Despindo O Boticário: Identidade, Beleza e as Lógicas da Moda
Por Isabel Ferreira | 24/05/2011 | FilosofiaIntrodução
A moda é um dos fenômenos mais emblemáticos da pós-modernidade. Difundida para todos os campos da produção cultural, ela permeia várias esferas do contemporâneo, transformando-se em objeto relevante da vida cotidiana, sendo vetor da articulação e do desenvolvimento de relações sociais. Ela tem a capacidade de condensar e traduzir sensibilidades próprias da cultura do século XX.
A moda é, sobretudo o consumo seja de objetos, seja de idéias. Muitas vezes avesso a questões utilitárias, o produto da moda assume caráter identitário, expressando identidades e identificações. A moda é um território simbólico que permite a manifestação à igualização social e o impulso à distinção social, ou seja, à diferença
A produção ininterrupta de novas modas, fenômeno visível desde a modernidade, deixou de ser uma característica exclusiva do universo da aparência para tornar-se o paradigma dominante da sociedade pós-industrial, uma vez que todos os setores industriais e tecnológicos se renderam à obsolescência programada e à estilização de produtos.
Como todo produto gerado pela cultura de massa, as campanhas publicitárias são formuladoras de mensagens e símbolos instituidores de socialidade. Isso implica dizer que elas tanto perpetuam e reinterpretam representações como geram outras, através da criação de necessidades e sentidos, que passam a figurar na vida cotidiana das mulheres, contribuindo para sua interação social e construção de identidades.
Devido às suas características, as propagandas são, por conseguinte, espaços privilegiados de análise das construções sociais, especificamente, do lugar atribuído às mulheres na sociedade e da noção de práticas por elas desenvolvidas nas relações sociais. Este tipo de veiculação midiática não somente esboça uma identidade feminina, como a reafirma na condição de uma natureza.
Assim, para além das novidades da moda é preciso compreender as lógicas que a organizam, tentando reconstruir através das vias de sua história os elos que a unem a todo coletivo. Portanto, essa monografia pretende analisar através de 3 campanhas midiáticas da marca de cosméticos "O Boticário", intituladas "Repressão", "Contágio" e "Guarda-Chuva", como se dá a construção das identidades femininas, a partir do papel mediador da moda, beleza e corporeidade.
Para que tais propósitos sejam atingidos, o primeiro capítulo consiste em uma retomada dos pressupostos teóricos que têm como função delinear a história da moda, sua transformação e aspectos conceituais. Por tradições e caminhos diversos a moda que no século XIX era privilégio das elites e foco de debate a cerca da chave da distinção social, converteu-se num universo segmentado, esfera de construção de identidades e estilos de vida, por onde passaram a transitar indivíduos de diferentes camadas sociais. Por isso são feitas breve discussões acerca dos artifícios de que a mídia e a publicidade dispõem para juntamente com a moda vender imaginários através de discursos sedutores, bem como mediar construções identitárias para além da supervalorização da beleza e a adequação do corpo aos padrões estéticos atuais.
O segundo capítulo analisa o primeiro comercial como foco da pesquisa da marca de cosméticos O Boticário, intitulado "Repressão". A campanha publicitária entrou no ar domingo, dia 06 de julho de 2008. De acordo com informações do anunciante, "o filme procurou mostrar que as pessoas querem, sim, ficar mais bonitas, e encontram no Boticário um caminho para potencializar a sua beleza". A campanha publicitária ? a maior de toda sua história - com investimento de R$31 milhões de reais compõe um programa chamado Acredite na Beleza, no qual por meio de uma pesquisa com mais de dois mil consumidores, constatou-se que, "quando as pessoas se sentem mais bonitas, para elas tudo fica mais vibrante, alegre e colorido. Elas ficam mais felizes, dispostas e com atitude para vivenciar as coisas boas do dia-a-dia." Assim, o segundo capítulo além de apresentar algumas temáticas relacionadas a busca pela beleza e seus inúmeros argumentos, utiliza a moda, juntamente com a mídia, para discutir e analisar o processo de valorização e homogeneização dos estilos de vida e comportamento femininos.
O terceiro capítulo analisa o segundo comercial da marca O Boticário, intitulado "Contágio". Neste segundo filme a beleza é vista como agente transformador e contagiante e completa o movimento da marca em prol do poder da beleza no dia-a-dia e ao alcance de todos, salientando como ela tem o poder de contagiar aqueles que a experimentam, independente da forma. Dentro dessa ótica, será priorizada nesse capítulo a supervalorização da beleza e do corpo correlacionados com a construção das identidades femininas.
O quarto capítulo analisa o terceiro e último comercial da assinatura "Acredite na Beleza". O terceiro filme intitulado "Guarda-chuva" estreou no dia 05 de março de 2009 e traz aos consumidores da marca a idéia de que as pequenas atitudes podem transformar até os dias mais nebulosos num belo dia, cheio de boas energias, porque a beleza contagia. Por isso são feitas discussões acerca dos modos de vida atuais, tendo a beleza, cada vez mais associada às formas do corpo e aos discursos sedutores da publicidade, papel significativo para a construção das identidades femininas. Por fim, as considerações finais irão discutir os resultados da pesquisa e as conclusões realizadas.
Capítulo I
1.1. O que é moda, Afinal?
A moda é intrínseca à vida de toda a sociedade. Mesmo aqueles que dizem não se importar com o que vestem acabam, de alguma forma, sujeitos às variações dos modismos. Afinal de contas, moda não é apenas vestir, é um conjunto de informações que orientam costumes e comportamentos e variam no tempo e na sociedade. Aí estão incluídos, além de roupas e adornos, a música, a literatura, a arquitetura, os hábitos, enfim, tudo o que pode mudar com o tempo e que, a cada época, é ditado por determinada tendência.
Moda, segundo Palomino (2003), é muito mais do que roupa, é um sistema que integra o simples uso das roupas do dia-a-dia a um contexto maior, político, social, sociológico. Segundo a autora hoje em dia estamos acostumados a um sistema que opera a moda num âmbito de desfiles, modismos, tendências. Mas nem sempre foi assim. E ao contrário do que se possa imaginar, o fenômeno moda não pertence a todas as épocas e a todas as civilizações. Os povos primitivos desconhecem o conceito de moda. Tampouco a moda é algo que existe há muito tempo.
Como afirma Lipovetsky (1989) no Egito antigo, o mesmo tipo de toga-túnica comum aos dois sexos manteve-se por quase quinze séculos com uma permanência quase absoluta; na Grécia, o peplo, traje feminino de cima, impôs-se das origens até a metade do século VI antes de nossa era; em Roma, o traje masculino ? a toga e a túnica ? persistiu, com variações de detalhes, dos tempos mais remotos até o final do Império.
Assim, mesmo que certas civilizações tenham sido menos conservadoras do que outras, mais abertas às novidades, mais febris por luxo e exibição, jamais puderam aproximar-se do que se chama moda, em outras palavras, a moda aqui não ordenava novas estruturas, nem novas formas de traje, funcionava como simples complemento decorativo e de adorno.
Não há sistema de moda senão quando o gosto pelas novidades se torna um principio constante e regular. Um sistema de frivolidades, em movimento perpétuo, uma lógica do excesso, jogos de inovações e de reações sem fim. Com a moda começa o poder social dos signos ínfimos, o espantoso dispositivo de distinção social conferido ao porte das novidades sutis. (LIPOVETSKY, 1989, p. 29)
Nessa ótica, o conceito moda apareceu no Ocidente no final da Idade Média e principio da Renascença, na corte de Borgonha (atualmente parte da França), com o desenvolvimento das cidades e a organização da vida das cortes. A aproximação das pessoas na área urbana levou ao hábito de imitar e o desejo de competir: enriquecidos pelo comércio, os burgueses passaram a copiar as roupas dos nobres. Assim, ao tentarem variar suas roupas para diferenciar-se dos burgueses, os nobres fizeram funcionar a engrenagem de criação e cópia.
Enquanto fenômeno não pertencente a todas as sociedades o interesse pelo traje atingiu amplitude na Modernidade e consumou-se principalmente em dois momentos: na Revolução Industrial e na Revolução Francesa. A Revolução Industrial Inglesa teve seu início no setor têxtil, sendo este o primeiro a conhecer a mecanização do trabalho e a produção em larga escala. Já no início do século XIX, a indústria têxtil dinamizava e articulava toda a economia inglesa. O desenvolvimento têxtil estimulou outros setores, como a indústria química, a metalurgia, a construção civil, etc, assim, no lugar do campesinato surge, paulatinamente, o operariado industrial.
Dessa maneira, a Revolução Industrial dará substrato material para o fortalecimento do sistema de moda, alavancando a produção de vestimentas e o consumo, ao passo que a Revolução Francesa fornecerá substrato ideológico, com seu lema: Igualdade, Liberdade e Fraternidade.
A ideologia e os anseios burgueses se difundem por toda a sociedade, a idéia de igualdade entre os cidadãos se instala, possibilitando liberdade a todos os homens na instância do consumo, principalmente no que diz respeito ao consumo de vestuário. Assim, Souza (1987) aponta que,
O advento da burguesia e do industrialismo, dando origem a um novo estilo de vida; a democracia, tornando possível a participação de todas as camadas no processo, outro apanágio das elites; as carreiras liberais e as profissões, desviando o interesse masculino da competição da moda, que passa a ser característica do grupo feminino (...) nos mostra que a Revolução Francesa foi, de certa forma, o divisor de águas [para o fenômeno da moda]. (SOUZA, 1987, p. 22)
Como fenômeno impulsionado pelo crescimento do consumo decorrente da expansão comercial, a moda passa gradualmente a atingir os diversos estratos sociais e a ampliar seus domínios, pois com o auge da divisão do trabalho, da mecanização e implementação de técnicas, surgem novas fibras têxteis, novas cores, modelos e acessórios - o que possibilitou uma ampla variedade de criações no âmbito da indumentária.
Assim, como afirma Crane (2006) à medida que as sociedades ocidentais se industrializaram, o efeito da estratificação social nos usos de vestuário se transformou. No final do século XX, as roupas haviam-se tornado gradualmente mais baratas e, portanto, mais acessíveis as camadas mais baixas. "Historiadores da indumentária concluíram que as roupas foram democratizadas durante o século XIX, pois todas as classes sociais passaram a adotar tipos semelhantes de vestuário" (CRANE, 2006, p. 27)
A moda, que parecia oferecer possibilidades de uma pessoa alcançar sua posição social, durante esse período era somente um aspecto do vestuário. Para a autora, a moda deve ser vista como as várias maneiras pelas quais as roupas foram usadas: controle social, mediante a imposição de uniformes e códigos de vestuário.
A natureza da moda mudou, assim como as maneiras pelas quais as pessoas respondem a ela. A moda do século XIX consistia num padrão bem definido de apresentação largamente adotado. A moda contemporânea é mais ambígua e multifacetada, em concordância com a natureza altamente fragmentada das sociedades pós-industriais.
(CRANE, 2006, p. 29)
A primeira chave para se estudar a moda no mundo capitalista e industrializado, fincou-se nas estruturas propostas por cientistas sociais, tais quais: Herbert Spencer (1854), Gabriel de Tarde (1890), Thorstein Veblen (1899) e Georg Simmel (1904). Tomando a moda com relevância em seus estudos, defendem que haja duas características a regular sua existência: imitação e a distinção.
Georg Simmel, a partir de 1905, fez sua contribuição teórica aos estudos da moda, contextualizando, historicamente, o mecanismo da moda e sua relação com a hierarquia social.
O modelo de Simmel de mudança na moda estava centrado na idéia de que as modas eram primeiramente adotadas pela classe alta e, mais tarde, pelas classes média e baixa. Grupos de status inferior procuravam adquirir mais status ao adotar o vestuário dos grupos de status superior, desencadeando um processo de contágio social no qual os estilos eram adotados por grupos de status sucessivamente inferiores.
Para o autor, a moda é, portanto, uma forma de imitação que leva à disputa geral por símbolos superficiais e instáveis de status, isto é, a elite inicia uma moda e quando as classes mais baixas a imitam, num esforço de eliminar as barreiras externas de classe, ela a abandona por uma outra moda. Portanto, o motor que impulsionaria o fenômeno se daria pela busca incessante do novo e por um lugar de status na estrutura social.
Tão logo a moda seja dominante, ou seja, tão logo aquilo que apenas alguns poucos praticam passe a ser praticado por todos sem exceção, como elementos do vestuário ou das formas de contato social, não se pode mais falar em moda. (SIMMEL, 2005, p. 163)
Assim, para Simmel (2005) na moda a imitação satisfaz a necessidade de apoio social, por um lado, porque conduz o indivíduo as trilhas que todos seguem, e por outro, a imitação satisfaz a tendência a diferenciação, a distinção, a mudança.
Herbert Spencer em 1854, foi o primeiro a explicar a relação da moda com a estrutura social, evidenciando que sua base esta nos processos de imitação, os quais funcionam pelo respeito inspirado por aquele que se imita ou pelo desejo de afirmar que se está em igual condição. Spencer, não encontrava sentido nas reviravoltas que as tendências de moda demonstravam e afirmava não existir, no domínio da moda, um progresso contínuo e ideal de elegância e harmonia.
Gabriel de Tarde, em 1890 confirma o papel de imitação atribuído à moda por Spencer. Para ele, a era da moda seria um período transitório e revolucionário entre as eras de costume, na medida em que, revolucionando os costumes anteriores, desfazia uma tradição anterior para estabelecer uma nova, sempre um pouco mais avançada. Ao analisar a relação da moda com a tradição, Tarde a pensa, além da produção do vestuário, estabelecida em toda teia social.
T. Veblen, em 1899, enfatizou a relação da moda com o consumo. Para o economista, a moda é a expressão mais perfeita do "consumo conspícuo". Veblen considerava que a necessidade de gasto com o vestuário é, pois, uma necessidade mais alta, ou seja, espiritual. Para o autor, as roupas mais caras possuem um grau elevado de respeitabilidade, existindo uma ampla relação entre o dispêndio com o vestuário e a aparência respeitável de seu portador.
Portanto, como afirma Sant?Anna (2007) com diferentes pressupostos, os autores circulavam sobre a idéia de distinção e imitação como elementos explicativos para a existência da moda na sociedade. Permanecendo no conceito de moda como sistema regular de mudança dos gostos, comprometiam-se a analisar como ela era um mecanismo de reforço da hierarquia social.
Nessa direção, Lipovetsky (1989) rebate veementemente, as concepções e o tratamento histórico anteriores a moda:
O esquema da distinção social que se impôs como a chave soberana da inteligibilidade da moda, tanto na esfera do vestuário como na dos objetos e da cultura moderna, é fundamentalmente incapaz de explicar o mais significativo: a lógica da inconstância, as grandes mutações organizacionais e estéticas da moda (...). Ao contrário do imperialismo dos esquemas da luta simbólica das classes, mostramos que na história da moda, foram os valores e as significações culturais modernas, dignificando em particular o Novo e a expressão da individualidade humana, que tornaram possíveis o nascimento e o estabelecimento do sistema da moda da Idade Média tardia. (LIPOVETSKY, 1989, p. 11)
A moda, portanto como afirma Sant?Anna (2007) mais do que indicar os gostos que mudam de tempo em tempo, a fim de atender a vontade de distinção de um grupo social, é um sistema, que constitui a própria sociedade em que funciona.
Assim, como afirma Crane (2006) o que no século XIX era apenas privilégio das elites, converteu-se num universo segmentado, esfera de construção de identidades e estilos de vida, por onde passaram a transitar indivíduos de diferentes camadas sociais. Com o desenvolvimento das técnicas de produção e de distribuição, o jogo da mobilidade social e o advento da publicidade, a moda perde sua especificidade enquanto produto histórico da relação homem-natureza e adquire um caráter essencialmente natural e necessário no mundo moderno.
Para a autora, independentemente de qualquer época ou lugar, a roupa sempre foi um diferenciador social, uma espécie de retrato de uma comunidade ou classe. Mais ainda: a história da moda esta inserida no próprio desenvolvimento da humanidade e, conseqüentemente, na evolução e na mudança de costumes.
Por um lado, as roupas de moda personificam os ideais e valores hegemônicos de um período determinado. Por outro, as escolhas do vestuário refletem as formas pelas quais os membros de grupos sociais e agrupamentos de diversos níveis sociais vêem a si mesmos em relação aos valores dominantes. (CRANE, 2006, p. 454)
Assim, o sentido da moda está em que a roupa significa algo, e exatamente por significar algo que ela pode ser usada como instrumento de mediação entre o indivíduo e o sentido que ela imprime em suas ações. Hoje, como forma de comunicação não-verbal e visual, o vestuário é um meio poderoso de se apropriar de uma multiplicidade de códigos e signos, capazes de expressar identidades, status social e comportamentos.
A moda e o vestuário, como papel de tornassol, oferecem pistas para desvendar as ligações entre estrutura social e cultura e para traçar itinerários da cultura material em sociedades fragmentadas. Na sociedade cada vez mais multicultural do século XXI, os códigos de vestuário continuarão a proliferar como meio de expressar relações no interior de grupos e segmentos sociais, e entre eles, e como indicadores de respostas a hegemonias ainda mais conflitantes. (CRANE, 2006, p. 474)
1.2. Da moda "de classe" para a moda "de consumo"
O desenvolvimento da poderosa mídia eletrônica e da grande penetração de imagens mudou a difusão da moda e redefiniu a questão de sua democratização. As mudanças econômicas e sociais alteraram o significado das roupas e dos bens de consumo em geral.
Segundo Diane Crane (2006) no século XIX e no início XX, o sistema da moda produziu estilos de roupa que expressavam a posição social das mulheres que as vestiam, ou aquela a qual aspiravam. A moda de classe se expressava por regras rígidas, e implícitas nessas regras, a moda expressava ideais sociais de atitude e comportamento femininos. Porém, como afirma a autora, por detrás da aceitação desse tipo de moda havia o medo da exclusão, a qual significava que uma mulher não tinha consciência do modo correto de se comportar.
Já na moda "de consumo", que vem a substituir a "de classe", em vez de orientar para gostos das elites, a moda de consumo incorpora gostos e interesses de grupos sociais de todos os níveis. Há muito mais diversidades de estilos, e muito menos consenso sobre o que está "em voga" em determinada época, como afirma Crane (2006). Aqui, a principal marca não é o estilo em si, mas uma imagem que possa competir no mundo de imagens disseminadas entre as massas, que formam a cultura da mídia. De acordo com Crane (2006),
A motivação do consumidor para adotar um estilo baseia-se em sua identificação com grupos sociais através de bens de consumo, e não no medo de ser penalizado pela não-conformidade. Modelos de comportamento são extraídos da cultura de mídia, a saber: astros da televisão, da música popular, do cinema e dos esportes. (CRANE, 2006, p. 274)
Nesse sentido, Lipovetsky (1989) defende, que a sociedade constituída mundialmente após a Segunda Guerra Mundial pode ser entendida como aquela na qual a moda é consumada. O termo "consumada" pode ser entendido tanto com o sentido do consumo como ação de integração dos sujeitos ao mundo social, como também permite a interpretação que, no mundo atual, a moda está de tal forma presente nos significados da vida que não há como fugir dela, de restituir antigos sentidos; ela é fato consumado.
Pode-se caracterizar empiricamente a "sociedade de consumo" por diferentes traços: elevação do nível de vida, abundância das mercadorias e dos serviços, culto dos objetos e dos lazeres, moral hedonista e materialista etc. Mas, estruturalmente, é a generalização do processo de moda que a define propriamente. A sociedade centrada na expansão das necessidades é, antes de tudo, aquela que reordena a produção e o consumo de massa sob a lei da obsolescência, da sedução e da diversificação, aquela que faz passar o econômico para a órbita da forma-moda. (LIPOVETSKY, 1989, p. 159)
O estudo que o autor realiza procura então, enfatizar como o objeto materializa a idéia do novo e proporciona o sentido da superação de si pela tecnologia que apresenta, o que é intitulado como "forma-moda". Ou seja, a forma-moda é a absorção de objetos e ações pela lógica da moda.
Assim, para além das novidades da moda, sua história e seu funcionamento, destacarem suas lógicas que a organizam e os elos que a unem a todo coletivo, passa a ser o foco desta pesquisa. Ou seja, tão importante quanto à moda e seus significados, discutir suas mudanças e permanências, identidades, estilos, beleza, sedução e corpo passam a representar todo o conjunto de codificação particular próprio do fenômeno moda.
1.3. Mercado e Consumo
Conforme Rocha (2005) a sociedade de consumo ? e, de maneira mais geral, a modernidade, da qual ela é manifestação mais explicita e o sintoma mais agudo ? pode ser compreendido como aquela que assiste ao fim das tradições. "Quando se pode escolher entre tantas opções, é porque o que esta em questão não é mais sua dimensão tradicional, mas seu valor de troca" (Rocha, 2005, p. 113).
Como aponta Giddens (1991) uma conseqüência da modernidade que é particularmente indicativa do processo de enfraquecimento das instituições, são os comportamentos compulsivos que aparecem quando o peso da tradição não é mais suficiente para organizar a conduta humana. Uma vez rompida essa norma, o individuo já não sabe como, quanto ou para que consumir
Assim, o consumo passa a ser palco do processo de renovação constante da imagem e da forma dos produtos. Essa constante é nítida no universo da moda. Ao mesmo tempo em que o consumo passa pela idéia do desejo como forma de satisfação pessoal, esse, por sua vez, necessita de um constante processo de renovação que permita um sistema de variações e modificações de seus produtos.
Nessa direção, Rocha (2005) afirma ser o consumo a derradeira esfera de produção de identidade, aquela que permitirá ao indivíduo criar a si mesmo, atribuir-se uma história e uma consciência ontológica.
Portanto, para a autora a lógica do consumo não é, como poderia parecer, a de induzir a compra de determinados bens, mas o fato de qualquer coisa poder ser convertida ao serviço dos bens e transformada em mercadoria ? ou seja, produzida, distribuída e consumida.
Quer um xampu específico que se adapte ao seu tipo de cabelo? Quer uma atitude de revolta, displicência, engajamento? Quer se sentir parte de um grupo, movido pelo ideal comum? Ou, pelo contrário, quer a sensação de que você é único, e que precisa de uma roupa especialmente concebida para você? (ROCHA, 2005, p. 118)
É esse o mecanismo da publicidade ? e da sociedade de consumo, da qual ela é expressão mais pura ? traduzir um espírito, atitude ou estilo de vida em um objeto que possa ser adquirido. Ou seja, o verdadeiro objeto de consumo não são nem produtos, nem os estilos de vida, nem mesmo as sensações por eles proporcionados, mas sim, a própria subjetividade que é deste modo produzida.
1.4. Bem vindo à sociedade midiática!
Conforme Rocha (2005) a publicidade preenche, sem dúvida alguma, necessidades sociais, já que presta informações sobre bens disponíveis no mercado, empregos, serviços, etc. É ela que mantém as empresas midiáticas devido às suas receitas, que são uma indispensável fonte de rendimentos. E também é graças à publicidade e seus estudos de mercado que os media puderam conhecer melhor o seu público, ainda que apenas na perspectiva do consumo. Mas tais colaborações deixaram rastros que nem sempre são positivos.
E, apesar da publicidade ter melhorado a sua qualidade geral nos últimos anos, produzindo anúncios que, na televisão, por exemplo, podem ser consideradas como pequenas obras de arte do ponto de vista técnico, ela apenas se expressa de uma forma mais bem camuflada e sutil, tornando-se, assim, mais eficaz.
O conceito "supermercado de estilos", criado na década de 90 pelo historiador inglês Ted Polhemus, para, como explica Palomino (2003) dar conta da existência de uma multiplicidade de estilos, reflete bem as possibilidades de escolhas oferecidas pelo o mecanismo da publicidade.
Para Polhemus, "supermercado de estilos" é como se todo o universo, todos os períodos que você jamais imaginou, aparecesse como latas de sopa numa prateleira de supermercado: "Você pode pegar os anos 70 numa noite, os hippies em outra [...], um moicano punk e um rímel dos anos 60 [...] e, pronto, você tem sua própria e sincrônica amostragem de cultura pop.
Dessa forma, o comportamento de consumo pode ser explicado pela necessidade de expressar significados mediante a posse de produtos que comunicam à sociedade como o indivíduo se percebe enquanto integrante dos grupos sociais.
Para Sarlo (1997) somos sonhados por ícones da cultura, pelas capas de revistas, os cartazes, a publicidade, novelas e cinema. Cada um de nós encontra um fio que promete conduzir a algo profundamente pessoal, nessa trama tecida com desejos absolutamente comuns.
Hoje, o mercado pode tanto quanto a religião ou o poder: acrescenta aos objetos um "algo mais" simbólico fugaz, porém tão poderoso quanto qualquer outro símbolo. Os objetos criam um sentido para além de sua utilidade ou de sua beleza ou, melhor dizendo, sua utilidade e sua beleza são subprodutos desse sentido que vem da hierarquia mercantil. (SARLO, 1997, p. 30)
Assim, a mídia trabalha para que a sua produção de imagens chegue ao indivíduo de maneira que legitime e afirme não só o consumo, mas também os modos de sociabilidade nelas inseridos. A mídia ensina o que, onde, quando e como consumir. Mais: ensina como devemos ser. Por meio de suas representações, o sujeito pode se reconhecer como personagem principal das imagens, espelhando-se nos modelos apresentados, fazendo da imagem algo a ser copiado.
Para Castilho & Martins (2005, p. 22),
As mídias especializaram-se cada vez mais em construir mundos perfeitos, possíveis, desejáveis, prováveis, e tanto outros nos quais se espelham os sujeitos e seus destinatários. Todas essas criações estão pautadas em estratégias narrativas, discursivas e mesmo nas de textualização que geram tais efeitos de sentido de construções de mundo, aos quais subjaz, sempre, a de ilusão de que determinado produto, publicizado pelas mídias, é absolutamente necessário, desejável, querido, fundamental, imprescindível para seus possíveis consumidores.
É sabido que, de uma maneira geral, a publicidade escolhe a sedução em vez da informação, prefere o emocional ao racional, recorre a técnicas intensivas de persuasão que se confundem com a manipulação, troca as situações humanas reais por estereótipos, abusa da exploração sexual do corpo, enfim, reduz o público a uma massa de consumidores não pensantes.
Nasce então, a sociedade do "parece ser", na qual a mídia forma padrões de identidade que são estabelecidos pelo modo como o indivíduo interage com as imagens. Conforme Hall (2000) afirma é por meio das interações comunicativas que as identidades são construídas. Ao ver as imagens, o espectador vai tomá-la como representação do seu cotidiano e, conseqüentemente, como um exemplo a ser seguido. Nessa dinâmica, as imagens se tornaram onipresentes e importantes meios para a difusão de signos, símbolos e informações; mais: nós consumidores, passamos a ser meras mercadorias midiáticas.
Lomazzi (1989) discute que através da publicidade o homem transforma-se a si próprio em objeto. A mídia, na sociedade contemporânea, fornece modelos a todo instante de como ser e agir, onde as imagens veiculadas ajudam a construir cotidianos, padronizar comportamentos sociais e forjar identidades.
A ação da mídia, principalmente da narrativa publicitária - considerada aqui como um conjunto de representações que expressam diferenças, comportamentos; define capitais sociais e oferece um mapa classificatório que regula dimensões importantes da experiência social contemporânea - servem de pólo de agregação para que o consumo se fragmente na construção de identidades voláteis e ideologias vazias.
Nessa ampliada ideologia de consumismo e da busca do prazer, o que passa a ser destaque, a dar possibilidades de inserção social, é a imagem e seus recursos visuais. Para Diógenes (1998), o impacto estético e visual das imagens publicadas possibilita modos diversos de existência e de reconhecimento público, assim a imagem tornou-se parte da cultura da mídia.
Diante da multiplicidade de sentidos atribuídos tanto a moda, quanto às imagens vinculadas pela publicidade, Sarlo (1997) afirma diagnosticar em quase todo o Ocidente, uma "escassez de sentidos". Vive-se uma crescente homogeneização cultural, onde a pluralidade de ofertas não compensa a pobreza de ideais coletivos, e cujo traço básico é, ao mesmo tempo, o extremo individualismo. Para a autora, o mercado unifica, seleciona e, além disso, produz a ilusão da diferença através dos sentidos. Mais do que isso, o mercado reproduz juntamente com a mídia o ideal de beleza e corpos perfeitos, à prova da velhice, isentos de qualquer descuido ou preguiça.
Assim, o deslumbre que a mídia provoca e busca constantemente apresentar por meio de suas narrativas publicitárias, com todos os artifícios que ela dispõe para vender a falsa impressão do indivíduo único, sedutor e original, pode comprovar que a moda não é mais vista como mera atividade de contemplação de status e adorno corporal e sim, como mercado, matriz reguladora de um movimento cíclico interminável característico da própria dinâmica da sociedade de consumo e de todo seu leque de material simbólico.
1.5. "O espartilho do século XXI está na cabeça"
"A moda reafirma a liberdade do homem de criar a própria pele; não a primeira, que é dada biologicamente, mas a segunda gerada por sua imaginação e fantasia e, tornada real por sua engenhosidade técnica"
(Baitello Junior)
É inegável o valor que tem representado o corpo no papel de marcador de identidades e representações identitárias na contemporaneidade, notadamente o corpo feminino que ocupa ainda hoje um lugar de destaque na indústria cultural, seja da moda, publicitária ou cinematográfica.
A presença do corpo sempre foi obsessiva na história do mundo ocidental. Não apenas no domínio ideológico, mas também no campo objetivo das forças, meios e relações de produção e consumo, enquanto lugar de inscrição, de distinções sociais variadas ou como força de produção, matéria que é consumida e que consome.
As temáticas da moda e do corpo nunca estiveram tão próximas como objetos de reflexão. Para Castro (2003) vestir o corpo é um aspecto universal da experiência humana e não há registros de culturas que não tenham essa prática como regra social. Este dado cultural esta associado ao fato de que cobrir o corpo constitui-se num dos meios pelos quais o mesmo se torna social e assume uma identidade, isto é, desejável, respeitável, aceitável, enfim, adequado.
Deste modo, a construção da aparência, passa a depender cada vez mais das formas e volumes corporais, ou seja, somos pressionados em numerosas circunstâncias a concretizar, em nosso corpo, o corpo ideal de nossa cultura (Tavares, 2003).
Somos cada vez mais confrontados pela a idéia que nos é oferecida pelos meios de comunicação. A mídia encarrega-se de criar desejos e reforçar imagens, padronizando a idéia de que cultuar o corpo é consumir antes de tudo signos e imagens, mais: que o corpo é agenciador por natureza das múltiplas identidades.
Cada vez mais vivemos em função da imagem que o corpo representa. E é a partir da construção de cada corpo ? no caso o meu, o seu ? que o indivíduo chega à autoconstrução. Somos a todo o momento bombardeado por imagens que nos fazem refazer em nossos imaginários a ilusão de que sucesso está ligado à boa aparência, que o belo, representa poder de sedução, que o gordo, flácido, reflete um sujeito fraco, descuidado e feio. Nossos corpos passaram a agregar valores, ora são um emblema, ora são uma marca, ora são um prêmio.
O corpo foi transformado em um objeto, e como todo objeto, passível de ser transformado, projetado, construído, remodelado e esculpido. As mulheres do século XIX usavam espartilho. Esse artefato consistia em uma armação de arame, varas de madeira e barbatanas de baleia revestida de tecido. Na frente e atrás, cordões e colchetes. A estrutura era colocada em volta do tronco da mulher, como uma armadura, e os cordões apertados até o limite (Castro, 2003, p. 75). Assim, o objetivo do espartilho era espremer a cintura, pressionando a barriga para dentro, estufando os seios para cima e fazendo os quadris serem empurrados para trás. Mas acima de qualquer dificuldade que existia em respirar, sentar ou manter um gravidez por 9 meses, o objetivo do espartilho, não difere do que é imposto hoje no século XXI: o desejo de ser magra.
Quando as mulheres, no século XX conseguiram se livrar do espartilho foi uma revolução, e também um alívio. Porém, podemos dizer que mudam os meios, mas os corpos ainda sim continuam sendo construídos, modificados e transformados. Se em 1882, as mulheres se submetiam a práticas e costumes considerados bizarros e estranhos para nós, pobres mortais do ano de 2009, imagine então, o que elas diriam ao verem que hoje, as próteses são internas.
Segundo Lipovetsky (2000) é a partir do século XIX que a concepção de beleza divide-se em duas: a tradicional e a moderna. Até o século XVIII podemos considerar a beleza como uma concepção tradicional, em que a característica fundamental é a relação da beleza física com as virtudes morais; beleza "é a mesma coisa que o bem, toda perfeição física excluindo a feiúra da alma e toda feiúra exterior significando um vício interior" (Lipovetsky, 2000, p. 120 e 121) Já na concepção moderna de beleza a "peculiaridade é definir a beleza como uma característica estritamente física, um valor autônomo distinto de qualquer valor moral".
Então, não corresponder aos padrões estéticos não mais significava vícios interiores. Corpo e alma desvincularam-se. Se o indivíduo não estava satisfeito com seu corpo, se algum aspecto de seu corpo era motivo de desconforto ou mesmo capaz de discriminá-lo, no grupo social a qual queria pertencer, este indivíduo poderia e deveria interferir em sua configuração corporal.
Assim, a tirania da beleza e da magreza, passa pelos mecanismos de aceitação da pessoa para o grupo e para si mesma, fazendo com que haja a necessidade de se igualar a um padrão imposto pela sociedade do consumo. A lógica do culto ao corpo, se por um lado promove mecanismos de identidade, diferenciação, auto-estima, por outro, também nos leva a um aprisionamento das regras estéticas, condenados ao belo, moldados pelas capas de revistas e as celebridades da televisão e cinema.
Hoje há uma supervalorização daquilo que só os olhos podem ver, do sorriso esteticamente lindo que esconde uma profunda tristeza, do descartável, da negação de quem se realmente é pra sermos aquilo que esperam que sejamos. E o que cria e norteia o senso comum é justamente a coerção social, é a convenção de uma sociedade que hoje vê como bom e belo, o jovem e o "esticado". Importante salientar que o individual e o social são faces indissociáveis da mesma moeda. Como qualquer outra realidade de mundo, o corpo também é socialmente construído.
O posicionamento da mulher no mercado de trabalho a colocou em evidência e em disputa com sua própria imagem criando um ideal a ser seguido. Houve uma ruptura entre corpo e a questão da beleza e o que era pra ser saudável, tornou-se uma obsessão fora de controle. Se observarmos a fundo, pode-se perceber que as mulheres, em alguns sentidos, estão sendo moldadas como um produto e perdendo sua auto-imagem
Portanto, se por um lado a moda individualiza a aparência, homogeneizando gostos e estetizando imagens, de outro a publicidade além de criar desejos, reproduz em nossos corpos ? palcos de visibilidade ? uma escravização, na qual sacrificamos nosso tempo, nossos prazeres e nossos investimentos. Sinais claros de que, o sentido da vida passou a ser a produção de um corpo perfeito, no qual fechado diante de um espelho produz uma vida vazia e sem sentido
1.6. No palco das identidades
"... É duro andar na moda, ainda que a moda
Seja negar minha identidade,
Trocá-la por mil, açambarcando
Todas as marcas registradas,
Todos os logotipos do mercado..."
(Carlos Drummond de Andrade)
Falar em identidade é ligar o sujeito a um quadro contínuo de referências, constituído pela interseção de sua história individual com a do grupo onde vive. A identidade pode ser entendida como o processo de apresentação e atribuição de qualidades a um sujeito, segundo sua cultura, atitudes, aparência e também na expressão dos seus valores.
Segundo Bauman (2005) a idéia de ?identidade? nasceu da crise do pertencimento e do esforço que esta desencadeou entre o ?deve? e o ?é?. O termo identidade tem sido usado para designar o conjunto de condições que rege e classifica a ação do indivíduo ou do grupo numa situação interativa, permitindo-lhe agir como ator social. Falar em identidade é evocar um complexo relacional que liga o sujeito a um quadro contínuo de referências, constituído pela interseção de sua história individual com a do grupo onde vive. A identidade de alguém é sempre dada pelo reconhecimento de um "outro", ou seja, a representação que o classifica socialmente.
Para Hall (2005) a identidade é algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato. Ela permanece sempre incompleta, esta sempre "em processo", sempre "sendo formada". Nesse caso, ao invés de falar da identidade como uma coisa acabada, Hall utiliza o termo identificação, para evidenciar a idéia de um processo nunca completo, de uma prática constante de significação. Não há, portanto, uma ordem estável e substancial de constituição do sujeito, mas uma dinâmica de interiorização de comportamentos, atitudes e costumes, a partir de padrões significativos no ambiente familiar e social.
Elas [as identidades] têm a ver com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Têm a ver não tanto com questões "quem nós somos" ou "de onde nós viemos", mas muito mais com as questões "quem nós podemos nos tornar", "como nós temos sido representados" e "como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios.
(HALL, 2000, p.108)
Desde a metade do século XX a identidade vem sendo abordada pela teoria social como uma realidade em crise. Para Hall (2005) as identidades modernas estão sendo descentradas, deslocadas, fragmentadas. As velhas estão em declínio, fazendo surgir novas identidades características da pós-modernidade e fragmentando o indivíduo moderno, visto até então como um sujeito unificado.
A assim chamada "crise de identidade" é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abandonando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.
(HALL, 2005, p. 07)
Hall afirma ainda, que as identidades nacionais permanecem, mas as locais e regionais têm se tornado mais importantes, colocadas acima do nível da cultural nacional. Hoje, o sujeito não se estabiliza unicamente através da primeira. Ele não tem mais a idéia de uma identidade fixa, mas sim de uma fragmentada, composta não de uma única, mas de várias. Ele afirma que,
à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada um das quais poderíamos nos identificar ? ao menos temporariamente.
(HALL, 2005, p. 13)
Portanto, o sujeito que emerge é pura possibilidade, entre cruzamento de identificações e diferenciações, como sujeito mutante e gestor de "identidades próteses", que além de diferenciadas, são muitas vezes contraditórias. Nas sociedades contemporâneas os indivíduos já não têm um lugar estável, seguro no mundo social. Falta-lhes uma identidade que fixe e assegure um lugar e significados. Ao contrário, estão imersos em processos e existências que estimulam a pluralidade de ser e o fragmentam, descentrando-o em "identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas", como exprime Hall (2005, p.36).
Para Featherstone (1997) o aspecto mais relevante na situação global é a capacidade de lidar com um leque de material simbólico de onde podem ser formadas várias identidades, de acordo com a situação. O autor observa que "essa liquidação do eu em um conjunto de papéis situacionais, separados, também ecoa na ênfase que as teorias pós-modernas conferem à descentralização do eu e à apresentação da pessoa como um conjunto de quase-eus frouxamente conectados" (Featherstone, 1997, p. 89)
Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades dentre as quais parece possível se fazer uma escolha. Para Hall, foi à difusão do consumismo que contribuiu para esse efeito de "supermercado cultural" onde as identidades parecem flutuar livremente.. Quanto mais à vida social se torna mediada pelo mercado, mais elas parecem pairar sob novas articulações e concepções livres das relações temporais e de espaço tradicionais
Na contemporaneidade as tradições não fornecem o único quadro de possibilidades de expressão de identidade do sujeito. A pluralidade de referência tem como conseqüência uma possibilidade de escolha por parte do sujeito com base em sua afinidade e identificação. Assim, as pessoas não identificam mais seus interesses sociais exclusivamente em termos de classe. Há uma multiplicidade de repertórios culturais.
Portanto, a moda, relacionada ao atual cenário em transformação, torna-se peça fundamental na construção de identidades provisórias, assim como as imagens veiculadas pelas campanhas publicitárias, se tornaram mercadorias.
A moda, imersa nesse sistema, onde a principal meta é a produção de símbolos e sistemas de signos, é o campo ideal para a construção do processo de significação, ou seja, para a construção de identidades. Agora, resta saber, que tipo de identidade esta se produzindo quando os produtos simbólicos são tão diversificados.
Assim, o que se propõem com essa pesquisa, é considerar que a moda, tão passível de rótulos artificialmente criados, é possuidora de um caráter que perpassa o nível do utilitarismo. Através das roupas mostramos quem somos, a que classe social pertencemos, nossa idade, sexo ou no mínimo, quem fantasiamos ser. Mas ela não esta sozinha quando o assunto gira em torno das identidades que estão sendo construídas, desconstruídas, reforçadas e resignificadas.
Nas sociedades atuais, os objetos ganharam uma dimensão de valor maior a do que seu próprio valor enquanto produto.E são as mídias ? o discurso publicitário ? que representa papel central nesse processo de legitimação de gostos e referências estéticas na contemporaneidade, onde símbolos constituem nos campos da produção cultural, realidades socialmente construídas.
Portanto, o corpo passa a ser observado como lugar da construção dos sentidos, da composição de identidades que advém do imaginário social e do espaço de investigação e criação de novas realidades. E a beleza, conseqüentemente faz-se reflexo deste turbilhão de informações geradas por esta sociedade no qual o estético ganhou caráter primário na construção do sujeito.
Dessa forma, a moda, intimamente ligada ao consumo de imagens veiculadas pela publicidade, no qual o corpo passa a seu outdoor, torna-se objeto de estudo valioso quando o que se quer buscar são respostas ? ou possíveis caminhos ? para questionamentos ora vazios de ideologias, ora entregues a lógica do mercado.
Capítulo II
2.1 Pelos Caminhos da Beleza: As imagens midiáticas do "O Boticário"
Recentemente, começou a ser veiculada na mídia uma nova peça publicitária da empresa O Boticário, umas das líderes de mercado no segmento de cosméticos. A nova assinatura da empresa intitula-se: "O Boticário: Acredite na beleza". Segundo notas divulgadas pelos idealizadores do projeto, tudo isso configura uma tentativa de criar "um novo olhar para o território da beleza".
No comercial Repressão, através de um filme em preto e branco, com duração de apenas 1 minuto, a marca de cosméticos traz a tona uma série de questionamentos ao desenrolar imagens sob pano de fundo para se analisar como seria viver num mundo onde todos são iguais, onde não existe beleza, um mundo sem vaidades. Um mundo onde mulheres são padronizadas, mergulhadas em tons de cinza que criam uma atmosfera sufocante sob ausência de individualidade. Eis que surgem as perguntas, que formam na extensão do comercial os questionamentos feitos pela a interlocutora, cuja resposta é dada ao final pelo próprio narrador.
Não seria bom viver em um mundo sem vaidade?
Um mundo onde a imagem não tivesse importância?
Onde a beleza não fosse valorizada?
Não seria bom viver nesse mundo?
Não! Não seria.
No vídeo, fez-se a opção por um sujeito que, inicialmente, está em disjunção com seu objeto-valor: a vaidade ou a beleza. Esse sujeito, revestido concretamente pela figura de uma mulher jovem, em que se percebe um semblante pálido, sem vida, triste.
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0007
Essa falta de vida percorre todo o comercial, sendo evidenciada pelas cores apagadas, pela predominância do cinza, que denota a obscuridade de um mundo sem a luz que, segundo a idéia do enunciador, surge apenas com a beleza. O filme se introduz com uma mulher saindo de dentro de um banheiro público, onde já não há mais espelhos. No momento em que é mostrado o "mundo" destas mulheres, um carro com alto-falante passa pelas ruas emitindo a seguinte mensagem: "Beleza Não! Beleza Não!"
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0008
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0009
É interessante ressaltar o fato de que as personagens do vídeo são todas mulheres, as principais consumidoras dos produtos da empresa. Além disso, elas estão vestidas todas com as mesmas roupas, também de cores cinzentas, apagadas, o que reforça a idéia da existência de uma força maior que controla a conduta dessas pessoas, definindo o modo de se vestir, de se comportar, sempre tristes e com semblantes opacos.
Essa força que rege a vida dessas personagens cria uma espécie de molde, dentro do qual todos os integrantes da sociedade devem se encaixar, seguindo os padrões preestabelecidos por ela. É uma "fôrma" que persegue a vida desses indivíduos em diversas atividades. Em seguida, vêem-se mulheres num salão, que ao invés de ser um local de inovação e de busca pela beleza, passa a ser a concretização suprema dessa "repressão", desse controle total.
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0011
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0013
Essas cenas sugerem como seria viver num mundo "onde a imagem não tivesse importância", "Onde a beleza não fosse valorizada". Esses elementos mostrados até o momento já são capazes de legitimar os efeitos negativos da ausência da beleza, idéia esta proposta pela campanha do "Boticário". No decorrer do filme publicitário, vêem-se mulheres serrando o maior ícone da feminilidade, o "salto-alto", e lançando os secadores de cabelo as chamas.
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0016
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0017
Essas cenas podem ser analisadas por diferentes perspectivas. Assim pode-se dizer que ao fogo está sendo lançada a feminilidade, a essência da figura da mulher, sua identidade. O fogo representa a ideologia repressiva que se alastra e elimina tudo que foge a seus princípios. As mulheres, trabalhando como máquinas, nos remetem às fábricas, como se os sujeitos, no vídeo, fossem meros produtos originados a partir de um molde único, que os prepara para a vida em sociedade já toda programada para impedir a existência da beleza. Ao dar seqüência, a propaganda mostra a cena em que bonecas, cópias idênticas das personagens, percorrem uma esteira como se acabassem de ser produzidas, confirmando a idéia de produção em série de seres idênticos.
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0019
Mas não são apenas as mulheres que se tornaram meros moldes pré-fabricados. No vídeo, isso é observado na cena em que uma criança busca sua imagem refletida numa colher. Porém, como a "imagem não tem importância", sendo vista como algo proibido, a mãe da menininha, a reprime, impedindo que utilize o talher como um espelho, objeto banido da sociedade em que vivem.
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0021
Como pode ser observado, a justificativa para o título do comercial ? Repressão ? é facilmente encontrada nessas imagens, nas quais indivíduos são a todo o momento guiado por uma conduta ideologicamente criada, sem chances e sem espaço para a expressão do "ser".. Há todo momento vive-se uma repreensão no que tange ao assunto beleza e vaidade, objetivo lógico da empresa de cosméticos "O Boticário". A intenção até o momento é chegar ao final do questionamento feito pela interlocutora, "Não seria bom viver nesse mundo?". Um mundo onde não há espaço para ostentação de imagens, onde não existe beleza, vaidade ou mesmo diversidades de cores e estilos?
Assim, como se houvesse um grito de "Eu Cansei", "Basta", que a personagem do comercial percebe que no lugar da repressão, é preciso dar lugar a liberdade. Essa mudança tem início no momento em que a personagem vê imagens na TV, mostrando pessoas como ela, revelando o equívoco da conduta que vem sendo seguida, à força, por todos. A situação a coloca num processo de fuga.
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0023
E é então, que num lugar com coisas cobertas e escondidas, que a personagem encontra uma pequena caixa empoeirada. Além de reencontrar sua imagem, por meio do uso de espelhos, ela encontra algo que será capaz de torná-la diferente. Isso é simbolizado por um produto que leva a marca, obviamente, de O Boticário: um batom de cor vermelha que, colocado nos lábios desse indivíduo, devolve-lhe a beleza roubada. Nesse momento, a interlocutora responde a todos os questionamentos realizados no começo da campanha: "Não, não seria!"
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0025
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0027
Por fim, a personagem sai, surpreendendo a todos com a cor da maquiagem, que se destaca no universo dominado pelo cinza. Uma a uma, as mulheres a olham, com admiração. Percebe-se que uma nova mentalidade começa a surgir. Além disso, fica evidente que a idéia de beleza só passa a existir, a partir do momento que a personagem adquire um produto do Boticário.
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0031
2.2. Verdades Indesejadas: A manipulação do "O Boticário".
No Brasil já se fez anúncios de escravos.
Hoje, servida por meios poderosos de comunicação e persuasão,
a propaganda faz escravos. Não a todo mundo, mas faz.
Orígenes Lessa
O vídeo institucional de O Boticário tem como intenção principal persuadir consumidores de produtos cosméticos acerca da sua eficiência na busca pela beleza, e o faz com eficiência, lançando mão de inúmeros argumentos que, figurativizados por elementos do mundo real, tornam o discurso quase que irrefutável.
No entanto, inúmeras outras questões podem ser observadas a partir das imagens exibidas pelo comercial.
A primeira abordagem interpretativa sobre a qual podemos discorrer, diz respeito à forma pela qual todas as mulheres do vídeo se vestem. A padronização, ou mesmo a homogeneização do vestuário, do corte de cabelo e dos sapatos nos leva a um questionamento: As imagens postas à tona pela empresa de cosméticos no filme publicitário se diferem de tal forma da realidade vivenciada pelas mulheres atuais?
Não se pretende afirmar que vivemos em uma sociedade uniformizada, aprisionada por padrões rígidos, que vive sem vaidade ou mesmo sem beleza, mas através das imagens midiáticas do filme publicitário, pode-se fazer uma analogia com o comportamento de moda atual.
A opressão ideológica a que estamos submetidos objetiva-se, dentre outras formas, na chamada cultura de massa, impetrada via indústria cultural. Essa indústria, um eficaz e contundente aparelho ideológico, acaba por restringir e definir padrões de conduta sociais. Adorno (1986), ao discutir a indústria cultural e seus efeitos na constituição do indivíduo, diz que o valor de troca, decorrente de uma cultura de massa,
Corresponde ao comportamento do prisioneiro que ama sua cela porque não lhe é permitido amar outra coisa. A renúncia à individualidade que se amolda à regularidade rotineira daquilo que tem sucesso, bem como o fazer o que todos fazem, segue-se do fato básico de que a produção padronizada dos bens de consumo oferece praticamente os mesmos produtos a todo cidadão. [...] A igualdade dos produtos oferecidos, que todos devem aceitar, mascara-se no rigor de um estilo que se proclama universalmente obrigatório; a ficção da relação de oferta e procura perpetua-se nas nuanças pseudoindividuais. (ADORNO, 1986, p. 80).
Assim, a publicidade, juntamente com os meios de comunicação de massa, converteu-se em um dos mecanismos mais importantes de estratégias de venda e manipulação.
Diante disso, o consumidor passa a ser o objeto da indústria cultural, e esta por sua vez, extermina o que é particular, nivela a produção, sobrepõe o valor de troca ao valor de uso, padroniza as consciências, mecaniza o consumo, legitima a sociedade capitalista e favorece a resignação, ou seja, "[...] a verdade em tudo isso é que o poder da indústria cultural provém de sua identificação com a necessidade produzida" (Adorno, 1986, p.128).
De fato, as necessidades passam a ser construídas, pois é somente no consumo de bens fetichizados que se manifesta a "liberdade individual" que fora perdida com a reificação das relações sociais.
Portanto, encontramos na moda um caráter interessante, pois o processo de massificação da sociedade e a percepção do sujeito da des-individualização os levam a buscar nas roupas um meio de singularidade. No entanto, a moda não garante tal unicidade, porque ela é um logotipo que faz propaganda de si mesma. A indústria cultural, por sua vez, lança no mercado inúmeros modelos e estilos, o que dá a sensação de poder optar e escolher, mas ao mesmo tempo ela padroniza a dimensão subjetiva dos indivíduos de maneira à coisificá-los e, por meio da eleição arbitrária de um padrão corporal, levá-los a uma busca constante e desenfreada por uma estética ideal.
Para Diógenes (1998) pode-se falar em estética mundial. Observa-se um modo universal de vestir-se, de consumo cultural e da mídia homogeneizando gostos e imagens. "Habitantes de pontos diversos do planeta podem, perfeitamente ao cruzarem, por exemplo, a 5ª Avenida, em Nova York, sentir-se identificados tanto na sua aparência física, como nas gestualidades". (Diógenes, 1998, p. 38). Assim, a obediência aos padrões tende a ser alcançada hoje em dia pela tentação e pela sedução e não mais pela coerção ? e aparece sob o disfarce do livre-arbítrio, em vez de revelar-se como força externa. Segundo Bauman (2001) a vida deixou de ser normatizada rigidamente por ordens disciplinares, para ser orientadas pela sedução, "por desejos sempre crescentes e quereres voláteis".
Para Lipovetsky (1989) se a cultura de massa esta imersa na moda é também porque gravita em torno de figuras que impulsionam adorações e paixonites extremas: estrelas e ídolos. De fato, hoje, o que se vê nas ruas são clones dos ícones da música, das novelas, das capas de revistas e do cinema. Para autor a cultura de massa antes reproduz os valores dominantes do que propõem novos. Ontem, ela antecipava o espírito do tempo, estava "adiantada" em relação aos costumes; hoje, não faz mais do que segui-los ou acompanhá-los, já não oferece pólos de identificação em ruptura. Portanto, pode-se dizer que vive-se um fenômeno de massas ideologicamente mortas. De "homem confecção" e de "mulher catálogo", no qual o consumo assume-se como a grande ideologia do vestir, fazendo com que os sujeitos recriem uma certa unidade cultural.
Diante dessa relação pode-se questionar: a busca pelos padrões da moda instituído pela indústria cultural pode ser entendida como uma libertação de uma categoria de excluído ou como uma das mais simples formas de submissão, homogeneização e sujeição a lógica do mercado?
Não vivemos como as mulheres uniformizadas do comercial, mas a moda foi transformada numa massa compacta, sem identidade e cultura própria, assim, quanto mais houver escolhas das redes de comunicação, "mais os programas se alinharão uns pelos outros e a padronização social irá crescendo" (Lipovetsky, 1989, p. 227). Vemos mulheres com os mesmos cortes de cabelo, os mesmos vestidos e os mesmos calçados. Essa alienação se dá pela oferta de produtos que, mapeando todo o espaço com objetos, propõe o afastamento do homem de si, leva-o a descrença em seu poder autônomo de inovação. Nesse sentido, Simmel (2005) afirma ser a imitação uma ação que não exige esforço criativo e pessoal. Na imitação é o grupo que conduz o indivíduo, na medida em que, simplesmente, transmite a forma do seu comportamento e liberta o individuo da tortura e da responsabilidade da escolha.
Cria-se freqüentemente, uma moda a partir da invenção, por parte de alguma personalidade extraordinária, do modo de vestir, de se comportar (...) modos estes que permitem a essa personalidade distinguir-se dos outros. Esses outros procuram avidamente essa nova oportunidade de prestígio, imitando, tão rápido quanto possível, por conta de sua significação, o comportamento daquela personalidade. A satisfação deste último advém da mistura entre o sentimento de individualidade, de possuir algo especial e particular, e o sentimento social, pela imitação da multidão que o leva a ser carregado pelo seu espírito. (SIMMEL, 2005, p.164)
Não há dúvida de que a moda não é uma produção unilateral, mas sim construída em diálogo com o conjunto da sociedade. De um modo geral, a moda tem sido vista como uma obrigação com a qual se deve conformar e que coloca um peso enorme sobre a população feminina. Infelizmente, não se questiona mais o bonito do feio, o estranho do normal, o "que fica bem em mim" ou não. A moda passou a ser uma obrigatoriedade, uma escravização, mesmo que esta, não seja uma regra social. Se todos têm, também quero ter, mesmo que não fique bom em mim.
É evidente o maciço empenho dos meios de comunicação em vender a idéia de uma total transformação da condição pessoal e social dos indivíduos, através da obtenção de determinados padrões.
No filme publicitário, essa "transformação" do sujeito é anunciada no momento em que a personagem, por meio de um batom vermelho da marca "O Boticário", adquire uma nova conduta social e passa a fazer parte do novo padrão que se faz surgir. Percebe-se atualmente que a indústria televisiva brasileira é capaz de estimular anseios, ditar comportamentos, moda e estilos de vida, buscando vender seus produtos associando-os aos artistas famosos e democratizando imagens a serem compartilhados por todos. Diante disso, milhares de produtos são adquiridos pelos consumidores, sem que possa ter tempo de refletir sobre toda manipulação ideológica realizada pela indústria cultural.
Outro ponto interessante a ser destacado, devido a sua clareza, que salta aos olhos de um leitor mais atento, diz respeito à marginalização. A propaganda, num primeiro momento, coloca todos os indivíduos num mesmo plano de estratificação, ou seja, todos os personagens apresentam-se com as mesmas características, as mesmas funções, enfim, com o mesmo estilo de vida. Mas, no instante em que ocorre a transformação da personagem principal, ela é elevada de nível, propositalmente, tendo consigo um dos símbolos do poder, um objeto, um batom da cor vermelha, que a torna, naquela hora, superior aos demais.
Evidentemente, aqueles que a olham, são deixados à parte, já que não pertecem ao novo padrão que começa a surgir. Para Sarlo (1997) o desejo do novo é, por definição, inextinguível. Uma vez rompidas às comportas da tradição, da religião, das autoridades indiscutíveis, o novo se impõe. Porém, no pólo oposto aos detentores do novo, estão os excluídos do mercado: "desde os excluídos que, de qualquer modo, ainda podem sonhar consumos imaginários, até aqueles cuja pobreza os restringe ao curral das fantasias mínimas".
Partindo desta compreensão, o filme publicitário do Boticário, não pretende apenas dar sentido ao produto, ou proporcionar prazer a quem assiste, esta além disso, a empresa espera que o ato de passar batom da protagonista se torne desejo, admiração, imitação. Em outras palavras, como afirma Sant?Anna (2007) em torno do objeto ? no caso da propaganda, o batom ? se constitui uma densa teia de significados em que o sujeito da ação (o objeto de consumo) e do discurso (a publicidade) são distintos, contudo complementares para que o consumo atinja seu pleno desempenho. Assim, nessa constituição de sentidos, a manipulação das fichas simbólicas e a agregação dos produtos produzem uma massa de excluídos dessa trama social.
Além disso, essa idéia de segregação pode ser perfeitamente transposta para nossa realidade, uma vez que as pessoas, ao serem manipuladas pelo poder da beleza conseguido "apenas" através de O Boticário e, talvez, sem ter acesso a seus produtos, podem se sentir postas à margem, por acreditarem não se encaixarem nesse estereótipo criado.
Hoje em dia, a preocupação com relação à beleza tem menos a ver com o grau de repetição das mensagens do que com a evolução da mesma, devida inclusive à sua democratização. O que é normativo para a mulher contemporânea não é o fato de modelos de beleza serem impostos, uma vez que isto sempre existiu, nem mesmo que seja dito que ela deve ser bela, mas o fato de afirmar-se, sem cessar, que ela pode ser bela, se assim o quiser.
Portanto, se analisarmos mais a fundo, essa segregação imposta pelo O Boticário, não permanece apenas no plano da exclusão de não possuir aquele outro que não tenho, mas pode ser transportada pelo fato da empresa reforçar ainda mais a beleza como algo que deve ser conquistado, fazendo com que a supervalorização da mesma, se transforme em algo pelo qual pessoas passem a se dedicarem de uma forma obstinada para tê-las. Além disso, a obrigação de ser/estar bela, proposta pela empresa recai que quando não estamos maquiadas, essa aparência tão almejada, não existe. Ou seja, a peça publicitária é uma ode a beleza superficial, beleza esta removível com água e sabão. Será então que só se é belo, a partir do momento que faço parte da nova onda, "beleza solúvel" ? E a beleza natural, pessoal e única de cada mulher, deve ser escondida atrás de camadas de maquiagem? Ou esta, simplesmente não existe?
Nossa aparência é uma das formas de apresentarmos ou representarmos no mundo, ou seja, a aparência acaba por nos propiciar, por parte do outro, atribuições de determinados papéis sociais, expectativas de conduta, e que, mediante esses papéis, nossas ações serão avaliadas nas relações sociais. Mas, daí a achar que a verdadeira chave da beleza esta nos produtos de uma empresa de cosméticos em potinhos de plástico e capas de batom tem uma distância enorme.
O fato é que se pararmos para responder o questionamento feito pela interlocutora do filme publicitário, ficaríamos em dúvida sobre a real intenção do interlocutor. Não seria bom viver num mundo sem vaidade? Em um mundo, onde a imagem não tivesse importância?Um mundo onde a beleza não fosse valorizada?Não, não seria. "Acredite na beleza."
Portanto, acreditar na beleza e seguir os padrões pré-estipulados pela mídia e as grandes marcas de cosméticos, torna-se legitimadora quando o assunto é ser ou não bela. Assim, a empresa de cosméticos traz o sujeito "beleza", como via libertadora para as mulheres do comercial, ou seja, aquela que aderiu ao produto da empresa passou a ser bela, e a fazer parte da conduta imposta pela sociedade contemporânea: magra, cabelos esticados, jovem e branca. Portanto, os padrões estéticos repetidos a exaustão pela mídia continua a ser a referência maior do posicionamento da empresa, mesmo quando o fenômeno da supervalorização estética e a potencial exclusão produzida por sua implementação sobre a população que não atende aos seus ditames, produz indivíduos, cada vez mais, empurrados para a condição de estigmatizados.
E é aí que surge mais uma questão a ser discutida: a exaltação da beleza através da mídia. A tentativa de mostrar um poder "oculto" que inibe a prática da vaidade/beleza, com a disseminação de uma ideologia repressiva, mostra-se frustrada, por transformar o mundo, de acordo com o comercial, num local sem vida, sem cor, onde todos parecem "aceitar" o modelo imposto. No entanto, a mídia (a TV) um dos principais meios de veiculação surge para trazer de volta os padrões de beleza, no momento em que a protagonista observa as "imagens-padrões" que devem ser seguidas, buscadas, alcançadas.
Num sentido mais amplo, mídia é o estudo, a análise e a interpretação dos veículos de comunicação como instrumento de expressão publicitária. Deste modo, ela se faz necessária para construir a imagem desejada de determinado produto ou idéia. Assim, nesse processo de construção a mídia, tem participação marcante ao exercer uma manipulação tácita por meio da veiculação de mensagens baseadas no discurso dominante cujos alvos principais é a beleza.
Conforme afirma Lipovetsky (1989) no coração da publicidade trabalham os próprios princípios da moda: a originalidade a qualquer preço, a mudança permanente, o efêmero. Assim, da mesma maneira que a moda individualiza a aparência dos seres, a publicidade tem por ambição personalizar a marca. Segundo esse autor,
Hoje, a publicidade criativa solta-se, dá prioridade a um imaginário quase puro, a sedução está livre para expandir-se por si mesma, exibe-se em hiperespetáculo, magia dos artifícios, palco indiferente ao princípio da realidade e a lógica da verossimilhança. A sedução funciona cada vez menos pela solicitude, pela atenção calorosa, pela gratificação, e cada vez mais pelo lúdico, pela teatralidade hollywoodiana... (LIPOVETSKY, 1989, p.188)
Assim, no filme publicitário em questão, a empresa de cosméticos busca a idealização da mercadoria, através da sedução publicitária, fazendo-se promessa de beleza, idealização estética, renovação da aparência, "menos repetição cansativa e estereótipos, mais fantasia e originalidade." (Lipovetsky, 1989, p.190)
Lançando mão desses artifícios, o público alvo da marca de cosméticos aguça sua curiosidade a cerca da imagem construída como a ideal a ser seguida, e são incentivadas a consumir não apenas o produto de beleza, mas símbolos de um determinado estilo que se forma em torno deste. O que esta em questão não é apenas o ato de comprar, mas sim se sentir parte do conjunto. Portanto, o que você adquire não é simplesmente um batom, mas sim, um batom do O Boticário, o que configura uma citação de Bourdieu (1983) "do desconhecido não há desejo". Para o autor, "a grife é a marca que muda não a natureza material, mas a natureza social do objeto."
Segundo Bergamo (1998) independentemente de qual marca se fale a sua característica central é que todas comercializam a imagem de um estilo, ou seja, de um conjunto de atribuições que, na prática, se esforça por imprimir ao consumidor individual e ao mundo que o rodeia, e com o qual ele se identifica uma imagem una. Desse modo, ao retratar todas as mulheres idênticas, compactas em tristeza e em tons de cinza, e ao legitimar a uma única o poder da beleza e vaidade, a marca de cosméticos oferece ao consumidor um universo de possibilidades de símbolos estéticos, atrelados a um estilo inserido a uma posição de privilégios, alcançados somente por aqueles que fizerem parte deste estilo, ou seja, Acreditar na Beleza!
Obviamente, as possibilidades de análise não foram esgotadas, haja vista a profundidade da temática empregada pelos idealizadores da campanha. Porém, algumas das principais temática, foram abordadas aqui, tais como: moda, exclusão, beleza e mídia. Assim, foram verificados os sentidos advindos das imagens do comercial para concretizar o discurso criado, bem como suas diversas interpretações.
Capítulo III
3.1. A Beleza Contagia: o segundo passo do "O Boticário"
A segunda campanha institucional da empresa de cosméticos O Boticário a ser analisada, intitula-se "Contágio" e completa a nova fase de comunicação da marca, inaugurada com o filme publicitário "Repressão". Neste segundo filme, mostra-se um mundo alto-astral e colorido, completamente diferente do primeiro, intitulado "Repressão", que trazia um ambiente sem vaidade, em preto-e-branco. Aqui, a beleza é vista como agente transformador e contagiante. A campanha completa o movimento da marca em "prol do poder da beleza no dia-a-dia e ao alcance de todos, salientando como ela tem o poder de contagiar aqueles que a experimentam, independente da forma". Para a empresa, tudo o que é belo contagia e provoca uma sensação positiva em todos que estão ao redor. "É o poder de transformação da beleza. Esse conceito permeará toda a linha de comunicação da empresa".
A campanha publicitária "Contágio" com duração de apenas 1 minuto, traz consigo um diferencial para além das imagens vibrantes e coloridas: a música. O fato é que, a canção além de produzir uma melodia encantadora e divertida, traz em sua tradução a mensagem pelo qual a empresa traduz nas imagens reproduzidas.
Make it better, everybody, everywhere, oh, oh, oh
Faça algo melhor, todo mundo, em todo lugar, oh, oh, oh
Make it happen, everyone and everyday, oh, oh, oh
Faça acontecer, todo mundo e todo dia, oh, oh, oh
Everybody! Everywhere! ? Todo mundo! Em todo lugar!
O filme se inicia com imagens sujas, feias e velhas. Um balde que se enche de água devido uma goteira; um terreno baldio com carros enferrujados e deteriorados pelo tempo e ruas tomadas pelo lixo com muros pichados.Vale ressaltar, que neste momento a música ainda não está presente, tendo apenas como sinais de som, os pingos d?água e o sopro do vento.
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0060
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0062
No vídeo, ao contrário do primeiro filme veiculado pela empresa, o sujeito em questão é uma mulher bela, feliz, colorida, maquiada, com unhas feitas e cabelo impecável. A roupa traduz combinação de cores fortes e emblemas distintivos de uma personagem que chama atenção pelo olhar marcante e o vibrante sorriso. Porém, vale salientar que a roupa em questão, sugere um estilo básico, calça jeans, camisa branca e casaco de moletom verde. Nada que extrapole o fútil ou exagerado.
A personagem inicia sua participação no comercial com o ritual diário da beleza feminina. Aqui, a modelo aparece passando um batom vermelho da marca O Boticário, e utilizando o espelho como o poderoso meio de se sentir visto pelo outro, através de si mesmo.
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0065
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0066
Essa sensação vibrante, colorida e viva percorre todo o cenário do comercial, assim como a música, que se introduz juntamente com a imagem da personagem principal, fazendo com que, o filme se torne alegre e descontraído. Após finalizar o processo de embelezamento, a personagem deixa o quarto de hotel em direção ao elevador. Nesse momento, passa por uma pessoa que caminha pelo corredor que, contagiado por sua beleza, aproveita para arrumar o quadro mal posicionado da parede do corredor. Já no elevador, encontra com uma mulher que ao ser contagiada por sua beleza, se olha no espelho e logo em seguida soltas os cabelos querendo ficar mais bonita. Essa transformação vai acontecendo em todos os lugares pelos quais a modelo do filme passa, legitimando assim, o título do filme publicitário: Contágio.
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0072
Nesse processo de contágio transmitido pela a personagem como um vírus que se alastra pelo ar, a beleza é vista como a propagadora da razão de todas as coisas serem/estarem mais bonitas. Ou seja, todos que a vêem sentem vontade de ficar de alguma maneira, não importando qual, mais bonitos, e automaticamente vão tornando o mundo mais belo. Para O Boticário "ao se permitir ficar mais bonita por fora, a pessoa se sente melhor também emocionalmente. O fato é que todos têm o poder de deixar o dia-a-dia mais vibrante, alegre e colorido, basta querer. Se você esta bem, o outro também fica."
Assim, ao sair do prédio a personagem alastra sua beleza para todos que se encontram ao redor: na barbearia, os homens se contagiam, fazendo a barba; o cachorrinho torna-se mais limpo após um banho de espuma; na loja, as mulheres capricham no próprio visual, com roupas novas e assim sucessivamente outras ações vão ocorrendo.
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0076
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0078
E é assim, contagiando a todos, que o filme publicitário reafirma o poder da beleza, ou seja, de um mundo mais belo. Ao dar seqüência, o comercial mostra a cena em que a personagem dança e do outro lado da rua, é imitada por uma garotinha; e assim ações em relação à limpeza do ambiente, começam a ocorrer. Jardins são aparados em sincronia por diversas pessoas; o lixo é jogado na lixeira pela mãe e sua filha; a parede é coberta por papel parede; o carro é consertado e até a sobrancelha é arrumada no retrovisor. Mas tudo isso ocorre sobre o olhar atento da personagem, que como um poder oculto, anda pelas ruas espalhando como contágio, seu poder de beleza.
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0085
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0086
Por fim, a modelo da propaganda desperta com sua beleza o olhar atento de uma pessoa incomum, que ao perceber o muro todo pichado e o passeio sujo, transforma-o através de um mutirão em um lugar limpo. No final entra o letreiro: A beleza é contagiante. E em seguida: O Boticário. Acredite na Beleza.
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0088
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0090
3.2. O outro lado da história: O poder contagiante da Beleza
Diferentemente do discurso defendido pela empresa de cosméticos no primeiro comercial que compõe a assinatura Acredite na Beleza; "Contágio" é uma continuação do novo mundo que surge após a protagonista de "Repressão", abolir as amarras da sociedade, e libertar-se para o mundo no qual a beleza é valorizada e onde as imagens têm importância.
Em outras palavras, o vídeo institucional de O Boticário aposta na idéia da beleza como algo a ser universalizado, conquistado e repassado através de ações que contribuam para que haja um embelezamento da sociedade, não importando idade, raça ou gênero. No entanto, algumas questões podem ser observadas a partir das imagens exibidas pelo comercial.
A primeira abordagem a ser discutida, diz respeito ao papel da beleza, ou da supervalorização da mesma, nos dias atuais. No comercial, a beleza existe, é algo real, e a partir dela, outras pessoas vão se tornando mais belas, devido à forma de contágio, estipulado pelo O Boticário. Portanto, cabe-se interrogar: Qual a influência da invasão do ponto de vista estético da repetição e vinculação de palavras e imagens, correlacionadas com o papel mediador da beleza ? indústria de cosméticos -, na construção das identidades femininas?
É importante salientar que a pressão exercida pelo fenômeno "beleza" não incide exclusivamente sobre aqueles empenhados na busca por uma estética ideal, mas atinge a todos nós, de forma mais ou menos intensa, ao tentarmos atingir ou manter determinada aparência, ao encobrirmos possíveis imperfeições, ou na obstinação pela valorização pessoal por não sentirmos que expressamos o padrão esperado e desejado publicamente.
Assim, a beleza na qual estamos nos referindo se equivale à menor porcentagem de gordura corporal possível, nádegas e seios grandes empinados, músculos definidos, pele bronzeada, lábios grossos, ausência de celulite, de estrias, de qualquer mancha ou espinha na pele (por menores que sejam), e de qualquer característica que denote idade, como rugas, marcas de expressão e flacidez.
Dessa forma, busca-se através desse conceito de beleza, no qual o corpo nunca é perfeito e deve ser corrigido por numerosos rituais de autotransformação, sempre seguindo as imagens padrões veiculadas pela mídia, que o comercial pode ser utilizado como pano de fundo para os questionamentos relacionados à construção das identidades femininas.
A atual demanda por determinada aparência ganha, a cada dia, um maior espaço no cotidiano das mulheres. Como dito anteriormente, a aparência nos propicia, por parte do outro, atribuições de determinados papéis sociais, e que, mediante esses papéis, nossas ações serão avaliadas nas relações sociais. Assim, podemos olhar o fenômeno da supervalorização da beleza, como a busca de uma representação de si mesmo, ou seja, de um papel que se constrói a partir de uma identidade pressuposta, à qual a pessoa se lança por meio da manutenção ou mesmo do constante aprimoramento dessa aparência.
Em outros momentos históricos, a beleza era entendida como a harmonia entre as formas; hoje, a beleza tão divulgada e exaltada pela mídia acaba por definir-se como uma via de evidência de poder, explicitado via poder de consumo do indivíduo. Somos todos consumidores e é a partir de tal referência que nos posicionamos na grande maioria das relações sociais, ou seja, "só sabemos quem somos com base no que consumimos." (Rocha, 2005, p. 112). Assim, a conseqüente padronização do belo e a batalha pelo corpo ideal tomam as rédeas do processo "comandado pelo fetiche de uma personagem, com a qual nos identificamos (e somos identificados) e que nos coisifica" (Ciampa, 1987, p. 178-179)
Hoje, a beleza pode ser vista como uma fonte de significados, um foco de identificação e um sistema de representações de símbolos e signos. Para Hall (2005) as identidades estão se desintegrando, como resultado do crescimento da homogeneização cultural, ou mesmo de um complexo de processos e forças de mudança, que pode ser sintetizado sob o termo "globalização". Assim, segundo o autor quanto mais mediado for à vida social de imagens da mídia, estilos e palavras, mais as identidades se tornarão desalojadas de tempos, lugares, histórias e tradições.
Portanto, a implementação cultural da supervalorização da beleza, suas regras e normas, quase sempre efêmeras para a aceitação do indivíduo como sujeito incluído no processo de legitimação do belo, levam as pessoas a dificuldades na concretização do processo de construção da identidade. Mas então, com tanta simbologia diversificada, padrões estéticos, mudanças constantes e signos de consumo, qual identidade esta se formando?
Para Hall (2005) as identidades estão em crise. As velhas identidades estão em declínio fazendo surgir novas identidades, deixando assim o sujeito moderno fragmentado. A "crise de identidade" faz parte de um processo amplo de mudança, no qual os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável foram abalados. Assim, novas identidades estão surgindo, produzindo novos sujeitos. E é nesse jogo na questão das identidades, que O Boticário surge como fonte de símbolos e representações, capaz de proporcionar ao indivíduo consumidor a ilusão da diferenciação, posição social, além disso, a ilusão de estar aderindo a um novo estilo de vida e comportamento.
Portanto, pode-se dizer que um dos elementos chaves do comercial "Contágio" é mostrar aos consumidores ? aos velhos e aos novos ? que a apropriação dos bens produzidos pela empresa ? no caso da propaganda, um batom ? expressam significados que vão além da manifestação de desejos individuais em busca da beleza. A empresa, mediada pelos meios de comunicação, passa a representar um símbolo de identificação, entre o sujeito e o que ele busca para si mesmo.
E é aí que surge outro caso interessante que pode ser destacado, representado pela comparação feita pelo comercial entre o velho e o novo. A propaganda, no seu primeiro momento, exibe imagens de objetos sujos, velhos, enferrujados, esquecidos e até mesmo, mal-cuidados, como o exemplo do goteira, que com um pequeno conserto pode ser reparado. Mas, no instante em que ocorre a transformação da personagem principal ? com apropriação de um produto da empresa ? o novo, no caso o belo, surge. Através desta comparação, podemos discorrer sobre um dos focos de atenção principal, quando o assunto é beleza: o corpo
Diferentemente da moda, que dura o período de uma novela, ou no máximo o período das estações do ano, a beleza ? os padrões estéticos ? das atrizes e dos ícones das passarelas, perpetuam por mais tempo. Além disso, associada ao gênero feminino, a beleza acaba por assumir no senso comum uma obrigatoriedade, quase sempre realçada na busca sem medidas por um corpo perfeito.
E isso é perfeitamente visível na publicidade atual: quando o personagem principal é um homem, os valores dominantes do discurso incidem, por um lado, sobre o seu sucesso social e profissional e, por outro, evidenciam aspectos relacionados com a virilidade ou com a noção de poder, mas se é a mulher que se destaca, a mensagem incide na perfeição das formas anatômicas, ou na sua sensualidade e pureza do seu rosto. O que é perfeitamente visível no discurso publicitário do O Boticário. No comercial, a empresa deixa claro, que através de seus produtos, a beleza pode sim ser conquistada, basta acreditar. O que é velho, feio, ou até desleixado, pode ser transformado, em algo que, visto por outros tornará objeto de desejo, ou seja, de contágio.
Assim, cabe-se questionar: Por que o corpo passa a ser tão valorizado na perspectiva de sua aparência? Por que a aparência corporal, exaltada pelos meios de comunicação, é aquela validada e compartilhada pelos indivíduos como a mais bela?
Na cultura ocidental atual, o conceito de beleza está associado à juventude, como se o belo fosse necessariamente igual a ser jovem. Ao mesmo tempo em que se conhece a importância da saúde como fonte de prazer, todos os esforços são investidos para dissolver a velhice. O aumento da expectativa de vida tornou-se um problema, pois as mulheres não querem transformar-se, ou seja, não querem envelhecer. É isso que aponta Augras (1996),
A distância entre o modelo da revista ? dos comerciais ? e o reflexo no espelho também contribui para a dificuldade de integração. Não se trata apenas de conciliar senso de realidade e aspirações narcisistas. O que propõem as fotografias são corpos imaginários, abstratos e inatingíveis e, por assim dizer, eternos. Não são submetidos à dor, nem ao envelhecimento, ainda menos a morte. (AUGRAS, 1996, p. 44-45)
Dessa forma, a velhice atua sobre a pele demonstrando mudanças drásticas decorrentes do avançar da idade. Nos primeiros sinais de rugas, as pessoas sentem-se desvalorizadas frente à sociedade, com a sua vaidade ferida, sobretudo na perda da auto-imagem e mudanças bruscas nas interações sociais.
Assim, vivemos marcados pela obsessão do corpo perfeito; onde as mulheres buscam, a todo custo, enquadrar-se em padrões de beleza, como se isso fosse uma tentativa de recuperar a auto-estima perdida pela comparação com os próprios padrões estéticos. Infelizmente o que encarcera a mulher ao mito de embelezamento não é o fato de ela desejar cuidar de sua aparência, mas, sim, as representações que este mito cria e que faz com que ela se sinta invisível se não atingir os padrões estipulados para seu tempo.
Em outras palavras, o corpo é transformado em mercadoria e o desejo de beleza, inculcado pela mídia. Os corpos são assim, construídos de acordo com a dinâmica e os modelos estabelecidos pelos meios de comunicação de massa. Já a beleza, é veiculada como condição de felicidade, de sucesso profissional e amor. São as pessoas bonitas, ricas, desejadas e famosas que são apresentadas como exemplos e que se tornam referências e padrões a serem seguidos. Assim, a beleza antes um dom natural, passa a ser um investimento pessoal, como uma forma de estar preparado para enfrentar os julgamentos e expectativas sociais. Ou seja, todos os investimentos destinados aos cuidados pessoais com a estética vinculam-se a visibilidade que o sujeito deseja atingir. O que se deseja e o que se busca, é o impossível, inalcançável, porque a imagem apresentada como ideal não existe numa referencia real, mas é construída pela criatividade, pela tecnologia e pelos processos mercadológicos.
Assim, o corpo passa a sujeitar-se a objeto de manipulação por parte do mercado, com suas atuais estruturas de produção e consumo, por meio de um aparelho ideológico alimentado pela mídia de massa, o que favorece que o indivíduo desenvolva representações acerca de seu próprio corpo: o corpo como objeto de consumo e como palco das vaidades.
Portanto, fica claro que a mídia é a grande responsável pela propagação dos padrões de beleza, pela razão mais simples de que são as indústrias que a sustentam através da publicidade. É uma rua de duas mãos onde uma (a indústria de consumo) financia e a outra (a mídia) veicula.
Torna-se a mídia novamente importante nessa discussão. Mais do que uma propagadora de informação, a mídia constrói realidades. E assim, O Boticário o faz. A beleza tornou-se um dever ? se eu quiser, consigo ? uma pressão ? acredite na beleza ? e uma forma cada vez mais difundida dos modelos e padrões de beleza ? a beleza é contagiante.
Enfim, a análise aqui realizada buscou mostrar os recursos utilizados pelo O Boticário a fim de difundir a idéia do poder transformador ? contagiante - da beleza. Poder este analisado sob forma de construção das identidades femininas, através da veiculação e repetição das imagens correlacionadas com o papel mediador da beleza. Assim, a empresa mediada pelos meios de comunicação, passou a representar para seus consumidores um símbolo de identificação, uma fonte de significados e um sistema de representações. Mais que uma forma de contágio, a beleza aqui é vista como algo que pode ser sim conquistado, com pequenos gestos, fazendo com que todos sintam o poder contagiante em acreditar na beleza.
Capítulo IV
4.1. Guarda-chuva: O jardim encantado do O Boticário
O Boticário apresentou no dia 05 de março de 2009, o terceiro filme de posicionamento da marca, que traz a assinatura "Acredite na Beleza". O comercial intitulado "Guarda-chuva" traz aos consumidores da marca a idéia de que "as pequenas atitudes podem transformar até os dias mais nebulosos num belo dia, cheio de boas energias e cores, porque a beleza contagia."
Diferentemente das duas outras campanhas publicitárias analisadas até o momento, "Guarda-chuva" traz uma curiosidade imperceptível para os olhares menos atentos. Em nenhum momento a empresa de cosméticos preocupou-se em vender algum produto da marca. Ou seja, durante a execução do comercial o que se vê são apenas imagens produzidas para se vender uma idéia, porque ao contrário dos outros comerciais, neste, não há presença de maquiagens, batons, cremes ou perfumes, apenas da assinatura: A beleza é contagiante.
Durante o filme publicitário "Repressão", O Boticário traz à tona as imagens para depois, revelar no poder do seu batom a libertação da personagem principal. Já no segundo comercial, o batom, utilizado como arma de contágio para a disseminação da beleza é uma das primeiras imagens a serem reveladas, porém, na terceira e última propaganda, não há indícios de produtos de beleza, ou seja, aqui o que se vende é um estilo, um comportamento.
Na campanha - com duração de 1 minuto ? a música também esta presente. Música esta utilizada em sincronia com as imagens. No começo, em que os guarda-chuvas estão sendo distribuídos, ao momento em que a chuva cai, existe uma seqüencia exata, entre o instrumental e o ritmo frenético que dá espaço para a velocidade do comercial. Assim, podemos dizer que é a música grande responsável pela emoção que a propaganda nos traz.
Ao perceber a mudança do clima com a chegada de nuvens negras no céu, mulheres, maquiadas, bem vestidas, brancas e com cabelos lisos - o estereótipo perfeito para vender algo, que esta subliminarmente escondido por detrás das imagens veiculadas ? ao invés de se lamentarem e correrem para se abrigarem, saem as ruas distribuindo vários guarda-chuvas coloridos para todas as pessoas que estão ao redor.
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0109
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0111
Desse modo, como uma forma de contágio, as pessoas saem dos carros, ônibus fazendo um grande mutirão para que todos possam receber os guarda-chuvas, antes que a chuva comece a cair. Após cada um já possuir o seu, todos correm pelas ruas formando uma extensa multidão, ansiosa esperando que as primeiras gotas de chuva caiam.
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0115
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0118
Logo que a chuva desaba os guarda-chuvas são abertos, e pode-se ver que em cada um deles se encontra uma linda flor estampada. As ruas então se transformam num jardim regado pela chuva. Nesse momento, abarcado pela música, as pessoas se transformam. Aparece uma felicidade no ar, uma mistura de satisfação e alegria que contagia a todos, da criancinha ao vovô.
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0122
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0123
Assim, após formar um imenso jardim pelas ruas da cidade, que são vistos do alto por três lindas mulheres, aparece o slogan: "A beleza é contagiante".
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0139
Fonte: www.portaldapropaganda.com/.../2008/07/0141
4.2. Um mundo de imaginários: Guarda-chuva Boticário
O terceiro comercial da assinatura "Acredite na Beleza", não nos remete a um discurso diferente do já defendido anteriormente pela empresa de cosméticos, quando o assunto em questão foi à forma de "contágio" imediato da beleza. Porém, "Guarda-chuva" nos traz um elemento diferenciador das demais propagandas analisadas. Aqui, o que se vende é uma idéia, e não um produto em si.
Para Barthes (2007) nosso organismo esta acostumando a se manter na superfície da imagem, sem se preocupar com seu conteúdo, nos levando a um mundo de imaginários. Não estamos mais interessados em entendermos ou questionarmos os vínculos ocultos e subliminares postos frente aos nossos olhos. Apenas a aceita-los.
Assim, cabe-se perguntar: Em que medida as mulheres aceitam ou rejeitam essas imagens como significativas para a construção de sua própria identidade? E até que ponto a imagem audiovisual da indústria da beleza é capaz de produzir valores simbólicos e imaginários capazes de construir uma lógica social pautados na aparência?
Nos modos de vida atuais, a beleza, cada vez mais associada às formas do corpo e ao jeito de ser, não somente exprime, mas compõe identidades. Identidades essas, que segundo Woodward (2000) só adquire sentido por meio dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas. Assim, para o autor, a identidade é marcada por meio de símbolos, pois existe uma associação entre a identidade da pessoa e as coisas que a pessoa usa. A beleza funciona assim, neste caso, como um significante importante da diferença e da identidade e, além disso, como um significante que é, com freqüência associado à feminilidade.
Nesse sentido, podemos sugerir que O Boticário torna possível, através de seus sistemas simbólicos ? no caso, a publicidade ? sermos aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar. O fato é que, segundo Woodward (2000) "em momentos particulares, as promoções de marketing, podem construir novas identidades" (Woodward, 2000, p. 17). Os anúncios, segundo o autor, só serão "eficazes" no seu objetivo de nos vender coisas se fornecerem imagens com os quais os consumidores possam se identificar.
Nesse contexto atual de produção de identidades, a aparência, a imagem pessoal, guarda destaque como revelador do ser. A dimensão imagética da vida social foi refletida por Maffesoli (1996) que denominou a contemporaneidade como mundo imaginal, em razão da força das manifestações imaginárias, simbólicas, aparentes, instituindo a teatralidade como modo de vida. E qual o lugar primeiro dessa teatralidade senão a própria auto-imagem, conferindo ao sujeito a possibilidade de contar uma história, de afirmar quem é, poderíamos dizer de anunciar-se. "Tudo contribui para isso: multiplicidade das vestimentas, profusão das mensagens publicitárias, colcha de retalhos das construções arquiteturais. A vida urbana é mesmo das aparências". (Maffesoli, 1996, p.159).
Fazendo uma analogia com a moda, a busca pela aparência, pela auto-imagem funciona como a roupa que permite a camuflagem através de uma aproximação estética com os indivíduos. Assim, as imagens veiculadas pautadas na beleza, difundidos por toda a sociedade pelos processos mercadológicos e midiáticos, atuam na produção de gostos, preferências e comportamentos que se estendem além das classes e dos grupos ideológicos, criando novas formas de identidades baseadas mais em elementos simbólicos, porém sem dispensar os elementos econômicos.
Em certo sentido, as imagens veiculadas pelo O Boticário, nos fazem compreender os significados que compõem a construção das identidades, isto é, as meninas querem bonecas iguais a elas ou querem ser iguais as bonecas? Parece que as identidades estão se distanciando cada vez mais do vivido e do desejado para o projetado e fantasiado. Podem-se construir diversas identidades para buscar estar mais próximo do que se quer ser ou parecer ser, ou daquilo que estabeleçam que se seja.
Assim, não se pode afirmar com exatidão se realmente as imagens veiculadas pela empresa de cosméticas são rejeitadas ou não, na construção das identidades femininas, porém, o que se pode dizer é que os sistemas simbólicos tornam possíveis que o sujeito faça escolhas. Escolhas entre ser "verdadeiro", posto em busca de uma autenticidade idealizada, possibilitando o alívio da angústia do sujeito que quer se aproximar e se mostrar do modo como esta escolhendo ser. E entre uma realidade absolutamente massificante, no qual os impulsos de mudança são gerados pela referência de imagens que retratam muito mais do que identificação, retratam obrigatoriedade.
Para Lipovetsky (1989) o surgimento de uma multiplicidade de ofertas possibilitou uma multiplicidade de escolhas. As pessoas são estimuladas a pesquisar seus gostos, costumes, personalidade e investir em si a partir de suas próprias características e não segundo a dos outros. Hoje, os indivíduos buscam legitimar-se e não legitimar o grupo ao qual pertencem.
Outro ponto interessante que pode ser destacado, diz respeito a um mecanismo capaz de fazer com que as imagens veiculadas pelo O Boticário, não vendam apenas imaginários e comportamentos, muito menos lógicas pautadas na aparência, existe um mecanismo capaz de vender sonhos, e este se chama: discursos sedutores .
A busca pelo belo, pelo inusitado, a necessidade de ser diferente e ousado faz do indivíduo uma vítima encantada pela indústria da beleza. No entanto, o objetivo em questão não tem como intenção acusar os discursos circulados pela mídia como manipuladores e sim, refletir sobre a sedução, o glamour contido nesses discursos que levam o sujeito a sonhar e desejar um determinado produto, mesmo que isso esteja longe de sua realidade.
A indústria da beleza ganhou contornos ainda mais sedutores com a publicidade; anúncios em revistas, jornais, outdoors cada vez mais requintados, com mulheres lindas, peles saudáveis, maquiagens perfeitas e cabelo sedosos, além da televisão que traz imagens constantes de celebridades que parecem intocáveis com o passar do tempo.
Para Lipovetsky (1989) esse fascínio criado pela publicidade, desperta no indivíduo o encanto, a necessidade de sonhar e de consumir, já que o sujeito tem a liberdade de escolha. "Nenhum anúncio publicitário, por mais sedutor que seja, convencerá os consumidores pós-modernos a abdicarem da liberdade de escolha que arduamente conquistaram" (Lipovetsky, 2004, p.42)
Segundo o autor vivemos a apoteose da sedução, e esse encantamento é aguçado pela mídia, porém o indivíduo o permite e o aceita. Na comercial em questão, as cores, as imagens, as lindas mulheres, geram sonhos, fantasias e desejos individuais. Mais, geram o poder de sedução e o fascínio de fazer parte de um universo maior e que, em seu conjunto, é representativa de um determinado estilo.
Assim, as imagens veiculadas pelo O Boticário, funcionam como vitrines que buscam seduzir. O que esta em jogo na propaganda, não é um produto em questão, que seria apenas uma parte integrante de um conjunto maior, e sim, as cores, a velocidade, a música, o ambiente. Esse conjunto maior é convencionalmente denominado estilo. O Boticário comercializa, portanto, não só produtos de beleza, mas símbolos de um determinado estilo.
Ou seja, os consumidores se encantam e deixam-se seduzir por esse discurso midiático de vaidades, novidades e requinte. E é assim, aderindo a determinados comportamentos, estilos de vida, idéia e atitudes que criamos uma identidade.
Porém, a eficácia do discurso publicitário, como dito acima, reside na combinação de diversos elementos persuasivos. E um desses elementos, que faz com que as imagens passem a fascinar o olhar e se instalar de maneira definitiva no imaginário do receptor é a música.
Sabemos que este recurso está ausente nos textos impressos dos jornais e revistas que, neste caso, terão de apelar para outros instrumentos. No entanto, a grande maioria dos textos publicitários aparece no rádio e, principalmente, na TV quando, por força dos veículos, a música se instala. Assim, para a publicidade quanto mais sentidos do receptor estiverem envolvidos, mais facilmente ele irá aderir ao texto publicitário.
A música tem a propriedade, justamente por "tocar" o sujeito que a ouve, deixando assim a impressão de ligar a sensação proporcionada pela melodia, ao desejo para com o objeto em questão. Ou seja, ao ouvir a música, onde quer que esteja, a imagem é evocada, e com ela o produto.
No caso de "Guarda-Chuva", a música acompanha toda a magia que se é criada no comercial, e mesmo na ausência de produtos, ela proporciona uma idéia de fantasia, bem-estar e felicidade. Assim, temos de concluir que a publicidade, sem dúvida, procede desviando sua mensagem da obviedade para atuar profundamente na subjetividade, pelo encanto de suas armadilhas.
Como enfatiza Ivo Lucchesi (2004), no ensaio "Sedução e poder", a força da sedução está intimamente ligada à da linguagem, para depois constatar que: "Quem seduz sabe que precisa negar a realidade das coisas para, por intermédio da ilusão, atingir o objetivo. Na outra ponta, está o seduzido para quem a realidade só é percebida pelo olhar turvo da ilusão". (2004, p. 66). Acima de tudo, a publicidade seduz porque cria imaginários para além da realidade. Por seduzir a publicidade transforma o mundo, impõe valores, molda novas relações, propõem hábitos, enfim: formata uma nova percepção de mundo.
O Boticário nesta ultima campanha que compõem a assinatura "Acredite na Beleza", propõem exatamente um mundo de imaginários a partir de seus guarda-chuvas multicoloridos. Aqui, a relevância da supervalorização da beleza, a construção das identidades femininas e as lógicas da moda, se sobrepõem ao mundo que permeia entre a realidade e a fantasia.
Considerações Finais
A moda enquanto fenômeno social, não é somente aquilo que se está usando em um determinado momento e em outro não, mas também a renovação constante do vestuário, rotineira e ritualizada.
A questão da moda como lógica de mudança, atinge proporções que vão além da renovação de usos e significados. Essa indústria esta além da novidade; compreender seu funcionamento, destacar as lógicas que a organizam e os elos que a unem a todo coletivo, foi o objetivo geral desta pesquisa.
Assim, a investigação que se concluiu lidou com a construção das identidades femininas, a partir do papel mediador da moda, beleza e corporeidade, tendo como unidade de análise as imagens midiáticas das campanhas publicitárias da empresa de cosméticos O Boticário.
Os resultados encontrados permitem afirmar que os objetivos estabelecidos foram atingidos, ainda que, não tenha esgotado todas as possibilidades de análise, e tampouco conseguido evitar falhas e lacunas. Entretanto, dentro dos limites do corpus investigado, bem como em sintonia com os objetivos traçados, tem-se a convicção de que os resultados obtidos são representativos da questão estudada.
O que pode ser depreendido ao final desta pesquisa, é que O Boticário, através do seu discurso publicitário participa ativamente no processo de subjetivação do indivíduo na sociedade em transformação, onde, são as imagens que se tornaram mercadorias, passando a gerar um novo significado para questões de pertencimento, em uma época de quebra de fronteiras. Mas até que ponto, e de qual forma esse propósito é atingido?
No que tange os apontamentos dessa discussão, as propagandas através de suas multiplicidades de significações e interpretações, revelam o desafio do sujeito, em articular suas diversas máscaras em constante troca, característica de uma sociedade que é movida pela velocidade e renovação.
Através das imagens do O Boticário, a supervalorização da beleza é trabalhada no imaginário feminino como fonte de poder e transformação. A produção e a veiculação das imagens chegam ao indivíduo de maneira que possa legitimar uma espécie de orientação sobre como viver e se relacionar com a sociedade a partir dos modelos apresentados, fazendo da imagem algo a ser copiado. Além disso, fica claro que a beleza apresentada pela empresa de cosméticos expressa valores que vão de encontro com o alcance da felicidade, por meio da valorização da aparência, como elemento chave para o sucesso na vida.
Assim, as imagens utilizadas nas campanhas publicitárias, passam a gerar um novo significado para questões de pertencimento e identidade. O valor funcional do produto dá lugar a outro tipo de valor. Valor que, não apelando para a razão e lógica, só pode apelar para a emoção. Ou seja, O Boticário criou atributos que são representações de ideais que povoam a cabeça da maioria das mulheres da sociedade. Aqui, só basta acreditar no poder da beleza, para que através de seus produtos, essa se torne realidade.
Portanto através de lindas mulheres, cores e sons O Boticário procurou construir um elo de identificação entre seus consumidores e a marca. O que estava em questão era seu poder coletivo de manipular e persuadir, fazendo com que fantasias que antes eram do campo imaginário e solitário, agora sejam do campo representativo.
Espero que tal pesquisa tenha confortado os que acreditam que beleza é fundamental e que de tal forma, seja possível perdoar o corpo pelas imperfeições e deficiências da idade renegociando com um corpo em permanente mutação. Espero ainda, que a beleza seja aceita como dom natural, passível sim de modificações e retoques diários, mas que não se torne uma obrigação quase que tirânica. Por fim, espero que todas as lógicas de mudança da moda, sejam inseridas na vida cotidiana de cada mulher, como fonte de prazer e renovação, de inspiração e poder de sedução, mas que não se torne uma massa compacta de culpas e incertezas.
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