Despejo

Por Maria Cristina Galvão de Moura Lacerda | 09/09/2006 | Contos



Rasgo o aviso de despejo bem na cara do funcionário da imobiliária, digo-lhe alguns palavrões e tomo o elevador.

Sequer olho para a cara de ninguém e nada noto de diferente até que o elevador pára.

Todos se entreolham e, agora, vejo uma mulher de uns trinta e poucos anos, bastante gorda, com uma bolsa imensa e de unhas roídas ao lado de um office boy que carrega uma marmita; uma outra mulher grávida, visivelmente nervosa; um homem de meia idade (qual seria a idade inteira?), fedendo à bebida, que traz um palito de dentes no canto da boca; um cara estranho vestindo uma camisa muito colorida; um executivo com sua pasta e uma mulher estupenda com um vestido insinuante..

Ninguém diz nada...porém dá para ouvir os pensamentos, quando toca o celular da gostosa. É breve e informa estar presa no elevador.

O office boy procura o botão do alarme e o aciona. Em seguida abre a marmita e começa a comer uns bolinhos, agora se toca e oferece.

Todos recusam, menos a gorda, que aceita e fica com os dedos sujos. Desculpa-se dizendo que quando nervosa come mais. Como se houvesse necessidade de explicação e o próprio corpo não demonstrasse.

O homem do palito na boca tira de dentro do paletó amarrotado uma garrafinha e bebe dela, sem a menor cerimônia.

A grávida parece impaciente e passa as mãos pelos cabelos encharcados de suor.

O ar está mais pesado e vira um caos quando alguém solta um pum alto.

Os olhares convergem para a gorda que percebe e disfarça puxando conversa com o executivo dizendo que é poetisa.

Começa a declamar algo, o office boy manda-a calar a boca e, a bem da verdade, ele próprio não deveria ter aberto a dele, fede esgoto.

O da camisa colorida é gay, certeza que é, pois ele demonstra alegria por estar perto do executivo que, por sua vez, movimenta-se tentando esfregar-se na gostosa que lixa as unhas, indiferente.

O silêncio é rompido por um gemido da grávida.

A gorda toma coragem e pede para o office boy mais um bolinho; o da garrafinha toma mais um trago; o executivo passa a mão nas nádegas da gostosa e deve ter errado, visto que o gay fica todo animado, suspirando.

O toque do celular assusta e, com voz maviosa, a gostosa atende, falando baixinho.

Aventura-se o executivo contra a gostosa em uma nova investida de mão, a gorda vê e, pretextando calor, pede ao office boy para trocar de lugar com ela a fim de ficar mais perto do executivo, mas, ao movimentar-se, pisa no pé do bêbado, que diz que pode imaginar como se sente alguém atropelado por um caminhão.

Ela chora, intercalando entre enxugar os olhos com a manga da roupa e roer as unhas. O boy conta uma piada que ofende ao gay (com voz fininha diz que as pessoas não sabem o que é nascer em um corpo de homem com a alma feminina)..

O bêbado imita o gay e a gostosa toma partido do bichinha, dizendo que o rapaz não deveria ofender assim. O executivo, para aparecer, diz que ela é uma bela defensora e questiona se é advogada, mas a gorda (já com a roupa colada ao corpo de tanto suor) retruca que a moça deve exercer a profissão mais antiga do mundo.

A gostosa ia responder quando a grávida geme alto e deixa sair um líquido como xixi.

Todos pulam tentando não molhar os pés e entreolham-se.

- Rompeu a bolsa, exclama, assustada, a grávida.

O caos está instalado e todos falam ao mesmo tempo.

A gorda peida, o executivo busca algo em sua pasta, o boy fala um palavrão lembrando que tinha horário marcado com uma mina, o bêbado tenta acender um cigarro e é impedido, o bichinha, mais louco do que nunca, lamenta não ser ele quem estivesse parindo e eu, bom, eu, nada, fico na minha, observando.

A grávida se contorce e avisa que está tendo contrações.

A gorda pede calma, a grávida diz que ela nunca teve filhos e a manda calar a boca.

A gorda, amuada, conta que é tia e também professora.

A gostosa interfere pedindo para que todos fiquem mais perto uns dos outros a fim de que a grávida tenha um espaço maior e é aplaudida.

O movimento faz o elevador balançar.

Gritos de terror.

Novo gemido da grávida, que fica de cócoras, amparada pelo bichinha.

O bêbado, tirando a garrifinha, a oferece para a grávida que recusa e o executivo toma um trago, enquanto tira o paletó.

A gostosa conta que as índias sempre têm seus partos sozinhas e os preferem de cócoras. A obesa, para não ficar por baixo, acresce que apenas trinta por cento das mulheres morrem de parto.

O bichinha manda-a à merda e ela diz que ele não gosta dela por causa de seus fartos seios e ele, com ar de pouco caso, responde que um monte de carne amorfa não é nada atrativa e, com a voz fininha diz: - Minha filha, homem nenhum a comeria, nem de porre! Nem pagando!

O bêbado está distraído, ensinando respiração cachorrinho à parturiente, mas, ao ouvir a palavra "porre", desperta e manda que todos façam silêncio e rezem.

O boy, com seu hálito de coisa podre, abre a boca e nada diz (um horror).

Um grito alto e um tremendo estouro desloca o ar e, balança o elevador.

Rompe a porta, ela se abre e todos saem agradecendo a gravidez psicológica da mulher, que, já sem barriga, jaz no chão do elevador.

Lembro da ordem de despejo.