Descartes: Sua Metodologia E A Existência De Deus

Por Aquiles da Costa Mauriz Júnior | 23/05/2008 | Filosofia

1. ORIGENS

René Descartes, nascido em 1596 em La Haye uma cidade dos Países-Baixos, no povoado de Touraine, descendia de uma família nobre, da "Era Feudal", em razão de que, o mesmo recebeu o título de Senhor de Perron, pequeno domínio da região de Poitou, passando a também ser conhecido como o "fidalgo poitevino".

O início de sua formação acadêmica se deu em um Colégio Jesuíta de La Flèche, entre os anos de 1604 a 1614. Por sua ascendência nobre, Descartes passa a gozar de um regime de privilégios, a exemplo, diferentemente dos outros alunos, o mesmo não tinha horário pra dormir, muito menos para despertar, hábito este que o acompanhou por toda sua vida e que muito contribuiu para a formação de suas teorias, a meditação em seu leito.

Apesar de apreciado por seus professores, ele se declara, no Discurso sobre o Método, decepcionado com o ensino que lhe foi ministrado quando afirmou que:

"A filosofia escolástica não conduz a nenhuma verdade indiscutível, não encontramos nela nenhuma coisa sobre a qual não se dispute. Só as matemáticas demonstram o que afirmam, as matemáticas agradavam-me, sobretudo por causa da certeza e da evidência de seus raciocínios".

Vimos assim o interesse profundo de Descartes pela matemática que o torna uma exceção, uma vez que na busca de dirimir suas dúvidas, o mesmo cria métodos rigorosos e passa a buscar aplicações dos mesmos em outros domínios. Eis por que o jovem Descartes, decepcionado com a escola, parte à procura de novas fontes de conhecimento, o Saber, longe dos livros e dos regentes de colégio, buscando então, experiências de vida e de reflexão pessoal:

"Assim que a idade me permitiu sair da sujeição a meus preceptores, abandonei inteiramente o estudo das letras; e resolvendo não procurar outra ciência que aquela que poderia ser encontrada em mim mesmo ou no grande livro do mundo, empreguei o resto de minha juventude em viajar, em ver cortes e exércitos, conviver com pessoas de diversos temperamentos e condições".

Após essa etapa o mesmo muda-se pra Holanda, onde se ocupa, sobretudo com matemática, ao lado de Isaac Beeckman. Em virtude de um inverno rigoroso, o mesmo é forçado a se entregar inteiramente à meditação, o que induz e o faz concluir que ele está destinado a unificar todos os conhecimentos humanos por meio de uma "ciência admirável" da qual será o inventor. Mas ele aguardará até 1628 para escrever um pequeno livro em latim, as "Regras para a direção do espírito" (Regulae Ad Directionem Ingenii).

A idéia fundamental que neste livro é abordado é que a unidade do espírito humano ( em qualquer dos focos em que esteja o objeto da pesquisa) deve permitir a invenção de um método universal. Em seguida, Descartes prepara uma obra de física, O Tratado do Mundo, cuja publicação ele renuncia visto que em 1633 toma conhecimento da condenação de Galileu.

Finalmente, em 1637, ele se decide a publicar três pequenos resumos de sua obra científica: A Dióptrica, Os Meteoros e A Geometria, estes resumos, que quase não são lidos atualmente, são acompanhados por um prefácio que se tornou famoso; o Discurso sobre o Método. Ele denota que seu método inspirado nas matemáticas, é capaz de provar rigorosamente a existência de Deus e o primado da alma sobre o corpo.

Ao abordar um tema tão polêmico, a sua intenção é preparar o corpo filosófico para, um dia, aceitarem todas as conseqüências do seu método traçado, inclusive o movimento da Terra em torno do Sol. Isto quer dizer que a metafísica não é para Descartes, um simples acessório, ao contrário, as Meditações Metafísicas aparecem como sua obra-prima, acompanhadas de Respostas às Objeções, obras que de complexas acabaram por necessitar de uma análise mais aprofundada fazendo em 1644, publicar uma espécie de Manual Cartesiano.

Descartes embarca para Amsterdã e depois para Estocolmo em outubro de 1649, onde daria aulas para seus discípulos da realeza de Filosofia Cartesiana. Descartes passa a sofrer atrozmente com o frio, e logo se arrepende de ter vindo "viver no país dos ursos, entre rochedos e geleiras" como descreve em seus últimos manuscritos. Mas é tarde, ele contraiu uma pneumonia, se recusa ferozmente a ingerir as drogas e a sofrer sangrias sistemáticas dos que pra ele, erammeros charlatões, morrendo em 9 de fevereiro de 1650.

2. A CRIAÇÃO E CONTRIBUIÇÃO DO MÉTODO

Descartes estabelece um método universal, inspirado no rigor matemático e em suas "longas cadeias de razão", o dividindo em 4 regras:

2.1 A Primeira Regra: A Evidência

" Não se admiti que nenhuma coisa é verdadeira, se eu não a reconhecer evidentemente como tal".

Em outras palavras, Descartes busca evitar toda "precipitação" e toda "prevenção" (preconceitos), tendo como verdadeiro apenas o que for claro e distinto, isto é, o que "eu não tenho a menor oportunidade de duvidar". Por conseguinte, a evidência que salta aos olhos, é o indício daquilo de que não posso duvidar, abrindo mão assim, da própria dúvida, que para ele, "é o produto do espírito crítico".

2.2 A Segunda Regra: A Análise

"Dividir cada uma das dificuldades em tantas parcelas quantas forem possíveis".

A idéia central desta regra é fracionar o problema em partes otimizando o trabalho, diminuindo as chances de erros e ainda facilitando o entendimento do resultado final, já que para alcançá-lo o mesmo foi dividido em etapas.

2.3 A Terceira Regra: A Síntese

"Concluir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer para, aos poucos, ascender, como que por meio de degraus, aos mais complexos".

Através desta regra, Descartes esboça a lógica do conhecimento, na qual, para obter e compreender informações mais complexas é necessário que se atrele a quem raciocina noções prévias eprimitivas sobre o tema, para através solucionar as questões pertinentes.

2.4 A Quarta Regra: Os Desmembramentos Complexos

"Efetivar os desmembramentos, a ponto de estar certo de nada ter omitido".

Após solucionar o problema, detendo assim o conhecimento e o entendimento panorâmico do mesmo, realizar a testagem e a conferência dos dados obtidos, a fim de chegar ao ponto chave da resposta, a sua real e efetiva resolução.

Este método tornou-se muito célebre, porque nos séculos posteriores os filósofos e pensadores viram nele o embrião do que se viria a chamar de livre exame objetivo, uma vertente do racionalismo. Apesar disto, Descartes não afirma que seu método possui independência do empirismo ou de qualquer autoridade ligada ao caráter racional no que tange a busca de resposta, logo, o mesmo conhecia bem a filosofia aristotélica na qual o mesmo prega que não há argumentos sem réplicas, o que contam são a clareza e a distinção das idéias.

A filosofia do século XVIII, extremamente influenciada pelo Método Cartesiano, passou a estender este método até a domínios que Descartes excluiu expressamente de suas deliberações; a Alçada Política e ao Caráter Religioso, sendo muito importante ressaltar esta informação. Ao traçarmos estes paradigmas, entendemos que seu método é racionalista, porque há evidências de que Descartes parte não só, das intuições sensitivas e empíricas.

Os sentidos nos enganam, em suas indicações, visto que, as noções do subjetivo, são confusas e obscuras, denotando em quem analisa que as idéias da razão são mais claras e distintas. O ato da razão que percebe diretamente os primeiros princípios é a intuição, sendo a dedução limitada a veicular, ao longo das belas cadeias da razão, a evidência intuitiva das "naturezas simples". A dedução nada mais é do que uma intuição continuada e de caráter mais completo.

3. A METAFÍSICA

Em seu discurso e descrições sobre o Método, Descartes pensa sobretudo, na Ciência como um todo, para bem compreender sua metafísica, sendo necessário ler e entender suas Meditações.

Todos nós sabemos que Descartes inicia seu itinerário espiritual com a dúvida, mas é necessário compreender que essa dúvida tem um alcance bem mais profundo e complexo que a simples dúvida metódica e sistemática de um cientista. Descartes duvida voluntária e intrinsecamente de tudo, sendo isto possível, desde que possa encontrar um argumento que denote tal emblema, por mais frágil que seja.

Por conseguinte, os instrumentos da dúvida nada mais são do que os auxiliares psicológicos, de uma ascese, instrumentos estes de um verdadeiro "exército espiritual". Duvidemos, portanto dos sentidos, uma vez que eles freqüentemente nos enganam, pois, diz Descartes:

"... nunca tenho total certeza de estar sonhando ou de estar desperto. Quantas vezes acreditei-me vestido com o "robe de chambre", ocupado em escrever algo junto à lareira; na verdade estando despido e em meu leito. Duvidemos também das próprias evidências científicas e das verdades matemáticas. Mas não é verdade que, quer eu sonhando ou esteando desperto, que 2 + 2 = 4? Mas se um gênio maligno me enganasse, se Deus fosse mau e me iludisse quanto às minhas evidências matemáticas e físicas? Tanto quanto duvido do Ser, sempre posso duvidar do objeto".

Existe, porém, uma coisa da qual de acordo com Descartes não se pode duvidar, mesmo que o demônio queira sempre te enganar, mesmo que tudo o que tu penses seja falso, resta à certeza de que pensas. Em nenhum objeto de pensamento resiste à dúvida, mas o próprio ato de duvidar é indubitável, "penso, cogito, logo existo, ergo sum". Não é um raciocínio (apesar do logo e do ergo), mas uma intuição, é mais sólida que a da matemática, pois a intuição é metafísica, sendo metamatemática.

Ela trata não de um objeto, mas de um ser, o cogitar de Descartes, portanto, não é, como já se disse, o ato de nascimento do que, em filosofia, chamamos de idealismo, o sujeito pensante e suas idéias como o fundamento de todo conhecimento, mas a descoberta do domínio ontológicode todos os objetos que são as evidências matemáticas e que remetem a este ser que é o pensamento.

Nesse nível, entretanto, o momento de seu itinerário espiritual, Descartes é solipsista, em virtude de que só tem certeza de seu ser, isto é, de seu ser pensante, pois, sempre duvida desse objeto que é o corpo, já que para ele, a alma, diz Descartes nesse sentido, "... é mais fácil em alguns aspectos ser bem conhecida que o próprio corpo".

Ao integramos estas idéias a um plano maior, vemos que é pelo aprofundamento de sua solidão que Descartes escapa da mesma. Dentre as idéias do Cogito existe uma inteiramente extraordinária, a da perfeição infinita:

"Não posso tê-la tirado de mim mesmo, visto que sou finito e imperfeito. Eu, tão imperfeito, que tenho a idéia de perfeição, só posso tê-la recebido de um ser perfeito que me ultrapassa e que é o autor do meu ser. Por conseguinte, eis demonstrada a existência de Deus".

Esta constatação feita por Descartes trata Deus como um ser perfeito que, por conseguinte, é todo bondade. Com esta afirmação Descartes exorciza então, o fantasma do gênio maligno:

"... porque se Deus é perfeito, ele não pode ter querido enganar-me, todas as minhas idéias claras e distintas são garantidas pela veracidade divina. Uma vez que Deus existe, eu então posso crer na existência do mundo. Compreenda-se que, para tanto, não tenho o direito de guiar-me pelos sentidos cujas mensagens, permanecem confusas e que só têm um valor de sinal para os instintos do ser vivo. Só posso crer no que me é claro e distinto, por exemplo: na matéria, o que existe verdadeiramente é o que é claramente pensável, isto é, a extensão e o movimento".

Alguns acham que Descartes fazia um círculo vicioso quando expressava que a evidência o conduzia a Deus, e que Deus lhe garantia a evidência, mas não se trata da mesma evidência, posto que, a evidência ontológica que pelo Cogito o conduz a Deus, traz assim, a fundamentação da evidência pela matemática. Por conseguinte, a metafísica tem, para Descartes, uma evidência mais profunda que a ciência, é ela que fundamenta a ciência. A Quinta meditação apresenta uma outra maneira de provar a existência de Deus:

"Não se tratando mais de partir de mim, que tenho a idéia de Deus, mas antes da idéia de Deus que há em mim. Apreender a idéia de perfeição e afirmar a existência do ser perfeito é a mesma coisa, pois uma perfeição não existente, não seria uma perfeição".

4. PROVA DA EXISTÊNCIA DE DEUS

Já vimos como Descartes, pela aplicação da dúvida metódica, assumiu a existência do cogito, isto é, da sua existência como ser pensante. Contudo, levantava-se a questão de existência do mundo que o rodeava. A negação do valor dos sentidos como meio de acesso ao conhecimento verdadeiro colocava-o, de fato, perante a situação de ter que duvidar da existência da árvore que estava naquele momento a ver.

Descartes aceitava que o mundo tivesse sido criado por Deus, aceitava que, se Deus existisse, ele garantiria o suporte de todas as outras verdades. Mas, como saber se Deus existe ou não e como provar a sua existência se apenas podia ter a certeza da existência do cogito? Descartes apresenta três provas da existência de Deus.

4.1 Prova Pela Simples Consideração da Idéia de um Ser Perfeito:

"Dado que, no nosso conceito de Deus, está contida a existência, e é corretamente isto que conclui que Deus existe".

Considerando, portanto, entre as diversas idéias que uma é a do ente sumamente inteligente, sumamente potente e sumamente perfeito, a qual é, de longe, a principal de todas, reconhecemos nela a existência, não apenas como possível e contingente, como acontece nas idéias de todas as outras coisas que percepcionamos distintamente, mas como totalmente necessária e eterna.

E, da mesma forma que, por exemplo, percebemos que na idéia de triângulo está necessariamente contido que os seus três ângulos iguais são iguais a dois ângulos retos, assim, pela simples percepção de que a existência necessária e eterna está contida na idéia do ser sumamente perfeito, devemos concluir sem ambigüidade que o ente sumamente perfeito existe. A prova é magistralmente simples. Ela consiste em mostrar que, porque existe em nós a simples ideia de um ser perfeito e infinito, daí resulta que esse ser necessariamente tem que existir.

4.2 Prova Pela Causalidade das Idéias

Descartes conclui que Deus existe pelo fato de a sua idéia existir em nós. Uma das passagens onde ele exprime melhor esta idéia é:

"Assim, dado que temos em nós a idéia de Deus ou do ser supremo, com razão podemos examinar a causa por que a temos; e encontraremos nela tanta imensidade que por isso nos certificamos absolutamente de que ela só pode ter sido posta em nós por um ser em que exista efetivamente a plenitude de todas as perfeições, ou seja, por um Deus realmente existente. Com efeito, pela luz natural é evidente não só que do nada se faz, mas também que não se produz o que é mais perfeito pelo que é menos perfeito, como causa eficiente e total; e, ainda, que não pode haver em nós a idéia ou imagem de alguma coisa da qual não exista algures, seja em nós, seja fora de nós, algum arquétipo que contenha a coisa e todas as suas perfeições. E porque de modo nenhum encontramos em nós aquelas supremas perfeições cuja idéia possuímos, disso concluíram corretamente que elas existem, ou certamente existiram alguma vez, em algum ser diferente de nós, a saber, em Deus; do que se segue com total evidência que elas ainda existem."

A prova consiste agora em mostrar que, porque possuímosa idéia de Deus como ser perfeitíssimo, somos levados a concluir que esse ser efetivamente existe como causa da nossa idéia da sua perfeição. De fato, como poderíamos nós ter a idéia de perfeição, se somos seres imperfeitos? Como poderia o menos perfeito ser causa do mais perfeito?

Deste modo, conclui,já que nenhum homem possui tais perfeições, deve existir algum ser perfeito que é a causa dessa nossa idéia de perfeição. Esse ser é Deus.

4.3 Prova Baseada na Contingência do Espírito

Se tivesse poder para me conservar a mim mesmo, tanto mais poder teria para me dar as perfeições que me faltam; pois elas são apenas atributos da substância, e eu sou substância. Mas não tenho poder para dar a mim mesmo estas perfeições; se o tivesse, já as possuiria. Por conseguinte, não tenho poder para me conservar a mim mesmo.

Assim, não posso existir, a não ser que seja conservado enquanto existo, seja por mim próprio, se tivesse poder para tal, seja por outro que o possui. Ora, eu existo, e contudo não possuo poder para me conservar a mim próprio, como já foi provado. Logo, sou conservado por outro.

Além disso, aquele pelo qual sou conservado possui formal e eminentemente tudo aquilo que em mim existe. Mas em mim existe a percepção de muitas perfeições que me faltam, ao mesmo tempo em que tenho a percepção da idéia de Deus. Logo, também nele, que me conserva, existe percepção das mesmas perfeições. Assim, ele próprio não pode ter percepção de algumas perfeições que lhe faltem, ou que não possua formal ou eminentemente. Como, porém, tem o poder para me conservar, como foi dito, muito mais poder terá para dá-las a si mesmo, se lhe faltassem. Tem pois a percepção de todas aquelas que me faltam e que concebo poderem só existir em Deus, como foi provado. Portanto, possui-as formal e eminentemente, e assim é Deus.

Descartes demonstra agora a existência de Deus a partir do fato de que não nos podemos conservar a nós próprios. Se não podemos garantir a nossa existência, mas apesar disso existimos, é porque alguém nos pode garantir essa existência.