante uma cidade insurgente, a qual nos possibilita a consideração de outros critérios para se pensar, por exemplo, o desenvolvimento urbano. Nessa perspectiva, o ponto fundante é possibilitar novos caminhos, desenvolvimentos pautados em outras racionalidades, possibilitando uma transformação da vida de maneira positiva, por isso, o ponto de partida deve ser o qualitativo, o afetivo, o imaginário, o uso irrestrito do espaço. Em seu caráter insurgente, essa maneira de pensar em uma nova cidade deve partir e potencializar espaços que guardam novas experiências, que projetam alternativas para o desenvolvimento da cidade, espaços que não se reduziram ao repetitivo, ao valor de troca, que permanecem na penumbra, difusos, virtuais, possíveis. Os espaços públicos, nesse sentido, poderiam ser espaços precípuos do encontro, da co-habitação, da apropriação coletiva e onde o uso fosse mais valorizado do que a troca, pois considerar o direito à cidade é considerar o direito à satisfação das necessidades básicas dos indivíduos; não só, é considerar o direito à diferença, o direito ao uso da cidade, é considerar, dessa forma, o planejamento e a gestão urbanos como virtualidades que podem se traduzir na possibilidade de se criar, de se produzir a cidade enquanto uma grande obra. Aqui estão postos novos desafios, estão colocados os espaços em branco de nosso trabalho, mas pode estar, também, sua virtualidade, seu devir, nessas palavras inconclusivas alertamos para um caminho virtual, o caminho de uma cidade possível.

Notas:

1 Graduado em Geografia pela Universidade Federal do Pará. Mestre em Planejamento do Desenvolvimento pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA/UFPA). Email:bcmalheiro@yahoo.com.br

2 Graduado em Geografia pela Universidade Federal do Pará. Especialista em Gestão Educacional e Docência pela Faculdade da Amazônia (FAAM). Email: mrciorubens@hotmail.com

3 O conceito de vida activa formulado por Arendt (1991) envolve três atividades humanas fundamentais, quais sejam: o labor (domínio das necessidades vitais, do processo biológico do corpo humano), o trabalho (domínio das atividades econômicas que corresponde ao artificialismo da existência humana) e a ação (domínio da política, atividade que se exerce diretamente entre os homens sem uma mediação necessária das coisas ou da matéria). 4 ritmo musical bastante popular na cidade.

Referências Bibliográficas:

ARENDT, Hannah. A condição humana. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 31-83. HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública, investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. (série estudos alemães, n.º 76). ______. Direito e democracia: entre facticidade e validade. V. 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. HASBAERT, R. Des-territorialização e identidade: a rede “gaúcha” no Nordeste. Niterói: EdUFF, 1997. SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2004. ______. O Espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: F.Alves, 1979. (Coleção Ciências Sociais). SENNET, R. O declínio do Homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Cia das Letras, 1998. SERPA, A. Espaço público e acessibilidade: notas para uma abordagem geográfica. In: GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 15, pp. 21 - 37, 2004.

Artigo completo: