Direito, literatura e educação: A drogadição infantil provocada pelos pais, em "A vingança da peroba", conto de Monteiro Lobato

Por Márcia Belzareno dos Santos | 19/08/2012 | Direito

Direito, Literatura e Educação: a drogadição infantil provocada pelos pais, em “A vingança da Peroba”, conto de Monteiro Lobato

                                                                                                        Márcia Belzareno dos Santos 

                                          CIDADANIA FAMILIAR

                                            A família é um tipo de comunidade, cujo núcleo é o lar.

                                           Cada um dos seus integrantes tem seus direitos e deveres.

                                           Os pais são provedores e educadores e os filhos, seus dependentes

                                            a caminho da independência.

                                            Esta é uma missão quase divina, pois os pais partem do nada para

                                            construir cidadãos do mundo. As crianças herdam dos pais a língua,

                                            o sustento, a cultura, a ética. Os pais têm um prazo para esta

                                            construção, que é curto para eles, mas longo para os filhos.

 

                       (IÇAMI TIBA, In: Família de Alta Performance – conceitos contemporâneos na Educação)

                                           Indubitavelmente, o uso incontrolável de drogas e a desmantelação da família têm sido apontadas, não por acaso, como as verdadeiras causas da violência e da desordem social assistidas pela humanidade nos dias de hoje.

                                          Nesse sentido, podemos dizer, sem medo de exagerar, que desses dois fatores – uso de drogas e desestruturação familiar – decorrem boa parte de  outros crimes de origem e consequências também trágicas, como os homicídios passionais, as mortes no trânsito, a pedofilia, a corrupção, etc.  Afinal, é da família, principalmente, que tiramos a base emocional que acompanhará nossos atos para o resto de nossas vidas e é com ela que aprendemos noções de certo e de errado, de ética e de cidadania.

                                           Inúmeras discussões a respeito da necessidade de maior controle do uso de drogas e da maior assistência às famílias atingidas por problemas de drogadição têm sido promovidos no mundo inteiro, por instituições públicas e privadas. A procura dos responsáveis por esse colapso humano e social tem sido realizada obstinadamente e, é claro, como a maioria dos assuntos que dizem respeito a comportamento,  muitas perguntas e poucas respostas têm sido encontradas.

                                           Afirmar que a responsabilidade pela organização familiar e pelo combate ao uso de drogas seria exclusivamente dos governos, através da edição de leis mais rígidas; ou da escola, através de projetos pedagógicos mais pontuais; ou mesmo que tudo começa na família e que seria dela esse encargo,  seria uma resposta simplista e excludente, que estaria muito longe da verdade, mais longe ainda de uma solução, ainda que paliativa.

                                           Jaime Cordeiro, um dos teóricos da educação mais lidos atualmente, lembra-nos de que é impossível fazer a separação entre educar e instruir. Tanto quanto cabe às famílias cuidar do comportamento, da moral e da ética de seus familiares, sobretudo das crianças e dos adolescentes, cabe também à escola, ao poder público e à sociedade esse dever.

                                           Educar e instruir, parece-nos, estão ligados, na mesma proporção, a oferecer à criança e ao jovem de hoje, adultos de amanhã, uma família que zele pela saúde e pelo bem estar físico e espiritual de seus menores, para um futuro equilibrado e longe das drogas.

                                           Nesse sentido, o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, preconiza, em seus primeiros artigos, entre outros:

                                          Art. 1º. Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.

                                          Art. 2º  Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.

                                          Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade.

                                          Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimeto físico, mental, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

                                          Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos Direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

                                          Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:

                                       a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;

                                       b) precedência de atendimento nos serviçios públicos ou de relevância

                                           pública;

                                       c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;

                                       d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas

                                          com a proteção infância e juventude.

                                          Ocorre, entretanto, que muitas vezes é justamente no seio das famílas, onde deveriam estar sendo introduzidos os mais importantes valores de respeito à vida, à dignidade humana e à saúde do corpo e da alma, o local onde começam os mais atrozes hábitos e os mais terríveis vícios.

                                           Na ficção literária lobatiana, o menino Pernambi, personagem de um dos contos de Monteiro Lobato, é exemplo marcante e profundamente real de criança introduzida no mundo dos vícios pelo próprio pai:

                                          […] Filho homem só tinha José Benedito, de apelido Pernambi, um passarinho desta alturinha, apesar de bem entrado nos sete anos.[...]

                                          […] O seu consolo era amimar Pernambi, que aquele ao menos logo estaria no eito, a ajudá-lo no cabo da enxada, […] Pegava, então, do menino e dava-lhe pinga. A princípio com caretas que muito divertiam o pai, o engrimanço pegou lesto no vício. Bebia e fumava, muito sorna, com ares palermas de quem não é deste mundo. Também usava faca de ponta à cinta.

                                         - Homem que não bebe, não pita, não tem faca de ponta, não é homem – dizia Nunes.

                                          Nesse trecho, fica bem clara a firme intenção do pai em, deliberadamente, introduzir o filho no mundo do àlcool e do cigarro, como forma de passar os seus valores, ainda que deturpados, à cabecinha do filho, com recém sete anos de idade. O pai do menino também mostra a sua satisfação em tê-lo como alguém que, em seguida, o estaria ajudando ou, quem sabe até,  o substituindo no trabalho pesado da enxada, denotando a falta de preocupação do pai com um futuro mais promissor para o filho. E isso não acontece apenas na literatura. Todos os dias, crianças saem a trabalhar, a pedir esmolas nas ruas, a se submeter aos trabalhos mais aviltantes para, no final do dia, trazerem o sustento da famíla, assumindo, muito cedo, obrigações que, em verdade, seriam exclusivamente dos adultos, sobretudo dos pais. 

                                         Augusto Cury, em seu livro Superando o cárcere da emoção, diz que a memória da criança é como uma folha em branco, pronta para ser escrita. E que, embora aos sete anos de idade,  uma criança já tenha milhões de experiências arquivadas, a primeira impressão, o primeiro ensinamento ou conceito que ela ouve e assimila sobre um determinado assunto é o que mais impressiona a personalidade e a ela se incorpora. 

                                          Ainda segundo Augusto Cury,  o mesmo acontece com a receptividade  em relação ao uso das drogas. Aquilo que as crianças e adolescentes ouvirem e aprenderem a respeito das drogas irá construir um conceito, um significado ou uma representação psicológica das drogas em suas personalidades que, positivo ou negativo,  muito dificilmente poderá ser apagado. 

                                          E o uso de drogas e a desetruturação da família trazem consequências não só para o indivíduo usuário de drogas, mas para todo o grupo que está em seu entorno, que acabam vitimizados por  uma série de delitos que vão desde comportamentos disciplinarmente e eticamente reprováveis, como é o caso exemplificado abaixo, até os crimes mais bárbaros, juridicamente puníveis. 

                                           Foi assim que o menininho Pernambi, de apenas sete anos, além de introduzido no álcool e no tabaco, rapidamente intuiu, com a inconsequência de quem tem tão pouca idade, que poderia cometer igualmente outras transgressões, permitidas “a quem fosse homem de verdade”, passando a agir com a liberdade que o fato de ser um “iniciado” nas drogas lhe concedia: 

                                          E cônscio de que já era homem, o piriquinha batia nas irmãs, cuspilhava de esguicho, dizia nomes à mãe, além de muitas outras coisas próprias de homem.[...]                                         

                                           Como diz Gabriel Chalita, em A solução está no afeto, na vida familiar  é que acontece o primeiro contato do cidadão com o mundo. O exemplo materno e o paterno, a alimentação, as informações recebidas do mundo externo, os medos, as ambições. E esse processo, ainda segundo Chalita, continua por toda a vida. 

                                            No caso de Pernambi, foi o exemplo paterno ou, melhor dizendo, a exigência paterna que o fez viciado e perverso. Bebia, fumava, maltratava e desrespeitava mãe e irmãs. Tudo com o consentimento e a aprovação do pai, que, através da bebida e do cigarro, o ensinava a “ser homem”. E, infelizmente, essa é a realidade de muitas famílas pelo mundo inteiro. Vítimas do tráfico de drogas e da desorganização familiar, cedo são introduzidas no submundo do crime pelos próprios parentes ou pessoas próximas. 

                                            A consequência, invariavelmente, tem sido a tragédia familiar e social. Pais matando filhos. Filhos matando pais, avós, amigos. Motoristas alcoolizados  matando inocentes em acidentes de trânsito. Crianças sendo recrutadas pelo tráfico de drogas, sendo perdidas para a prostituição infantil. 

                                            No conto de Monteiro Lobato, a criança, então já viciada em álcool e a pedido do próprio pai, embriaga-se junto: 

                                          Afinal, veio a desgraça. […]

                                         [...] Sorveu um gole e:

                                          - Pernambizinho; vem cá. Bebe com teu pai, meu filho.

                                         O menino não esperou novo convite: bebeu um, dois e três goles, estalando a língua. O resto da garrafa soverteu-se no bucho do caboclo. 

                                       Em solidariedade à situação do pai, um fracassado na vida e na profissão, o menino bebe junto, até ficar completamente bêbado. Note-se que, como já foi dito,  é o próprio pai que pede para o menino beber e, despreocupadamente, deita-se ao sol para dormir, não se importando com a bebedeira do filho de apenas sete anos:                               

                                       Mal tonteado pelos aflúvios do álcool, o menino banzou um bocado por ali e depois saiu. Nunes estirou-se ao sol para dormir.

                                          Transcorrida uma hora o bêbado acordou, relanceou em torno os olhos mortiços:

                                              - Quedele Pernambi ? - disse às filhas […]

                                              As meninas não sabiam do irmão.

 

                                             Na verdade, nessas situações, os pais mostram não serem responsáveis nem por eles próprios, muito menos pelos filhos. Monteiro Lobato traduz muito bem a situação deplorável do pai do menino: 

                                               - Chamem Pernambi – engrolou o bêbado, recaindo em cochilo.

                                              Uma das pequenas saiu no encalço do menino.                                             

                                               Os olhos de Nunes a custo se abriam; sua cabeça oscilava, como se lhe houvessem desossado o pescoço. Da boca escorria-lhe baba, e molhadas nela as palavras vinham vagas, mal atadas. 

                                                Assim como na vida real, também no conto de Monteiro Lobato, após o uso reiterado de drogas,  a irresponsabilidade do pai em convidar o próprio filho de sete anos para compartilhar a  desgraça de ser um fracassado, bebendo junto com ele, vem a tragédia. E essa tragédia é familiar, é social, é de todos. Não só do pai irresponsável e da criança vitimizada: 

                                                Súbito, um grito lancinante ao longe alvorotou a casa.

                                                Silêncio trágico.

                                                 Depois novos gritos – gritos em coro –, gritos de desespero.

                                                  - Coitadinho do meu filho! - uivava lá longe a mãe.

                                                  Nunes soergue-se, amparado ao portal.

                                                  - Que é isso? Grunhe.

                                                  Para lá segue o bêbado, cambaleante.

                                                   Arrostando com o marido, a pobre mãe fuzila nos olhos um raio de cólera incoercível.

                                                   - O que é? É tua obra, cachaceiro do inferno! É tua pinga, homem à toa, esterco imundo! Vá ver, vá ver, vá ver, desgraçado!...

                                                   Nunes alcança o monjolo com dificuldade. E topa com um quadro horrendo. No meio das filhas em grita, o corpinho magro de Pernambi de borco no pilão. Para fora, pendentes, duas pernas franzinas – e o monjolo impassível, a subir e a descer, pilando uma pasta vermelha de farinha, miolos e pelanca...

                                                    Cena lúgubre foi aquela! Entre rugidos de cólera o louco arremessava golpes tremendos contra o engenho assassino. Longo tempo durou o duelo trágico da demência contra a matéria bruta. Por fim, quando o monjolo maldito era já um monte escavado de peças em desmantelo, o mísero caboclo tombou por terra, arquejante, abraçado ao corpo inerte do filho. Instintivamente sua mão trêmula apalpava o fundo do pilão em procura da cabecinha que faltava.

                                                     É desta forma que Monteiro Lobato termina o conto: o pai procura, no monjolo de triturar  milho, restos do corpo do filho que ele ensinou a beber, para ser um homem de verdade.

                                                   Quantos corpos ou restos de corpos de crianças, vítimas de maus tratos, são encontrados, por dia,  em todo o mundo ? Monteiro Lobato, em 1915, já antevia a resposta. 

Bibliografia:

CHALITA, Gabriel. Educação: a solução está no afeto. São Paulo:Editora Gente, 2004

CORDEIRO, Jaime. Didática. São Paulo:Editora Contexto, 2010

CURY, Augusto. Superando o cárcere da emoção. São Paulo: Editora Plabneta do Brasil, 2006

LOBATO, Monteiro. A vingança da Peroba. In: Urupês. São Paulo:Editora Globo, 2008

TAVARES, José de Farias. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Rio De Janeiro: Forense, 2002

TIBA, Içami. Família de alta performance – conceitos contemporâneos na educação. São paulo: Integrare Editora, 2009