Diálogo Na Residência Do Escritor
Por Bernard Gontier | 01/03/2008 | Crônicas15:59
- Vá atender!
- ?
- Porque estou mandando, e para que digas a quem quer que seja: Albert vaporizou-se.
Desconheço os motivos de tamanho estímulo, sinto-me atiçado por descargas elétricas, afoito como o toque da campainha.
Recado transmitido, palavra por palavra.
Pouco mais baixo do que eu, impecável terno cinza, o visitante obstrui a porta com o pé. Identifica-se. Exibe até credencial, chama-se Oduvaldo, funcionário graduado na imprensa, homem de alta patente nos meios de comunicação.
E daí? Vou fechar a porta.
- Espere ? e insiste com o pé ? diga ao seu chefe...
"Meu chefe?" Eu não tenho chefes. Que impropério.
- Quem o deixou entrar? ? indaga o proprietário do imóvel, todo empertigado.
- Relaxe, Albert, vim sozinho e desarmado.
- E posso saber por que? Por que em nome de Deus vocês não respeitam minha tranqüilidade?
Oduvaldo pouco se dá para os chiliques dos outros. Tampouco se retrai em casa alheia. Senta no sofá, cruza as pernas, retira um charuto do paletó e olha fixo no interlocutor.
- Vim aqui tirar satisfações.
- Satis...
Algo me adverte que a cena será das mais curiosas. Instala-me no sofá vizinho e, segundo assimilo, Oduvaldo está furioso pelas declarações de Albert ontem à noite, saindo do restaurante.
Restaurante, pensei, ah sim, ontem jantamos num restaurante.
- Oh, ponha-se no meu lugar, cansado, havia comido, bebido...
Talvez, mas não justifica a brutal ofensa.
- Profissionalmente imperdoável ? assevera ? chocante, inadmissível!
Albert brincou com os códigos, usou inadvertidamente palavras-chave, ridicularizou nossa linguagem. Somos profissionais. Levamos a serio estas terminologias. Por vossa causa homens e mulheres vararam a madrugada em busca de uma definição plausível sobre seu depoimento e...
Acende o charuto infiltrando na casa um cheiro adocicado, inédito, tão inédito quanto a sua pessoa, o jeito firme de encarar, o verbo áspero, um tênue fio de ironia nos lábios, mais o charuto entre dentes cerrados. Que imagem, esse cidadão, refleti.
- Isso mesmo, Albert ? prossegue ? nossa equipe exausta, no romper da aurora, concluiu que tu falsificaste clichês, nomenclaturas, conceitos...Isso nos magoou. Isso não se faz. Sempre tiveste credibilidade conosco, mas a partir de ontem, bem , nós o aconselhamos cautela...
O anfitrião lhe estende um cinzeiro.
- Errrr, hãmmm, senhor Oduvaldo, de qualquer forma fico sensibilizado no tocante ao crédito. Prova que vocês me ouvem. Ótimo, não estão de todo perdidos. Agora, se me der licença...
A impassibilidade, réplica de um frontispício incisivo, e já não armazeno adjetivos a este sujeito cujo rosto é umamascara que exala ira elegante, desarma Albert literalmente.
- Bobagem sua supor que me desloquei até aqui apenas para desabafar e jurá-lo de morte. Vim a trabalho.
- ?
- Ah, não atinas? ? retira do paletó um pequenino gravador, então acionado e sobreposto na mesinha que os separa. ? Defina sua obra.
Em algum lugar no currículo do meu amigo deve constar uma passagem pelo meio cênico, qual ares de ingenuidade absorta, angelical, incrementadas de melódicas entonações nas vogais:
- Ué? Já falei, ontem quando saía do...
- Vá à merda ? contrapõe o outro, munido daquela curiosa ironia labial, mas mandando realmente à merda.
Albert inflama-se, revolta-se, alega isenção de declaração. Inexistem leis punitivas para este ato.
- Não sou obrigado a falar!
- Ah é...pois para o senhor, que adora tripudiar os clichês, vou me utilizar de um da seguinte maneira: sendo uma reta definida por dois pontos, saiba que no ponto A reside minha profunda animosidade contra sua arrogância e no ponto B a vingança. Pois eu vou traçar a reta que une os dois pontos. Acionarei todos os dispositivos ao meu alcance para prejudicá-lo. Chegarei às ultimas conseqüências! E falo sério!
Talvez. Em todo caso vende bem esta disposição.
- Meu Deus, não quero lhe causar uma úlcera. Agora quem lhe pede calma sou eu, senhor Diretor-Editor, posso ao menos conhecer as causas de soberba fúria, ódio implacável e sobretudo esta monstruosa sede por uma estúpida definição?
Oduvaldo procura induzi-lo a entender. Possui aproximadamente 10 milhões de clientes. Estes querem saber de tudo, inclusive Albert. Então?
Resignado, o escritor joga-se num almofadão ao lado, impondo condições: aceita falar, desde de que não impliquem, conquanto não se espantem, com a sua simplicidade.
O homem do charuto redireciona o gravador.
Cinco segundos de suspense.
- Minha obra é figurativa.
- Por que?
- Por manifestar exatamente o que capta.
Oito segundos de silencio.
- Hã, bem, diga mais alguma coisa...
- Minha obra é impressionista.
- Você está me gozando?
Pode-se afirmar na fisionomia do entrevistado contrárias indicações.
Dois segundos. Talvez um pouco mais.
- Ok, porque é impressionista?
- Porque é como a vaca leiteira de Turner. Não possui uma cor estabelecida. Tudo dependerá da iluminação.
Oduvaldo aquiesce, então titubeia, coça o ouvido, volta-se meio desconcertado:
- Pode me dizer quem é Turner?
- Joseph Mallord Willian Turner. Pintor impressionista, falecido há muito. Ele disse que...
De repente, tomado de corante furor, meu amigo começa a espinafrá-lo:
- Então desconheces essa maravilhosa passagem?!
O outro dá de ombros.
- Ah não! ? exalta-se, e com tanta voz, parece em coro ? O que há com vocês, afinal? Olhe que me queixo aos seus superiores denunciando lacunas em vossas culturas. Vocês, atente ao plural, são todos uns chatos, para se dizer o mínimo. Os artistas por aí, labutando, creia-me, durante anos até, elaborando belas minúcias, ínfimas sutilezas na busca de significado ao produto da própria exaustão, maturam ás vezes com capricho desmedido, e tudo para que?Diga? Apenas para verem seus trabalhos devorados em 5 minutos, blasfemados e enquadrados por um conjunto metódico e sistemático de disposição relativas ao assunto...Hã! Vocês são todos uns ansiosos em demarcação.
Oduvaldo e seu charuto riem à beça. É serio, tem-se a impressão de que ambos trocam olhares entre si em meio às gargalhadas. De qualquer forma, ouvimos quase contagiados o riso do visitante.
- Ah, que delícia ...mas você,embaralha os fatores, hein? Em demasia. Comunicação, homem, comunicação de massa. A informação superando fins e justificando meios. A informação rápida, o impacto, a rotativa e a web que dizem vai aposentar a rotativa...além do que ? seus olhos faíscam- por acaso os artistas dependem de nós?
- Err...não mas...
- E sendo assim, fique ciente, os artistas, aqueles que "tocam o coração", como se diz, permanecem. Para cada um de nós há uma obra guardada.
- Pfiu!
- Além do mais a nossa meta é a enxurrada.
- Protesto! ? protesta Albert.
- Problema seu. Volto a lembrar-lhe dos clientes. Estes são a alma do negócio. E querem assim. O senhor acha errado, mas é producente, pois em conseqüência da enxurrada lotamos o mundo de artistas, graças a isso hoje todo o planeta familiariza-se cada vez mais com a arte...exceto, talvez, os talibans...
- Não sei, não sei se vocês familiarizam, ou pasteurizam, mas o certo é que falam sempre nos mesmos...
- Nem sempre, mister...
- Bem, bem não vamos discutir, posso oferecer-lhe algo para beber? Pretendo sobretudo tornar agradável sua estada nessa casa.
Polido, Oduvaldo repele o convite pois tem pressa, the ghost must go on, ironiza.
- Ah, o senhor se engana ? o anfitrião pega-lhe no braço, encaminhando-o de volta ao sofá ? ficará um pouco mais, vais bebericar na minha companhia e ouvir o que tenho a dizer.
Ele reage. O tempo urge, e depois será bobagem discutirem interminavelmente sobre o papel da imprensa nas artes, já que a imprensa possui outros focos, de suma relevância.
- Oh sim, oh sim ? anui meu amigo, revelando na face as rugas do bom humor ? focos bem mais relevantes...gnã, gnã, gnã...assim como a vida sexual do príncipe X com a princesa Y, ainda que sejam do principado dos conglomerados e não dos principados. Vida sexual, principalmente anomalias, desperta interesse. Só não entendo por que não exibem de vez umas boas fotografias explícitas. Ah, vejamos, jovens que assassinam a família inteira também integram o rol das temáticas excitantes. E bem sei que tais analises estão surradas, esfoladas, mas o caso é que jamais experimentei oportunidade de proferi-las a alguém tão próximo...alguém do ramo, bem entendido ? pigarro ? quando dia anterior decepcionou, ou seja, escândalos financeiros não emergiram, nenhum ilustre faleceu, não houve incêndios de porte, terremotos, maremotos, cataclismos de toda a espécie, ahá, daí as manchetes exploram insaciavelmente as batalhas dos primatas que ocorrem nos mil cantos do globo. Em suma, eis uma industria versátil quanto às matérias primas. Repare, ainda não viramos a primeira pagina do programa, seja pela diretriz sincera de nada falar, seja pelo charme dos negritos graúdos.
Oduvaldo mantém no orador os mesmo imperturbáveis olhos fixos e irônicos sorrisos. Parece mesmo saborear o que ouve.
Albert serve drinques e petiscos.
- Nas páginas seguintes ? prossegue ? o falatório das facções. Os comandantes e os comandados, seus partidos, bandeiras, flâmulas, reivindicações, jamais chegam nalgum lugar, dotados de espantosa burrice...cruz, credo, maçante meu caro, muito maçante...Depois, na seção "panorama dos infelizes", vêem-se aqueles pobres diabos, imprudentes ao volante, os cleptomaníacos profissionais e seu cotidiano capenga de furtos e perseguições...Quanto aos funcionários, ou seja, redatores articulistas, colaboradores, devem imbuir suas paletas de tons negro e cinza chumbo. Previsões otimistas só com patrocínio. Por outro lado, veja só que incongruência, utilizam verborragia pesada, retaliando apenas insignificâncias, futilidades, ou seja, os pobres artistas. Oh, como eu adoraria assisti-los esculhambar com idêntica raça e intrepidez os verdadeiros vilões. Mas não, exceto as iluminadas exceções, o resto excusa-se de enfocar a fundo o âmbito das devastações, os deslizes das eminências, negligenciam a fome, os tráficos e as falcatruas. Assuntos sumariamente proibidos. Deve-se apenas resvalar. E resvalam com tanto sensacionalismo que o estúpido leitor julga-se a par dos fatos...Qual! E tu me vens falar em informação quando 90% dos artigos acham-se profundos como uma piscina infantil.
- Ei, espere aí ? reage Oduvaldo ? o mundo se locomove, temos de acompanha-lo. Se queres profundidade, procure uma enciclopédia. De resto, abrimos as portas para os leitores. Gente que nunca ouviu falar de física quântica, de industria bélica, economia globalizada, transplantes...podem ao menos repetir o assunto nas reuniões sociais. Nós iniciamos incautos, saiba você. Pondere, Albert, existe uma multidão carente desta novelinha viciada, o que se pode fazer para sacia-los? Nada. Nada os sacia meu caro, exceto a monomania. Temos de induzi-los a pisarem de leve no campo do real, entende? Uma espécie de fisioterapia...É cientificamente comprovado que as pessoas só atinam com aquilo que identificam, não suportariam o peso da verdade. Além do que, você exagera.
Albert oferece mais bebida e contra-ataca.
- Sim, eu exagero, temos isso em comum, não? Sabe, Oduvaldo, vou lhe contar uma coisa ? pigarro ? em primeira mão. Um furo. Anote aí: eu, Albert, 42, declaro-me a favor da revolução. Isso mesmo. Sou favorável à revolução na imprensa. Na minha opinião ? tosse, tosse ? na minha opinião vocês jornalistas deveriam fazer um juramento, assim como os médicos, apesar de que os médicos, bem...- tosse ? enfim determinados fatos tem de ser veiculados e analisados com um mínimo de parcimônia e responsabilidade. Custe o que custar. Questão de integridade.
Oduvaldo gargalha. Aplaude. Oduvaldo e seus olhos penetrantes que jamais se desviam.
- Muito bom, muito bom, sempre adorei o vosso estilo, deveria trabalhar conosco, juro que sim, mas no momento sou eu quem lhe pede atenção. O senhor conhece o técnico que labuta na industria...hã...deixe ver, na industria alimentícia. Sabe das traquinagens, dos adultérios cometidos por exemplo, nesse patê que me serves?
Oduvaldo levanta, ensaia uns passos rígidos pelo carpete, então profere de dedo em riste:
- Todos os homens deveriam prestar um juramento, senhor Albert. Todos.
Meu amigo abaixa a cabeça.
- Não ? empolga-se Oduvaldo ? nós oramos todas as noites pela sensibilidade do público. Dizemos tudo? Pois então responda: és franco integralmente? Ágüem é? Desse modo, como podes esperar igual franqueza de um instituição? E as pressões? Desprezas as pressões? Ora...somos o exercício do bom senso assimilativo. Cabe àqueles atentos acompanhantes de noticias farejarem seqüelas de autenticidade em nossas reticulas, abrirem caminho em meio à vasta maquiagem. Tudo o que podemos fazer é proporcionar pistas.
Albert esboça um pequeno riso reprimido.
- Ria sim ? exclama o jornalista, também rindo e falando, aliás possui ótima articulação ? Também acho engraçado. Em nossas reticulas, nossos canais, nossos sites, nossas páginas...paginas que jamais atingem o âmago, pelo contrario, o sabor do jogo reside na sensação de alarme, na sensação de providencias a serem tomadas, em suma somos cúmplices da Idiotia, mas contribuímos sutilmente para melhorá-la. Eu disse sutis, lembre-se das pressões, e dos milhões de clientes, avessos à realidade, realizando uma das mais belas contradições humanas: a de persistirem diariamente, adquirindo no lar ou nas bancas, bancas de informação, as respectivas imagens e palavras, o bálsamo que lhes assegure a melhor ou a única precária certeza dos dias de hoje, ou seja, nada mudou em substancia.
Albert retira meleca do nariz embora pareça mais interessado em escapar da mira de Oduvaldo. É realmente curioso, seus olhos não apenas fixam, mas avançam, despencam, como se dessem chutes no objeto enfocado.
- Diga-me, Albert, o que tem contraa nossa classe?
Veemente negativa. Nada contra. Gosta de atazaná-los, mas o fato é recíproco. E falando de modo geral, não hostiliza classe alguma, isso porque jamais analisa o esporte porém, antes, o atleta. E com melódica voz de falsete, emenda:
- "Se todos fossem iguais a você..."
Oduvaldo agradece. Não obstante, acha necessário acrescentar certas digressões.
- Somos, ou representamos, se preferir, a profissão mais antiga do mundo. O ato de reportar singra as veias de qualquer criatura e todas manifestam tal característica, de uma forma ou de outra. Basta reparar nas cavernas pré-historicas...E você, meu caro, deveria nos conceder um pouco mais de respeito.
- ?
- Isso mesmo, respeito. Saímos sob calor escaldante, sob chuva, neve, enfiamo-nos em alcovas e porões, guerras, revoluções, amargamos no meio de nefastas situações, arriscando a própria vida para que saibas quem roubou, quem venceu, ora, chega a ser altruísta de nossa parte...
- Hum, sim, sim, mas não negligencie o cobiçado "sabor do furo"...
- Nós abandonamos família, amigos, partindo rumo ao desconhecido, rumo a indizíveis perigos, nós salvamos vidas, saiba o senhor. É sim. E nas grandes questões atuamos como verdadeiros mediadores, e além disso, heeeee ? bafeja nas unhas ? em boa parte dos casos somos o voto de minerva. Nós ? empertiga-se ? ampliamos o seu campo de visão! Nós somos o sustentáculo do mundo oficial!
- É, mas lêem apenas as orelhas dos livros e em seguida avacalham os autores.
- Ah, não se pode ler tudo.
- Não interessa, acho isso imperdoável.
- Talvez seja um tantinho ? morde os lábios ? mas poxa, Albert, sua linguagem é idêntica à nossa. Pondere antes de criticar.
- Eu não me refiro à linguagem, homem, isso é outro assunto.
Oduvaldo bate cinzas no chão, na mesa, na poltrona, exprime intenção de mencionar algo porém não diz.
Na brecha do silencio o autor confessa:
- Sou seu admirador. Raramente perco seus artigos. No entanto, retornando ao plural, na maior parte das vezes sinto vontade de rotulá-los como profissionais da maledicência. Juro. Basta ao cidadão possuir uma única bereba, para ser tachado de leproso e causador de todos os males da humanidade.
- Tenho culpa se meus clientes vibram em...
Albert faz o sinal da trégua com as mãos espalmadas.
Cansaram, bebem e fumam durante um hiato de quietude.
Oduvaldo bate no paletó, preparando-se para sair.
Na porta, no dado instante do adeus, Albert diz sentir nele uma certa insatisfação. Só isso.
- Ora, como os demais, sou movido pela insatisfação. De resto, tenho uma pequena teoria sobre essa historia dos ofícios humanos. Quer ouvir?
O escritor assente.
- Bem, aquilo que se denomina carreira, profissão, é na maior parte das vezes algo muito mais maleável e ilusório do que se pensa. No entanto, ao enfrentar uma escolha, deve-se proceder da mesma maneira como passear pelo bosque num dia ensolarado. Então, ao invés de perdurar o sol, sobrevém o vendaval. A principio xinga-se um pouco, mas não se pode passar a vida xingando. O melhor a fazer é perceber o efêmero dos tempos instáveis, tirar a roupa e dançar na chuva. A vida é um passeio.