Dinheiro não traz felicidade, mas dá um grande empurrão

Por Antonio Anicete De Lima | 03/12/2010 | Crônicas

Desde muito cedo, sempre gostei de juntar um dinheirinho, sempre pensando nos momentos de adversidade. Como um bom nordestino sempre fui previdente, por isso tinha um cofre de madeira de cumaru, cheio de moedas cuproníqueis de vinténs, tostões, patacas e até cruzados, afora as notas de quinhentos e mil réis. Só pra se ter uma idéia um dia de serviço na Vacaria, no final da década de 30 era mais ou menos o equivalente a dez tostões, ou seja, oitocentos réis.

Um dia eu resolvi contar as minhas moedas, então fechei a porta da camarinha e comecei a espalhar todas elas no assoalho, eram tantas que como dizia o matuto - negrejava. Mas, acontece que deixei a janela do quarto entreaberto, quando de repente o meu sobrinho Benjamim Carlos olha pela fresta, e vê aquele montão de moedas espalhadas no chão, e sai gritando ao redor da casa de forma alarmante:

- Titônio tá rico! Titônio tá rico! Titônio tá rico!

Chamei o mancebo e disse:

- Benjamim tome duzentos réis, mas fique calado.

O menino arregalou os olhos, segurou a moeda e saiu correndo a toda pressa, chega o calcanhar batia as nádegas, em direção ao açudinho que ficava em frente a minha casa, a procura de sua mãe que estava a lavar roupa, porém de longe ainda se ouvia o eco:

- Titônio tá rico! Titônio tá rico! Titônio tá rico!

Nessa época eu estava muito doente, sentia uma fraqueza muito grande, uma moleza nas pernas e um desassossego interminável, que muitas vezes não me prega as pestanas e fugia o sono reparador, durante as madrugadas. A rede no alpendre era minha companheira inseparável, mas mesmo nessas condições eu recobrava o ânimo, quando ouvia ao ocaso o balido das ovelhas que criava, chegando à porteira do curral de pau-a-pique.

Ao longe ouviam-se os sons em diversas vibrações, desde o balir do pequeno burrego até ao carneiro cevado, pronto para o abate. O tropel da manada de ovelhas, levantava o pó avermelhado das trilhas na época da seca, pois os animais vinham apressados para dessedentar nas águas tranqüilas do açude que papai construiu, quando eu e Victor meu irmão, ainda éramos crianças.

Quase todas as noites lá no alpendre de nossa casa, papai recebia visitas, pois ele gostava muito de prosear e isso atraia muito dos seus amigos. Eu ficava deitado na rede ouvindo as conversas e de vez em quando, dava meus pitacos. Numa daquelas noites do mês de maio, quando as chuvas já declinavam no sertão, Antonio Frutuoso nosso grande amigo e vizinho, disse:

- Compadre Anicete, eu soube que Antonio anda meio adoentado e sem ânimo? É verdade?

- Sim compadre, esse rapaz tem sofrido tanto que dá pena de se ver! Como você vê, está mais magro do que um porco "suvela", pois come e não engorda.

- Desculpe-me compadre Anicete de me intrometer nesse assunto, mas eu ouvi dizer que está atendendo em Juazeiro do Norte um "doutor raizeiro", que conhece bem a Flora Medicinal Brasileira, um sujeito conhecido como padre Climério.

Nesse momento, Antonio Frutuoso dirigiu-se para mim dizendo:

- Antonio por que você não vai até Juazeiro se consultar com esse tal "doutor" Climério? Quem sabe ele não tenha a solução para o seu problema?

Nesse momento, criei ânimo e disse:

- Pois, então papai, vou sair daqui numa quinta-feira de madruga, pra chegar ao vilarejo de São Sebastião, antes da hora do almoço. Lá descanso um pouco, enquanto isso, alimento meu cavalinho Raio da Bexiga, para depois prosseguir a viagem.

- Muito bem Antonio, pode ir sem se preocupar, pois, Higino cuidará de suas ovelhas, enquanto você estiver viajando. Não é meu filho?

- Sim papai, com toda certeza! Assim ele poderá ir sossegado e dormir por lá, e aproveitar também a oportunidade, e conhecer o cinema pra contar direitinho pra nós, como se movem as figuras na parede - que nem gente de verdade!

- E já tem esse tal cinema no Juazeiro?

- Sim Antonio, vá até lá como falei para conferir.

Toda a Chapada parecia adormecida sob um manto de estrelas reluzentes, quando de repente disparam os primeiros ecos do cacarejar dos galos nos poleiros, anunciando um novo alvorecer no sertão. Nesse momento, eu já tinha arreado o meu cavalinho Raio da Bexiga, animal dócil e baixeiro. Ao firmar os pés nos estribos da cela, agora eu só ouvia o som cadenciado das batidas das patas do cavalo, a ressoarem firmes no chão de barro endurecido, prorrompendo as suas vibrações em todas as direções, das baixadas aos serrotes.

De vez em quando, esse paco-paco cadenciado era rompido pelo rangido de uma cancela, seguido de uma batida forte, que assustava os galináceos nos poleiros, e desencadeava em seqüência o latido dos cães vira-latas, que reinavam absolutos nas madrugadas, nas varandas e nos terreiros das fazendas.
Quando os primeiros raios de sol se vislumbravam no horizonte por entre os arbustos da caatinga, eu já tinha dado o primeiro bom dia ao mancebo José de Samuel lá no Pobre, ele seguia em direção ao roçado, conduzindo a cintura um facão rabo de galo de 16 polegadas, e apoiando em seu ombro destro uma enxada duas caras de uma libra, a qual fazia contrapeso com uma cabaça de pescoço, utilizada como moringa pelo sertanejo durante a sua penosa e diária lida.

Bem antes do meio dia eu já tinha chegado ao vilarejo de São Sebastião, um recanto agradável de ver, formado por um boqueirão fértil, encravado entre a serra Talhada e o início de um elevado maciço litólico que se ergue em direção a Serra Verde, quase na divisa de Crato com o Quixará. Esse lugar era quase que parada obrigatória para tropeiros, transeuntes e romeiros, que se dirigiam a terra do venerável, Padim Ciço.

Na saída do vilarejo havia um engenho, cuja cobertura servia de estrebaria, onde foram construídas cocheiras improvisadas para alimentar os animais famintos, durante o longo trajeto da viagem. Reabastecidas as energias e dessedentado o animal com a água pura do ribeiro, prossegui sem nenhuma detença o restante da viagem, até chegar à cidade de Juazeiro do Norte, por volta das 15 horas de uma quinta-feira ensolarada.

Neste momento eu estava exausto, mas minha determinação era mais forte do que o cansaço, por isso, sem mais delonga, após amarrar o cavalinho debaixo da sombra de um juazeiro, me dirigi ao consultório do tão famigerado "doutor" Climério. Quando me aproximei do local de atendimento, fiquei estarrecido, pois a fila dobrava quase um quarteirão. De repente fui surpreendido por meu primo Raimundo Martins que estava no meio da fila, pois a me ver de longe, foi logo dizendo:

- Antonio o que tu estás fazendo aqui a essas horas da tarde?

- Vim também me consultar, e quero voltar ainda hoje.

- Você tá besta primo, olha o tamanho da fila! Eu estou aqui desde quarta-feira e talvez não seja atendido ainda hoje! Antonio é preciso dormir aqui mesmo no meio da rua para não perder o lugar na fila.

Olhei para meu primo e falei:

- Você tem pena de dinheiro, vai demorar muito nessa fila.

Sai de mansinho em direção a casa do tal doutor Climério, e fiquei por alguns minutos só de butuca no movimento dentro de sua residência, era um entra e sai interminável. Logo percebi que havia uma senhora morena, aparentando meia idade que era atendente direta do padre.

Olhei através da janela e gritei:

- Ei minha senhora, por favor, venha até aqui!

- Tenha paciência rapaz, não estás vendo o tamanho da fila!

- Meu caso é de urgência, moro em São Mateus e ao sair de casa deixe o meu pai doente, por isso tenho que voltar ainda hoje.

- Mas, não vai ser possível hoje! É preciso chegar de madrugada e entrar na fila.

Neste momento, temperei a garganta, bati a mão no bolso e puxei numa nota de dez mil réis estampada com a efígie do presidente Rodrigues Alves, e falei:

- Fale com o padre que moro muito longe e preciso voltar ainda hoje, como sem falta.

Diante da minha atitude a mulher mudou de conversa e foi logo dizendo:

- Por favor, moço aguarde um momento, enquanto vou falar com o padre.

Daí a pouco eu ouvi a mulher argumentando insistentemente, com o padre e dizendo:

- O homem é arrimo de família, deixou o seu pai doente lá em São Mateus, por isso precisa voltar ainda hoje para casa! Por favor, atenda o moço ele está também, muito doente e precisa voltar o mais depressa possível.

Diante da insistência da mulher, fui prontamente atendido. Com a receita em mãos me dirigi ao meu primo, que ainda estava na fila e disse:

- Eu já me consultei, agora vou comprar o remédio e voltar pra casa.

- Não! Não é possível, eu estou aqui desde ontem na fila e você já se receitou!
Respondi em cima da bucha:

- Você tem pena de uma nota de dez mil réis! Ofereça uma notinha de dez aquela mulher que trabalha com o padre, que você será atendido agora mesmo.

O sol já começava a se esconder por detrás de uma nuvem de longa formação horizontal e formato estratiforme, dando a impressão de tangenciar o topo da enorme Chapada do Araripe, quando finalmente eu resolvi sair da cidade a procura de um rancho, onde pudesse dormir sossegadamente e alimentar o meu cavalinho braiador, para no dia seguinte, bem cedo de manhã, retornar a Vacaria.

Quando me distanciei mais ou menos uma légua da cidade, dei de cara com um enorme casarão, ladeado por um alpendre espaçoso, sustentado por pilares de aroeira. Então imaginei, esse é o lugar mais apropriado para pernoitar, pois naquele exato momento já começava a escurecer. Bati palmas, logo saiu uma senhora alta, magra e de boa aparência que foi logo dizendo:

- O que deseja moço?

- Minha senhora, eu venho de Juazeiro e preciso de um lugar para me arranchar, até amanhã.

A mulher foi curta e incisiva:

- Moço, me desculpe, mas a cidade ficou para trás!

- Então, por favor, me traga uma aguinha pra eu beber.

Enquanto a mulher se dirigiu ao pote para buscar água, surge no portão um menino loirinho de olhos castanhos e aboticados, evidenciando uma expressão de espanto. Eu disse:

- Venha cá garoto, tome essa nota de cinco mil réis.

Imediatamente o garoto segurou a nota e arrancou para dentro de casa, feito uma bala. Daí a pouco outro adolescente botou a cabeça pra fora da janela, nesse momento eu lhe ofereci outra nota de cinco mil réis. Sem mais delongas ele correu em minha direção, segurou a nota e se foi.

Fiquei sentado no parapeito da varanda tomando água, enquanto a mulher se retirou apressada para cozinha. Naquele momento, um dos meninos arrancou a toda pressa por uma porta lateral da varanda, então fiquei ali sentado por alguns minutos, só cubando o movimento. De repente, vejo um homem alto, claro, camisa desabotoada e sorriso largo vindo em minha direção. Ao se aproximar de mim foi logo dizendo:

- Por que não tiraram a cela do cavalo e mandaram o moço sentar?

A mulher respondeu prontamente:

- Eu estava só esperando você chegar.

- Que prazer receber um rapaz rico na minha casa?

- Mulher traga uma reder e arme-a na varanda para o moço descansar, enquanto vou levar o cavalo na roça.

Nesse momento eu suspirei aliviado, tinha conseguido o que desejava. Fiquei ali deitado, ouvindo o tique-taque do relógio na parede, enquanto a panela fervia no fogão. Quando o dono da casa chegou, após ter levado o animal ao roçado foi àquela alegria, parece que tinha chegado um dos homens mais ilustres da cidade de Juazeiro, o Senhor José Geraldo da Cruz, proprietário da conhecida Farmácia dos Pobres e chefe político de grande renome na região.

Logo me vi paparicado e protegido pelo aconchego da família. Naquele momento duas belas donzelas se apresentaram diante de mim, não porque tivesse qualquer beleza que as agradasse, mas porque pensavam que eu de fato era rico. Então aproveitei a ocasião para contar vantagens, utilizando-me das próprias palavras de lisonjeio do anfitrião:

- Mas me sinto até meio sem jeito para lhe convidar para jantar, pois sei que você é um moço bem situado!

- Não se sinta acanhado, meu amigo, pois eu sou senhor de engenho, mas, vez por outra, eu gosto de almoçar juntamente com os peões lá na minha propriedade, sem nenhuma cerimônia.

- Ah, que bom! Além de rico você, me parecer ser uma pessoa simples. Mas nem todo mundo é assim, meu caro moço.

- Pois, é meu Senhor, desde pequeno papai me ensinou a tratar bem as pessoas, portanto me colocou nas melhores escolas da cidade de Icó. Mas, resolvi desistir de estudar para cuidar dos negócios do papai!

- Oh, mais um homem tão rico e tão bem educado, faz gosto a gente hospedar!

Ficamos conversando até não sei que quantas horas da noite, assim continuei mentindo desavergonhadamente e contando vantagens. De vez em quando, o homem dizia:

- Não vá embora amanhã cedo, demore mais um pouco moço, sua presença é muito prazerosa.

Cedo de manhã botei a cela no meu cavalo e rumei para Vacaria, não deu nem tempo de me despedir do gentil homem. Mas, pelo caminho às vezes eu ria, quando me lembrava que um pé-rapado, pudesse ser lisonjeado como se fosse um doutor. Por isso, digo:

- Dinheiro não traz felicidade, mas propicia momentos felizes.

O padre Climério Costa que consultou Antonio Ferreira Lima, nessa ocasião, participou como presidente da comissão criada por padre Cícero para investigar o suposto milagre da hóstia consagrada, que se transformava em sangue na boca da beata Maria de Araújo lá pelos idos de 1889. Essa comissão tinha também como secretário o padre Francisco Ferreira Antero, contava, ainda, com a participação dos médicos Marcos Rodrigues Madeira e Ildefonso Correia Lima, além do farmacêutico Joaquim Secundo Chaves. Em 13 de outubro de 1891, a comissão encerrou as pesquisas e chegou à conclusão de que não havia explicação natural para os fatos ocorridos, sendo, portanto um milagre (Wikipédia, 2010).

Referências Bibliográficas

Meu sertão, minha gente e minha vida (trechos). Antonio Anicete de Lima e Antonio Ferreira Lima.

WIKPÉDIA. Cícero Romão Batista: suposto milagre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%ADcero_Rom%C3%A3o_Batista>. Acessado em: 3 de dezembro de 2010.