DISCIPLINAÇÃO, CORPO E HABITUS
Por Miguel Pereira da Silva | 10/08/2011 | SociedadeDISCIPLINAÇÃO, CORPO E HABITUS:
Uma Interlocução entre Foucault e Bourdieu
Miguel Pereira da Silva
(Doutorando em Sociologia pela UFS - Universidade Federal de Sergipe)
Resumo: Pretende-se neste artigo fazer uma interlocução entre Michel Foucault e Pierre Bourdieu referente às categorias de disciplina, corpo e habitus para, então, demonstrar a pertinência de suas especulações para análise sociológica sobre as relações de poder, muitas vezes veladas, que permeiam a sociedade. Desse modo, parte-se do pressuposto de que o corpo e o habitus constituem os vetores semânticos, onde a disciplinação torna-se um processo "específico" de socialização entre os atores sociais. Dentro dessa incursão teórica a dominação dos capitais simbólicos materiais e imateriais serão analisados para se compreender como se dá a manutenção do poder por meio da apropriação desses capitais.
Palavras-Chave: Poder, disciplinação, corpo, habitus
Introdução
O objetivo aqui proposto é o de criar um entendimento sobre processos de socialização distintos sobre o corpo, de acordo com as visões desenvolvidas pelos teóricos franceses Michel Foucault e Pierre Bourdieu. Visto que a corporeidade é elemento fundamental de percepção do mundo circundante, esses teóricos, de acordo com as teorias que empreenderam, destacaram especial atenção em suas argumentações ao saber sobre o corpo, sendo esse apreendido e percebido não apenas como ente físico, mas como construção social de localização num tempo e num espaço determinado.
Delimitamos os campos de análise em três tópicos que ficaram formatados dentro de uma logicidade para melhor expor as contribuições individuais dos dois teóricos, ficando para o terceiro tópico a análise correspondente aos pontos de aproximação das duas teorias sobre uma socialização voltada para os corpos dos agentes sociais. O eixo fundamental sobre a visão dos autores se consolida na percepção de ambos sobre a existência de poderes ocultos que entram na lógica da socialização corporal; da presença dos corpos nas instituições, promovendo a socialização corporal também nesses espaços específicos e a percepção dos autores sobre o conceito de sujeito nesse processo.
Descortina-se, assim, processos distintos com uma centralidade num elemento corporal que acaba aproximando esse distanciamento, prova que a observação dos corpos individuais numa sociedade coletivizada, exige um olhar aguçado sobre as formas estruturais e sobre as possibilidades de subjetivar as relações cotidianas, pois, como nos mostra Le Breton (2010),
Esse processo de socialização da experiência corporal é uma constante da condição social do homem. O corpo existe na totalidade dos elementos que o compõem graças ao efeito conjugado da educação recebida e das identificações que levaram o ator a assimilar os comportamentos de seu círculo social. A expressão corporal é socialmente modulável, mesmo sendo vivida de acordo com o estilo particular do indivíduo ( p. 8-9).
Apreende-se, portanto, dos processos de socialização corporal, uma construção que leva em consideração um conjunto de fatores que estão diretamente vinculados aos corpos dos agentes sociais, tanto de forma intrínseca como extrínseca, pois é certo que o entendimento do corpo supera uma visão simplista do modo biológico dele ser. Sua socialização só se efetua mediante a junção com todos os mecanismos que o fazem como um referencial de subjetividade corporificada e culturalmente construída.
1. O seqüestro do corpo numa nova apreensão histórica
A percepção e apreensão histórica do corpo, sendo esse entendido e avaliado como um elemento fundamental da constituição direta das relações que os atores sociais desenvolvem em sociedade, é uma dinâmica que deve ser analisada sob vários prismas e considerações teóricas. A explosão conceitual surgida com as inquietações de teóricos que começaram a perceber a configuração de um sistema capitalizador de mercadorias, pessoas e modos de existência, em contextos históricos atrelados à efervescência política contestadora desse citado regime, alimentou uma visão corporal de sujeitos que precisavam utilizar suas "máquinas corporais" como um valor material de luta contra a opressão imposta por uma classe dominante, que expropriava a maioria dos meios necessários para legitimar sua dignidade social.
O corpo, então, era um suporte eficaz na tentativa de derrubada da articulação que se consolidou especialmente, para esse momento, em meados do século XIX. A junção de vários corpos, num conglomerado que buscava solucionar seus problemas levando o "slogan" do igualitarismo e justiça social, era a solução encontrada, e sob o nome de proletariado, esses entes humanos aliaram suas forças a um movimento político contestatório de combate à opressão. Greves, manifestos, insurreições, revoluções, atos de utilização de uma vida corporal voltada para o embate contra os detentores do capital, das propriedades e dos mecanismos intelectuais de suporte e manutenção de uma vida tornada como natural para a consolidação de uma lógica burguesa que se espalhava e criava uma teia de dimensões mundiais.
Movimentos à parte, o corpo também foi alvo, agora de forma muito particular, de uma visão cientificista que o via apenas, como mero instrumento orgânico, dotado de um mundo aberto a muitas descobertas que trariam soluções para patologias e muitas nomenclaturas e catalogações das enfermidades humanas. O corpo tornou-se palco para experimentações e campo de advento e consolidação de toda uma literatura especializada. É o corpo organismo, objeto de incisões cirúrgicas; consolidador de uma nova dinâmica social que responde aos ideais científicos de evolução humana, através de uma longevidade corporal que refletia diretamente, em fins do século XIX, na tentativa de organizar a própria sociedade como um organismo, bastando para isso que se utilizassem os elementos teóricos apropriados ao rigor sistemático vigente.
Mas um novo fenômeno também contribuiu para um entendimento social do corpo, agora mostrando que essa construção orgânica, de uma complexidade inconteste, era condição fundamental para a existência de energias psíquicas, que percorrem nossa existência psicológica e tornam o corpo como tradução imediata de distúrbios visíveis que surgem de delimitações não-visíveis. Essa descoberta reflete diretamente na percepção dos novos comportamentos sociais, localizados num momento de reflexão de um novo porvir histórico que foi o século XX. A moral e as relações desenvolvidas em sociedade deveriam ser revistas, diante da descoberta e da teorização de elementos ocultos que norteavam nossas vidas, mas era o corpo o eixo de visibilidade, pois a fala, num contexto dialógico, era a maneira encontrada de fazer as perturbações exteriorizarem-se para a sua compreensão.
Percebe-se, portanto, que o corpo é elemento imprescindível no conjunto de possibilidades para se entender as dinâmicas sociais. É ele que serve de elo direto para as práticas corriqueiras dos agentes que formalizam suas vontades, ações e sentimentos num meio composto de infinitas percepções de mundo; de uma multiplicidade de olhares que criam uma grande dicotomia até mesmo para os observadores de tantas apreensões, que tentam superar considerações estruturais e subjetivas como maneiras uniformes de entendimento do todo social. Um corpo que é ao mesmo tempo participativo e passivo na teia das relações sociais, mas que deixa sua presença marcada para a existência das mesmas. Assim nos diz Le Breton,
Do corpo nascem e se propagam as significações que fundamentam a existência individual e coletiva; ele é o eixo da relação com o mundo, o lugar e o tempo nos quais a existência toma forma através da fisionomia singular de um ator. Pela corporeidade, o homem faz do mundo a extensão de sua experiência. Emissor ou receptor, o corpo produz sentidos continuamente e assim insere o homem, de forma ativa, no interior de dado espaço social e cultural (2010, p.7-8).
Por meio de uma nova análise, Foucault amplia essa abordagem historicista-linear de entendimento dos processos de socialização mediante o corpo e nos lega uma nova leitura, intrigante e ao mesmo tempo polêmica, visto que o autor desenvolve um conjunto de obras que se revela em três períodos demarcados, a saber a fase arqueológica, a fase genealógica e da ética, e nos esboça uma compreensão histórica mais próxima de uma descontinuidade, que analisa elementos dispersos que ganham lógica a partir da imbricação em um momento histórico preciso, fazendo surgir saberes aliados a poderes específicos que se utilizam dos corpos para se legitimar, propagando discursos em meio às instituições que surgiram com a ascensão do sistema capitalista.
Surge assim uma anatomia política do corpo (FOUCAULT, 1987, p.119), pois, para Foucault (1979), no século XVIII, surge uma nova arte do corpo humano. Essa nova forma de socializar os indivíduos não está atrelada ao regime de soberania real. O rei perde o seu poder, e o poder agora passa a exercer sua hegemonia nas microlocalidades, especialmente nas instituições que surgem com o sistema capitalista, que agora passam a ser conhecidas como instituições disciplinares. Escolas, exército, fábricas, conventos, prisões, todos são locais onde a percepção dos indivíduos passa a seguir uma lógica que se atrela a técnicas específicas que servirão para adestrar todos aqueles que estão sob o seu manto. A disciplina assim aparece trazendo uma regulação que submete aqueles que estão sob seus auspícios a um regime de corporificação de hábitos, gestos, comportamentos e atitudes. É uma organização que classifica os indivíduos e que, ao mesmo tempo, produz um saber sobre eles que ganha status de legitimidade. Destaca Foucault:
Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Se encontrou facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo ? ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam (1987, p.117).
Assim, a disciplina surge como um conjunto de técnicas e procedimentos que servem para nortear os indivíduos e organizá-los, estabelecendo regras que devem ser obedecidas e seguidas por meio de um sistema de obediência e submissão. Foucault (2003) constata que esse regime disciplinador provoca uma grande ortopedia social, visto que ele desenvolve um regime social baseado no controle constante e efetivo dos indivíduos. Nessa era de uma sociedade disciplinadora, que reconhecemos ainda a sua presença nos tempos atuais, as instituições disciplinares funcionam como instituições de sequestro, especialmente do tempo, dos corpos e das forças dos indivíduos que estão sujeitos à sua lógica.
Dessa maneira, as instituições prisionais são vistas como disciplinadoras por excelência e Foucault (1987) nos mostra como, a partir do século XVIII, o mundo europeu começou a implementar novas políticas de substituição do regime de penas aplicadas aos delitos praticados em sociedade e demonstra como os antigos suplícios corporais, de caráter violento e repressivo, sofreram modificações que suscitaram novas maneiras de administrar as penalidades e infrações. Num processo que associou vários elementos, num todo complexo, a punição ganhou uma conotação até então não utilizada, e o seu encontro com os nascentes regimes disciplinadores desencadeou uma analítica da coerção baseada num controle direto sobre os corpos, que a partir de então passaram a não mais ser castigados e sim vigiados, observados, onde vários olhares passaram a perscrutar todos aqueles que estavam sujeitos à dinâmica das minúcias vinculadas aos gestos e exercícios corporais.
Mesmo os reformadores e legisladores dos códigos penais da Europa do século XVIII não entendendo o porquê de diferentes delitos terem a mesma pena ? no caso, a prisão ? Foucault nos mostra que um pensador inglês gerou um pensamento que superou o regime suplicial e teve suas análises sobre os mundos prisionais, que tinham características que se estendiam a outras instituições como as escolas, exércitos e fábricas, avaliadas em grandes sessões políticas e jurídicas que buscavam novas estruturas sociais de regulação dos comportamentos. Assim, Jeremy Bentham, no século XVIII, nos descreve como deveriam ser as novas instituições de correção, que teriam como foco principal o controle, a inspeção e a vigilância dos indivíduos.
Tal fenômeno foi descrito como panoptismo por Foucault (1987) e o seu idealizador o denominou de Panóptico (BENTHAM, 2008). A lógica do sistema panóptico obedeceria a uma forma arquitetural própria. O próprio Bentham nos descreve que o edifício deveria ser circular e que a sua essência consiste, pois, na centralidade da situação do inspetor, combinada com os dispositivos mais bem conhecidos e eficazes para ver sem ser visto (2008, p. 20-28, grifos do autor). O autor acreditava que os indivíduos deveriam estar sob a presente impressão de estarem sendo sempre inspecionados e controlados. Mas a disposição pensada por Bentham nunca foi implementada e Foucault, fazendo uma releitura desse princípio arquitetônico na tentativa de explicar a nova lógica de surgimento das prisões na Europa, como modelo de correção dos sujeitos delituosos, nos traça um perfil baseado no pensador inglês e nos relata,
O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; a construção periférica é dividida em celas [...]. O Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto (1987, p.165-167, grifo do autor).
Foucault nos mostra, ao analisar o princípio panóptico, que um mecanismo de controle e vigilância permanente foi pensado como modelo ideal das instituições disciplinares e esse sistema se adapta com o decorrer dos tempos e ganha formatações diferenciadas sem perder a sua essencialidade. Com o Panóptico, uma sujeição real nasce mecanicamente de uma relação fictícia (Ibidem, p.167), e os sujeitos passam a criar campos de percepção voltados à correção constante de comportamentos e maneiras de agir, o que já não basta o fato de existir alguém que possa vigiá-los, pois essa observação permanente se alastra e quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as limitações do poder; fá-las funcionar espontaneamente sobre si mesmo; inscreve em si a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os dois papéis; torna-se o princípio de sua própria sujeição (Foucault, 1987, p.168). O autor ainda amplia sua análise:
O panoptismo é o princípio geral de uma nova "anatomia política" cujo objeto e fim não são a relação de soberania mas as relações de disciplina. É um tipo de implantação dos corpos no espaço, de organização hierárquica, que se podem utilizar nos hospitais, nas oficinas, nas escolas, nas prisões. Cada vez que se tratar de uma multiplicidade de indivíduos a que se deve impor uma tarefa ou comportamento, o esquema panóptico poderá ser utilizado (1987, p. 170).
Portanto, Foucault nos revela que uma nova lógica descortina-se nesse período específico de ascensão do capitalismo, época que o autor denomina de era clássica, em que os conceitos marxianos atrelados à ideologia não são capazes pó si sós de explicar tais mecanismos, que se distanciam, assim, de uma continuidade puramente econômica, colocando uma inversão analítica em que o econômico é produto direto de uma construção associada a efeitos de poder, que são consolidados com caráter positivo, bem como, onde o viés contratualista não seria figura da vontade dos agentes sociais, e sim, também, efeito desse poder que passou a disciplinar e controlar os corpos dos agentes sociais num modo específico de socialização.
Ainda ampliando sua análise dessa nova socialização através de um adestramento específico dos corpos com base na disciplina, Foucault decreta que concomitante ao desenvolvimento do poder disciplinar nas instituições, a era clássica também viu surgir um poder mais globalizante, exterior, que foi denominado de biopoder. Esse poder sobre a vida surge a partir do momento que os Estados Modernos criam mecanismos de regulação sobre as populações, preocupando-se em exercer padrões de controle através do levantamento do número de nascimentos e mortes dos indivíduos, nível de saúde, longevidade, ou seja, uma bio-política da população (FOUCAULT, 1988, p. 152). Ainda esclarece o autor:
As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida. A instalação ? durante a época clássica, desta grande tecnologia de duas faces [...] voltada para os desempenhos do corpo ? caracteriza um poder cuja função mais elevada já não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima a baixo (1988, p.152).
2. O corpo numa dimensão de lutas: estrutura e pseudo-subjetividade
Se para Foucault, se faz necessário uma análise das novas apreensões corporais para se entender uma nova aparição de regimes socializadores, para Bourdieu é imprescindível que se analise o corpo para se compreender os processos sociais que se implementam, pois, para o autor, aprendemos pelo corpo (BOURDIEU, 2001, p.152). Mas a análise dessa aprendizagem perpassa as formas que os agentes sociais sofrem para que uma incorporação aconteça, o que o autor nos explica tentando dar uma resposta, dentro de sua sociologia reflexiva, à dicotomia estabelecida entre subjetividade e estrutura social. Cria-se assim um elo de coesão que se traduz nos conceitos bourdianos de habitus e campos.
Para um entendimento bourdiano de socialização mediante o corpo, o autor retrata e amplia sua compreensão caracterizando uma apreensão corpórea dentro de um espaço social específico, não sendo esse estritamente um ambiente físico, mas uma localização específica onde são inseridos agentes que são formatados por uma absorção "não consciente" dos elementos do mundo (através de uma abordagem puramente antiescolástica, negando uma visão subjetivista e espiritualista plena, que acredita na existência de um sujeito dotado de autonomia), onde o mundo se faz e se reflete nos corpos humanos mediante disposições coerentes e reguladas, que são retransmitidas ao mundo dando-lhe uma estruturação para mantê-lo coeso e compreensível. Citando Hegel, Bourdieu nos diz que "o corpo, tendo a propriedade de estar aberto e exposto ao mundo, está sujeito a um processo de socialização cujo produto é a própria individuação, a singularidade do "eu" sendo forjada nas e pelas relações sociais" (2001, p.163).
Por essa lógica, Bourdieu se vale de sua conceituação de habitus para explicar essa utilização dos corpos, que constroem sujeitos que se movem em campos específicos dotados de uma história corporificada, que se reflete no espaço social com modos próprios de existência, com autonomia estruturada e em condições regimentadas por estruturas ocultas vinculadas à produção de poderes que vão além de um modo econômico de produção, mas que não nega uma classificação e uma segmentação de grupos que se coadunam em relação à apropriação de elementos materiais, culturais, simbólicos e ideológicos. É uma estrutura estruturada que se torna ao mesmo tempo estruturante através das ações, sentimentos, pensamentos e atitudes dos agentes sociais, mediante um componente físico que é o corpo. Para Bourdieu o que está inscrito no mundo é um corpo para que se possa existir um mundo, incluído no mundo, mas segundo um modo de inclusão irredutível à simples inclusão material e espacial (2001, p.165).
Assim, Bourdieu nos traz o conceito de habitus dando um novo enfoque da herança aristotélica de hexis, a partir desse ponto não mais interpretado como uma condição de um sujeito pleno construído pela filosofia da consciência, mas como uma percepção que enxerga disposições duradouras e transponíveis em que a noção serve para referir o funcionamento sistemático do corpo socializado (2007, p.62). Assim define Bourdieu,
Os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência produzem habitus, sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins e o domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los (2009, p.87, grifos do autor).
Nesta concepção categórica de habitus, Bourdieu não nega a ação socializante dos atores sociais, os vendo como ativistas de uma praticidade construtiva, quando utilizam seus corpos numa lógica da ação voltada para a manutenção do escopo estrutural da sociedade. A tônica central desse princípio é uma configuração estabelecida pelos próprios comportamentos dos agentes sociais, que descortinam relações que são percebidas com caráter de autonomicidade, mas, que na verdade, escondem um foco de lutas constantes dentro de um espaço delimitado, mas que podem ser ultrapassados ? daí a compreensão de um habitus transponível. Essa pseudo-subjetividade dos agentes, sem negar suas atividades, gera comportamentos determinados e esperados, de acordo com a apropriação simbólica e cultural de uma dicotomia abrangente que opõe dominantes e dominados, patrões e empregados, superiores e inferiores.
Essa situação paradoxal se implementa numa região socialmente construída e que serve de suporte conceitual para o entendimento do habitus. Surgem, assim, os campos; elementos multifacetados (campos econômico, artístico, cultural, acadêmico, escolar) que se descortinam e que são analisados muito além de uma mera percepção econômica voltada para a apropriação de ganhos e lucros materiais e financeiros. Os campos são locais de batalhas e lutas pela manutenção de um status quo existente, onde tais entraves se consolidam diretamente através dos corpos que estão atrelados à perpetuação de habitus específicos, não importando se sejam atitudes interessadas ou desinteressadas. Amplia Bourdieu:
Compreender a gênese social de um campo, e apreender aquilo que faz a necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram, é explicar, tornar necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do não-motivado os atos dos produtores e as obras por eles produzidas, e não, como geralmente se julga, reduzir ou destruir (2007, p.69).
Nesse contexto de lutas por capitais variados, a presença dos agentes sociais dentro das fronteiras dos campos nos quais estão inseridas suas práticas e disposições gera um ato de pertencimento e de presença, condição essa denominada por Bourdieu de illusio, onde a mesma constitui o campo como espaço de jogo e faz com que os pensamentos e as ações possam ser afetados e modificados a despeito de qualquer contato físico ou na falta de qualquer interação simbólica, em particular na e pela relação de compreensão (BOURDIEU, 2001, p.165, grifo do autor). É a inserção dos corpos num mundo tornado compreensível por conta de regularidades adquiridas mediante a presença dos sentidos e do cérebro, numa relação de construção de um conhecimento do mundo pelo corpo, onde esse antecede comportamentos absorvidos de uma estruturação presente neste próprio mundo e remete a esse universo configurações práticas e estruturantes que mobilizam um senso de organização constante.
Portanto, Bourdieu percebe um sentido socializador atrelado a um corpo que é o veículo necessário de uma condição dualista de construção do mundo social que cria, ao mesmo tempo, o mundo objetivo que reflete sujeitos objetivados que servem de suporte para a objetivação de seus campos de ação, tornando verdade um jogo de dominação que opera em favor de um poder mascarado, dissimulado, mas que não retira a chance de todos operarem suas atitudes e condições de existência, em menor ou maior grau, pois o corpo está no mundo social, mas o mundo social está no corpo, a história se comunica de algum modo consigo mesma, reflete-se nela própria (BOURDIEU, 2001, p.185). Ainda ratifica o autor,
Somente existem ação, história, conservação ou transformação de estruturas, porque existem agentes irredutíveis ao que o senso comum e o "individualismo metodológico" introduzem na noção de indivíduo e que, enquanto corpos socializados, são dotados de um conjunto de disposições contendo ao mesmo tempo a propensão e a aptidão para entrar no jogo e a jogá-lo com maior ou menor êxito (2001, p.190).
3. O corpo como elemento político de poderes
As análises de Foucault e Bourdieu sobre o corpo como elemento de socialização permitir-nos-á fazer uma abordagem dos elos e imbricações existentes entre os dois autores, cujo objetivo é de "construir" uma analogia de compreensibilidade sobre suas fundamentações teóricas, sem esquecer, no entanto, as especificidades que norteiam o pensamento de cada um em particular.
Tanto Foucault como Bourdieu perceberam a aparição de um elemento abstrato que seria o agente primordial na construção de uma nova apreensão do corpo, num contexto socializado de relações. Para Foucault, a era das disciplinas tinha como causa imediata um poder que se fazia aparecer através de mecanismos, técnicas, táticas, dispositivos, ou seja, um poder normalizador que o autor denominou de disciplinar. Um poder que se apropriou dos corpos tornando-os úteis e dóceis, domesticando comportamentos individuais no seio de instituições para fazer suas forças serem distribuídas num meio coeso de uniformização, onde tal poder não pode ser possuído nem dominado, porque ele passa pelos corpos causando uma sujeição "voluntária" com um caráter de positividade, o que nega a noção de um poder repressivo e violento.
Esse poder disciplinar, que se aliou a um poder de normalização das populações (biopoder), surgiu concomitante à aparição de saberes próprios das ciências humanísticas ? psiquiatria, psicologia, sociologia -, gerando um conhecimento sobre todos aqueles que estão atrelados à sua lógica, e fornecendo um caráter de legitimação à ciência, por tratar-se de um conhecimento com critérios de verdade verificáveis e objetivados. Os corpos agora, desconsiderando a noção de sujeito, pois este é o próprio construtor de um conhecimento sobre si mesmo, passam a ser classificados, e os indivíduos, de acordo com o saber acumulado sobre eles, são considerados e nominalizados como normais ou anormais, bastando para isso que aceitassem, ou não, as regras dos procedimentos normalizadores que passaram a ser disseminados por meio de discursos e práticas, numa relação estabelecida entre o saber-poder.
Um poder que se estabelece e que utiliza até mesmo o Estado como efeito de suas articulações, e que delega ao plano das pequenas relações as suas nuances, pois todos estão confiscados por seus procedimentos. Vemos, então, na visão de Foucault, uma socialização onde o embate político dos agentes sociais é coibido pela sujeição dos corpos ao regime disciplinador da norma, e onde o poder não está estabelecido entre classes de dominantes e dominados, mas a efetivação econômica se concretiza a partir de uma manipulação "ideológica" que faz o poder disciplinar aproveitar o máximo possível das forças individuais para a produção de diversos elementos, e que acabam, também, fortalecendo a força de manutenção do status dominante daqueles que possuem as condições materiais de existência. É uma lógica invisível que se efetiva pela visibilidade de sujeição dos corpos humanos. Declara Foucault,
O investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho é possível se ele está preso num sistema de sujeição; o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso (1987, p.25-26).
Enquanto Foucault denomina de poder disciplinar e biopoder os agentes de dominação sobre os corpos dos indivíduos e sobre as populações que geram mecanismos de controle sobre os mesmos, Bourdieu destaca a existência de um poder que também se oculta para legitimar-se no meio social estabelecido, nesse caso, em específico, em campos delimitados onde os agentes socializam os habitus decorrentes da incorporação adquirida do meio social circundante e historicamente determinado. O autor denomina de poder simbólico esse mecanismo presente nas relações de luta entre as classes que se encontram nos campos, onde sua apropriação dá-se mediante um não reconhecimento de sua existência por parte daqueles que a ele estão submetidos. Destaca Bourdieu sobre a percepção desse poder:
É necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem (2007, p.7-8).
Esse poder, quando apropriado, é utilizado pelos indivíduos que compartilham habitus homólogos, que despendem as mesmas disposições e que traçam trajetórias sociais que ajudarão na manutenção do grupo ao qual pertencem, o que pode ser avaliado, no caso de grupos que dominam o capital econômico e o capital cultural, como uma produção de violência simbólica, pois a ruptura com uma maneira específica de viver, não garante participação plena nos grupos aos quais se ascendeu. Assim, uma mesma visão de mundo numa classe determinada produz um "etos de classe", expressão bourdiana que caracteriza o pertencimento a uma classe com disposições semelhantes. Esse pertencimento a uma classe pode fugir à consciência dos indivíduos e os mesmos podem cair na ilusão da escolha, quando na verdade, através dos mecanismos do poder simbólico, o que todos fazem é apenas reproduzir o habitus que está incorporado devido às relações de interiorização objetiva e de exteriorização subjetiva
O poder simbólico assim acumulado enseja a utilização de instrumentos simbólicos onde "os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam" (BOURDIEU, 2007, p.11). Citando Weber, Bourdieu se aproxima de Foucault e nos diz que esse processo serve para a "domesticação dos dominados" (ibidem, p.11). Esse poder simbolizado centra-se na lógica do ocultamento dentro dos campos aos quais se insere e se faz mostrar irreconhecível, produzindo uma violência objetivada e transformando capitais diversos em capitais simbólicos apropriados por aqueles que reconhecem sua legitimidade de dominação.
A naturalização do mundo social assim se expande numa conjuntura dentro de campos determinados, pois o próprio poder simbólico concretiza-se, também, por meio de uma configuração dialética atrelada ao modo de utilização dos sistemas simbólicos pelos atores sociais. Esses sistemas, que também são estruturados, ao mesmo tempo que são estruturantes, fazem assim surgir um poder simbólico que se reflete no mundo social estabelecendo ordem e sentido, mas a partir da concepção de uma visão comum que se solidariza pelos agentes de uma mesma classe social.
As diferentes classes e frações de classes estão envolvidas numa luta propriamente simbólica para imporem a definição do mundo social mais conforme aos seus interesses, e imporem o campo das tomadas de posições ideológicas reproduzindo em forma transfigurada o campo das posições sociais (2007, p.11).
Por esse escopo, o corpo está colocado num campo constante de lutas e também acaba se naturalizando de acordo com um contexto que exige que as escolhas corporais estejam atreladas à dinâmica estabelecida pelas escolhas sociais dos grupos de pertencimento. A perpetuação dos campos consiste, portanto, na utilização dos movimentos corporais de acordo com as disposições predispostas entendidas como escolhas, numa crença atributiva à vontade, aliada à utilização, dentro de mecanismos ideológicos utilizados pelos mesmos agentes de uma classe que gera e estrutura o poder simbólico. Explica-nos Bourdieu sobre a praticidade dos corpos dos agentes (habitus) que criam sentido de acordo com a conformidade com o mundo e que enseja uma aparição oculta de poder presente entre as classes:
O senso prático, necessidade social tornada natureza, convertida em esquemas motores e automatismos corporais, é o que faz com que as práticas, em e por aquilo que nelas permanece obscuro aos olhos de seus produtores e por onde se revelam os princípios transubjetivos de sua produção, são sensatos, ou seja, habitados pelo senso comum. É porque os agentes jamais sabem completamente o que eles fazem que o que fazem tem mais sentido do que imaginam (2009, p.113, grifo do autor).
Outro ponto de aproximação entre Bourdieu e Foucault diz respeito ao atrelamento dos corpos que se socializam nas instituições próprias de uma era capitalista. Foucault chama de disciplinamento à socialização corporal nas instituições, enquanto Bourdieu reconhece que as instituições são campos montados e objetivados que dependem para seu funcionamento das disposições duráveis próprias dos agentes sociais. Bourdieu (2009) nos afirma que o habitus que se atrela ao corpo é o meio pelo qual a instituição encontra sua plena realização,
A instituição, caso se tratasse de economia, só é completa e completamente viável caso se objetive duravelmente não somente nas coisas, ou seja, na lógica, transcendente aos agentes singulares, de um campo particular, mas também nos corpos, isto é, nas disposições duráveis em reconhecer e em efetuar a(s) exigências imanentes a esse campo ( p.95).
Numa percepção política, os dois autores também questionam uma autonomia de um sujeito pleno de suas construções e efetivações dos comportamentos sociais a que estão atrelados, pois Foucault delimita o sujeito a um conceito e destaca esse último como agente social enquanto "é obediente, o indivíduo sujeito a hábitos, regras, ordens, uma autoridade que se exerce continuamente sobre ele e em torno dele, e que ele deve deixar funcionar automaticamente nele (1987, p.106). Para Bourdieu, o sujeito ficou relegado a uma visão transcendente de uma época escolástica, pois sua subjetividade não é capaz de existir numa apreensão conceitual que leva em consideração a noção de habitus e campo. Nos dois casos, vemos a consolidação de um sistema que capta a reflexão política do indivíduo que está dominado por seus mecanismos, mas o que não impede uma via de escape para a tentativa de "resistir" ou de quebrar com a "ortodoxia" dominante.
Considerações Finais
Foi possível, à luz de dois teóricos que desenvolveram teorias de grande validade à ciência sociológica, desenvolver uma apreensão argumentativa que se centrou, especificamente, numa visão socializadora que viu no corpo um elemento fundamental de análise. A fundamentação voltou-se para contextos consolidados que delimitaram a importância de uma corporalidade na existência e efetivação das relações que os indivíduos disseminam no meio social e a própria percepção que cada agente desenvolve dentro do processo ao qual está submetido já que é, ao mesmo tempo, construtor de praticidades.
Foi visto na teoria foucauldiana que o século XVIII viu emergir um novo tipo de poder que desenvolveu seus mecanismos nas nascentes instituições que surgiram com o sistema capitalista, locais esses que foram invadidos por um disciplinamento direto dos corpos dos indivíduos, atrelando-os a uma lógica de repetição de gestos, atitudes e comportamentos, produzindo sujeitos úteis e docilizados, que passaram a ter seus corpos constantemente vigiados e controlados. Além disso, as populações também entraram no jogo de um poder específico e controlador. Ambos os poderes, atuando mediante mecanismos específicos, aliaram-se numa relação direta com saberes que legitimaram as ciências humanas, dominando, assim, os corpos, por meio de um regime de verdade estabelecido.
Em Bourdieu, percebeu-se que o processo de socialização corporal esteve atrelado a um conjunto de disposições duráveis e transponíveis, que são incorporados de acordo com uma história específica dos agentes sociais que se encontram em determinados espaços sociais conhecidos como campos. Nessas localidades espaciais, trava-se uma luta pela apropriação de capitais variados, mas que não se resumem apenas a capitais econômicos, em que as disposições dos agentes são estruturadas objetivamente pelo mundo circundante e, ao mesmo tempo, esse habitus se reflete no meio social dos campos estruturando-os numa produção dialética.
Por fim, se estabeleceu pontos de compreensão aproximados entre os pressupostos teóricos dos dois autores, onde se destacou a existência de poderes ocultos que atuam na composição dos processos socializadores do corpo tendo esses poderes efeitos distintos e objetivos específicos para suas existências. Além disso, foi possível perceber-se nas duas teorias a presença da socialização dos corpos individuais nas instituições, elemento mais marcante e foco central na teoria de Foucault. O sujeito também foi problematizado visto que sua atuação está presa a uma combinação de exclusão política mediante os poderes estabelecidos e uma negação de sua existência autônoma, ficando sua delimitação presa ao plano do conceito, visão compartilhada dentro de suas peculiaridades por Foucault e Bourdieu.
Referências
BENTHAM, Jeremy et al. O panóptico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
______.O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
______. O senso prático. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
¬¬______. Vigiar e punir: história das violências nas prisões. Rio de Janeiro: Vozes, 1987.
______. História da sexualidade I. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
______. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Ed. Nau, 2003.
LE BRETON, Daniel. A sociologia do corpo. 4. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.