Descaso e omissão
Por Robson Fernando | 13/01/2009 | SociedadeDuas palavras tão abundantes no Brasil quanto água no oceano. Reclamar do descaso do governo local ou federal para com algo, que pode ser desde o telhado de uma escola pública que não é consertado até a proliferação dos buracos nas rodovias federais, e prestar queixa na mesa de conversa contra a omissão de alguma autoridade, podendo ser ou não um governo, em relação a problemas que vão desde uma rua esburacada ou a ocupação por drogados de uma casa abandonada até a continuação do desmatamento no Cerrado são atos quase tão comuns quanto assistir televisão. É unânime a opinião de que aqui é o país da omissão e do descaso, onde ninguém se preocupa em providenciar a resolução dos mais variados problemas. Mas há um detalhe que passa despercebido mas é terrivelmente o núcleo de tudo: os maiores descaso e omissão vêm do próprio povo.
É surpreendente como essa conclusão não vem sendo alcançada por mais pessoas. Alguém mais esclarecido pode notar como óbvio o fato de o comportamento da população de se alienar da responsabilidade de cobrar e fiscalizar, como cidadãos de uma democracia, o exercício do poder político e aceitar na prática a convivência com flagelos tão graves como a violência urbana, o desmatamento e a política pública antiferroviária caracterizar uma omissão, representar uma forma de descaso.
O Dicionário Houaiss define a palavra “descaso” como “procedimento próprio daquele que não dá importância ou atenção a; desconsideração, desdém, desprezo” e “omissão” como, entre outras definições, “ato ou efeito de deixar de lado, desprezar ou esquecer; preterição, esquecimento”. Convém mostrar a aplicação de cada palavra no comportamento popular logo abaixo.
Quando alguém dedica uma porcentagem muito ínfima das conversas com amigos e parentes às questões sérias, como problemas sócio-ambientais da cidade, e prefere bater papo sobre a família, futebol, séries americanas, baladas e outros assuntos irrelevantes ao interesse coletivo está de fato não dando importância ou atenção a temas importantes. Quando um jovem prefere mudar de assunto quando se inicia uma conversa sobre os protestos contra a expansão da energia termelétrica ou sobre como o povo pode atuar contra a violência, está prestando desconsideração, desdém, desprezo. Fica claro que essas atitudes de aversão ao envolvimento cidadão na resolução dos problemas públicos caracterizam uma postura que demonstra descaso.
Quando evitamos fazer manifestações em prol de algo que nos dê condições melhores de vida, como um ato público defendendo a valorização dos trens de passageiros, ou protestar contra um flagelo que nos faz mal e ameaça nossos direitos, como a escalada da violência no bairro onde moramos ou trabalhamos, estamos deixando essas questões de lado, estamos preterindo-as. Logo eis o exercício da omissão por parte das pessoas.
Assim fica evidente que, para determinados assuntos, o descaso e omissão populares são igualmente ou mais poderosos que os exercidos pelo poder público. É o que acontece, por exemplo, nas questões do bairro recifense de Boa Viagem.
Mendicância, canais, contrastes sociais extremos, degradação da praia, roubos, etc. são problemas que o povo vem na prática esquivando-se de abordar ou propor que sejam erradicados. Há muito tempo não se veem protestos naquele bairro pedindo pelo combate aos assaltos e pela regularização do saneamento básico local – algo que extinguiria a poluição dos dois canais que cruzam o bairro e de algumas áreas da areia da praia.
A Associação de Moradores e Amigos de Boa Viagem foi extinta em 2005 porque a população não se interessou a apoiá-la na reivindicação de melhorias e soluções para os flagelos daquela localidade. Reclama-se muito entre as poucas vizinhanças que restaram no bairro, mas pouquíssimo para as autoridades e as entidades não-governamentais que poderiam providenciar o atendimento da vontade popular. Fora alienação, não há melhores palavras que definam esse estado de coisas que descaso e omissão. Vindos, acima de tudo, dos habitantes.
Pode-se levantar um contra-argumento de que a prefeitura e o governo estadual nada fazem ali além de obras de caráter estético. Mas como é que eles podem ver a necessidade de fazer algo por ali se ninguém – ou tão pouca gente – reivindica e insiste que sejam feitas melhorias naquele bairro? Numa analogia ao âmbito pessoal, como é que eu vou saber que você quer aprender a nadar se você nunca me disse isso, nunca me expôs essa vontade e necessidade?
Outro exemplo da omissão popular é como a população lida com os aumentos das passagens de ônibus. Em vez de dizer, na única “linguagem” aceita pelo empresariado do transporte urbano, os protestos intensivos, que não está disposto a pagar aumento nenhum, o popular médio prefere resmungar aos vizinhos, amigos ou parentes, mesmo sabendo que eles já sabem e que em nada adiantará se restringir ao repasse de tal informação, e termina, depois de dias de raiva indignada, resignando-se e aceitando o aumento. O descaso se faz quase impossível para quem anda de ônibus, mas a indisposição ao protesto caracteriza uma legítima omissão a esse problema.
Isso se estende para quase todos os grandes problemas do Brasil. O governo diz às vezes que tal problema, como a segurança pública das cidades e das estradas, é uma necessidade urgente, mas a verdade é que nunca terá a convicção de que é uma demanda realmente urgente se ninguém está demonstrando em público que a segurança a é. Sem a população cobrando constantemente, pegando no pé, nunca haverá providências de boa vontade nem tampouco compreensão das necessidades populares. A omissão do povo estimula – e em última análise gera – a omissão dos governos.
O mesmo é aplicável ao comportamento de descaso. Como queremos que o governo adote uma postura comprometida com a resolução dos nossos problemas coletivos se nem nós mesmos os levamos a sério? Como poderemos desejar e esperar que o governo trabalhe por um Brasil próspero se nós mesmos não cogitamos trabalhar em prol dessa prosperidade? Como podemos acreditar ter moral de esperar providências do governo para determinadas questões, como a preservação das florestas, se achamos que não temos nada a ver com as tais, se fazemos pouco caso – por ignorar as matas nas nossas conversas – e nós mesmos damos mau exemplo ao, por exemplo, acabar com o capim da praça próxima e eliminar a árvore de nosso jardim? Como querer um governo transparente e inimigo da corrupção se nós mesmos, por exemplo, levamos para casa o papel higiênico da faculdade, comprado pelo Estado com dinheiro dos impostos? O descaso popular alimenta o descaso do poder público. E até o gera, se considerarmos que é do próprio povo que vêm muitos políticos!
Antes de querer que o governo e outras autoridades públicas tenham mais respeito conosco parando com o descaso e a omissão, devemos imprescindivelmente acabar com esses dois em nós mesmos primeiro. Enquanto não superamos o comportamento alienado, a desvalorização das questões públicas que interessam às nossas necessidades e a falsa e forjada isenção de participar da resolução dos problemas coletivos, nada vai mudar na atitude do poder público, e tudo permanecerá do jeito que está. Povo omisso e desleixado, governo idem, é óbvio mas ninguém parece entender.