DESIGUALDADES SOCIAIS E AS POSSIBILIDADES DO LETRAMENTO

Por José Natalino Pavão de Oliveira | 29/12/2016 | Educação

INTRODUÇÃO

Antes de aprender a gostar de ler o protagonista se lembra do limbo cultural em que vivia com sua família, mergulhados na luta árdua pela sobrevivência. As lembranças que guarda do seu processo de alfabetização são estonteantes: quanta coisa ainda não sabia! Como podiam as folhas de papel conter tanta coisa, tanta história, tanta "explicação", pensava ele! Esse sentimento de "ainda não sei nada, não vou conseguir aprender tudo isso, vou parar e continuar mexendo na roça" paradoxalmente o inquietou e o alavancou. Para conhecer mais sobre os animais, as frutas, as colheitas, era preciso ler. "Não vê o doutor agrônomo, não vê o veterinário?", dizia o protagonista para sua irmã. "Eles têm muita leitura!" Faz-se necessário concordar com todos os autores que postulam sobre a importância da família no desenvolvimento do gosto pela leitura, mas o protagonista não tem lembranças do envolvimento dos seus pais com a leitura. Eram agricultores, não alfabetizados, viviam no campo e do campo tiravam o sustento. Moravam em Tia Velha, um grotão na Serra do Caparaó na divisa do Espírito Santo com Minas Gerais. Trabalhavam muito durante a semana com criação e lavoura. Todo domingo, durante a missa, o protagonista e seus irmãos fingiam ler os folhetos de acompanhamento da liturgia, se bem que muitas daquelas orações já sabiam de cor. Tinham uma pequena inveja das senhoras que liam seus missais, bem vestidas, distintas, compenetradas. Elas certamente pertenciam a uma classe social mais elevada. Sabiam ler, tinham mãos delicadas, rezavam com rosários de pérolas ou cristal brilhante. Os irmãos arregalavam os olhos quando homens bem vestidos, sapatos lustrosos, colocavam dinheiro grande nas sacolas das ofertas que circulavam na igreja - uma pequena fortuna! As crianças daquele nível social, com roupinhas último modelo, sempre cheirosas, não tinham arranhões na pele e nem unhas pretas de trabalhar a terra. Nem se comparavam ao protagonista e sua família, um bando de arigós de mãos rústicas, que suplicavam a Deus por chuvas e dias melhores, rezando em terços de sementes, roupas surradas, vindos daqueles grotões distantes na carroça puxada pela égua Vivarda ou pelo Burro Frouxo.
Quando os tempos começaram a melhorar passaram a vir em duas charretes de segunda mão. Também se recorda com saudades dos momentos em que ficava com seus irmãos na varanda, à boca da noite, quando ouviam histórias contadas pela mãe e pelo pai. Dormiam com as galinhas, como se dizia na roça. Tinham muito trabalho pela frente e era preciso estar de pé antes do sol raiar, mesmo com a geada do inverno naquela altitude. Nunca tiveram em casa rádio ou aparelho de som, quanto mais televisão ou videocassete. Aliás, nunca se viu rádio ou tevê que funcionassem a lamparinas. De qualquer maneira as crianças preferiam prestar sentido às histórias que a mãe contava. Em casa não tinham praticamente nada escrito, nem sacola de pão. A padaria mais próxima ficava a muitos quilômetros de distância, e o "pão" para o 'cumê-da-manhã'era inhame ou mandioca cozida.
Certo domingo, depois da missa, houve uma quermesse animada, com comidinhas, rifa de um garrote, bingo, músicas típicas e até uma barraquinha de livros como prêmios para quem pescasse peixinhos de papelão enfiados no pó de serra. Nesse dia a Vivarda sentiu o peso extra e deve ter reclamado muito: o protagonista e sua irmã conseguiram vários livros, alguns novos, com aquele cheiro inesquecível! Eram livros de literatura (infantil, juvenil, adulta) e revistas em quadrinhos. Ele e sua irmã não sabem se se encantaram mais pelas gravuras ou pela possibilidade de mudar de vida: usar roupas bonitas, ler missal e rezar em terço de cristal na missa de domingo. Felizmente os pais foram percebendo a necessidade de matricular os filhos na escola, revezando-os no trabalho: "Nóis tamo dano procês a leitura que nóis num tivemo", dizia a mãe.
Um dia, após voltar da escola caminhando por mais de uma hora, morto de fome - não havia a tal da merenda escolar - o protagonista sentou-se num banco perto do fogão de lenha para 'comer-o-que-tinha', mas mal conseguia segurar a vontade de anunciar o que já havia aprendido das letras na escola: "Mãe, o nome da senhora se escreve com pê agá, não é com efe de faca, não. É jota-ó-esse-é-pê-agá-i-ene-a". "Larga de bobage, menino" - disse ela impaciente - "termina logo esse cumê e vai já ajudá seu pai a dibuiá aquele feijão no terreiro". Lá ia o menino pensando: "Oito feijões por vagem, nove feijões por vagem, essa aqui só cinco? Oito mais nove mais cinco, vinte e dois. ...E aquela história do pé de feijão que alcançava o céu? Que coisa maravilhosa!" O menino era fã das histórias do livro didático do primeiro ano.
Os livros começaram a se espalhar pela casa. Também conseguiam livros por empréstimo, além de emprestarem os seus. Quase sempre ele os lia diversas vezes. Mas essas não foram as únicas fontes de materiais de leitura. Vasculhava outras fontes na biblioteca do município. Ele nem sabia se existia biblioteca na escola onde estudou o primário. Se existia, não a frequentava. Nas escolas onde estudou da 5a série ao terceiro ano do 2° grau existia bibliotecas, mas raríssimas vezes as visitou. Não achava que eram locais que pudessem lhe pertencer. Nessa época ele frequentava Bibliotecas Municipais para realizar trabalhos de escola e para empréstimos de livros.
O corpus deste trabalho foi desenvolvido através da metodologia de pesquisa bibliográfica considerando os seguintes recortes: o significado de letramento, o trabalho infantil como fator complicador, atividades de leitura e frequência a bibliotecas e considerações sobre a sociologia da educação. A pesquisa baseou-se principalmente nas publicações dos autores Soares, Lahir, Nogueira, Catani, Bourdieu e dados de organismos internacionais como a ONU e OIT. Ainda outros autores foram consultados no sentido de reforçarem os vieses que caracterizam o corpus da pesquisa. Longe de buscar autores que concordassem com algum viés ou indagação, foram considerados em certa maneira teóricos que tivessem vozes dissonantes, de modo que fosse possível colocá-los a dialogar para que a leitura do texto final propiciasse a consideração de tendências diversas. Outra importante atitude para a elaboração do corpus foram os fichamentos de leituras das obras evitando ao máximo o contato com ideias e citações de terceira mão.
A Introdução consta de um "quase estudo de caso", onde o protagonista relata a própria experiência como criança pobre e seus primeiros passos para o letramento, vivendo com sua família de lavradores numa zona montanhosa doEspírito Santo, distante de tudo, tendo desde cedo como obrigação ajudar no sustento da família com seu trabalho infantil. O relato pretende mostrar o aparente desfalque que seria uma criança nessas condições subtrair-se às tarefas do campo e frequentar uma escola para ser alfabetizada, tentar transpor sua classe social e "ser alguém". Contempla, ainda, o ponto onde os pais não alfabetizados concordam na alfabetização do filho e permitem que haja muitos livros pela casa. De alfabetizado, o aluno, então, se depara com a verdade - ainda não sabe nada e o letramento pressupõe que suas práticas de leitura se ampliem. Além disso, o aparato oficial de aquisição e democratização do conhecimento não passa de um mero reprodutor das desigualdades e miséria social das quais está tentando fugir, conforme Bourdieu. Impasse ou paradoxo? As bibliotecas, espaços calmos e silenciosos, se apresentaram como lugares perfeitos para uma criança tímida e com autoestima muito baixa. Afinal, estaria longe do bullying de outras crianças mais exaltadas e que se achavam as "donas do pedaço". No entanto, seriam as escolas os aparatos que avaliariam oficialmente seu rendimento, credenciando-lhe a continuação do processo de aprendizado e superação de etapas até que chegasse ao suposto status social de maior prestígio.
As indagações que se assomaram antes e durante a elaboração da pesquisa reaparecem no capítulo dois em reflexões sobre as concepções de letramento/alfabetização, linguagens e práticas de leitura: o que realmente significam alfabetização e letramento? Como acontece a transição da pessoa do limbo cultural para o mundo letrado? Que condições a fazem permanecer no limbo ou cruzar o umbral da sociedade letrada? Leituras e releituras ajudaram a alinhavar os conceitos de alfabetização e letramento, bem como a reconsideração dos espaços de aprendizagem em suas múltiplas dimensões tais como: o ambiente familiar situado em uma região agrícola remota, carente de atenção e investimentos por parte das autoridades constituídas, onde o trabalho infantil é uma realidade; as escolas, simples e desprovidas de vários recursos como a biblioteca escolar; o espaço, não apenas físico, mas ideológico, onde a escola como a conhecemos não seria outra coisa senão mera reprodutora de desigualdades sociais. Identifica ainda conceituações de trabalho infantil no entender da comunidade internacional, como empecilho para a educação e o letramento da criança. Percebeu-se, através de leituras, a tendência de associar à Alfabetização o uso de cartilhas ultrapassadas e desprovidas de contexto social e político. Constatou-se, também, a tendência de creditar ao Letramento ares de pós-modernidade e engajamento a partir de reflexões pontuadas pela dialética pós-marxista.
O capítulo três, quase uma ampliação do capítulo anterior, expõe atividades de letramento em ambientes de grande interação social - as bibliotecas - e suas atividades de apoio para desenvolvimento do aprendizado de Língua Portuguesa.
O capítulo quatro verifica as colocações dos teóricos da sociologia da educação que consideram a escola, onde se promove letramento, como um espaço reprodutor das desigualdades sociais, como se o slogan de que a educação liberta fosse uma falácia. 

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