Demian ? a descoberta de si mesmo

Por Adriana Persiani | 14/07/2010 | Literatura

Escrito em 1919, numa Europa marcada pela Primeira Guerra e pela Revolução Russa, pela psicanálise de Freud, pelo ceticismo de Nietzsche e pela propagação de doutrinas espiritualistas, Demian retrata a trajetória de descoberta e transformação individual de Emil Sinclair, um garoto que, ao passar da infância para a adolescência, visualiza novos horizontes e passa a se sentir deslocado de seu ambiente familiar.
Para Ivo Barroso (responsável pela tradução para a Editora Civilização Brasileira),
"... ainda mais que uma história ou romance de educação é o relato de um processo de deseducação, ou, preferindo-se, de reeducação, de laborioso apagar das pegadas que o puritanismo educacional deixa impressas na alma adolescente; a timidez, a humildade, o alheamento ? armas obsoletas contra a hostilidade do mundo real e que conduzem, mais tarde, inapelavelmente à solidão e à inadaptabilidade, à surda revolta e ao amargo constrangimento".
Reconhecida por Hermann Hesse como autobiográfica, a obra segue uma linearidade baseada nas memórias do narrador, um adulto que parte de um viés psicológico para reviver e reinterpretar os dramas da sua adolescência, que são os mesmos conflitos internos por que passam todos os jovens no processo de construção de uma identidade própria.
Em sua narrativa Sinclair fala "... apenas daquelas coisas novas que vieram desraigar-me e impulsionar-me para frente" (p. 49), revelando as influências intelectuais em Hesse, das quais destaco:

Dualidade

Emil Sinclair é um jovem criado por pais muito piedosos, numa família burguesa e bem sucedida. Ele vive o conflito de uma visão maniqueísta do mundo, dividido entre o mundo luminoso, perfeito, belo e ordenado da casa paterna e o mundo obscuro, selvagem, cruel além desta. Esse conflito entre bem e mal também se reflete nas questões sociais (alunos da escola pública versus alunos da escola particular).
Sua primeira angústia foi compreender que, para chegar a ser como seus pais, precisava seguir um caminho comprido, que "... seguia sempre bordejando aquele outro mundo mais escuro e às vezes nele penetrava, não sendo de todo impossível que nele alguém permanecesse e sumisse em suas sombras proibidas" (p. 11).
Depois de contar vantagem aos colegas fantasiando uma história sobre roubos de maçãs, Sinclair passa a ser chantageado por Franz Kromer, um garoto mais velho de escola pública, que ameaça denunciá-lo.
Com medo, Sinclair cria uma distância da família, recolhendo-se à solidão enquanto fica sob influência do mundo sombrio de Kromer, que o marcará de forma profunda:
"... o adulto, que aprendeu a converter em conceitos uma parte de seu sentimento, menospreza tais conceitos na criança e termina por opinar que não existiram também os sentimentos que lhe deram origem. De minha parte, posso dizer que poucas vezes na vida vivi e padeci tão intensamente como naqueles tempos" (p. 37).
Este fato contribui para ampliar sua visão de mundo, e Sinclair percebe que seu pai (como qualquer outro ser humano) não é perfeito. Para ele essa foi "... a primeira rachadura nos fundamentos sobre os quais descansara a minha infância e que o homem tem que destruir para poder chegar a si mesmo" (p. 20), numa alusão ao complexo de Édipo de Freud.

O caminho que leva a si mesmo

Um novo aluno chega à escola. Max Demian demonstrava segurança e convicção em suas idéias, e se portava como "... um investigador procurando soluções para problemas capitais... seus olhos ... viam as coisas como os olhos de um adulto, com aquela expressão, um tanto melancólica, sulcada de relâmpagos de ironia, que nunca se encontra nas crianças" (p. 30).
Demian representa para Sinclair o educador que o encoraja a percorrer o caminho do auto-conhecimento rumo à realização enquanto indivíduo, desmascarando os paradigmas positivistas e materialistas então em voga.
Dentre os questionamentos, Demian demonstra a relatividade do conceito de verdade, ponderando que "... a maioria das coisas que nos explicam no colégio são, sem dúvida, verdadeiras, mas também podem ser consideradas de um ponto de vista diferente daquele dos professores, e então passam a apresentar quase sempre um significado muito mais amplo" (p. 31). E demonstra para Sinclair qual deve ser a postura de quem deseja conhecer algo em profundidade: o recolhimento na intimidade para o exercício da reflexão, o questionamento constante e o dedicar-se com plena seriedade às indagações e conversações úteis, pois "... somente as idéias que vivemos é que têm valor" (p. 61).
Sinclair aplica esses ensinamentos em sua vida e passa a conhecer e examinar tudo antes de julgar o que lhe convinha. É assim em sua relação com Pistórius, com quem aprende que possuímos o mundo em nós enquanto possibilidade, mas que precisamos estar conscientes da subjetividade da realidade, já que "... a única realidade é aquela que se contém dentro de nós, e se os homens vivem tão irrealmente é porque aceitam como realidade as imagens exteriores e sufocam em si a voz do mundo interior" (p. 113).
Em sua relação com Knauer, Sinclair compreende que nossa vida não pode ser marcada por contradições: "... não lhe podia dar um conselho que não provinha de minha própria experiência e que eu próprio não me sentia capaz de seguir" (p. 115). E, apesar de discordar do colega em vários pontos, mantêm-se aberto ao diálogo e se surpreende ao verificar que mesmo nos "... livros e escritos absurdos que me trazia e nos quais buscava a salvação me ensinaram muito mais do que eu a princípio imaginava" (p. 120).
Em sua busca solitária, Sinclair reconhece sua dificuldade para se entregar à questionamentos filosóficos não vinculados ao utilitarismo: "... minha natureza nunca se adaptara a essa classe de investigação direta e consciente, em que a gente, a princípio, só procura verdades com as quais nada sabemos que fazer" (p. 93). Apesar disso, mantinha a convicção de que
"... para o homem consciente só havia um dever: procurar-se a si mesmo, afirmar-se em si mesmo e seguir sempre adiante o seu próprio caminho, sem se preocupar com o fim a que possa conduzi-lo... Tudo era secundário. O verdadeiro ofício de cada um era apenas chegar até si mesmo" (p. 124/125).
Essa certeza e o reconhecimento dos progressos alcançados na busca pelo auto-conhecimento, a confiança nos próprios sonhos, idéias e intuições, se transformam num bálsamo para as angústias de Sinclair, reforçado pela interpretação de Eva: "... volte o olhar para trás e pergunte a si mesmo se foi de fato tão penoso o caminho. Difícil apenas? Não terá sido belo também? Pode imaginar outro tão belo e tão fácil?" (p. 140).
Misticismo
Demian mostra a Sinclair uma forma mais racional e menos dogmática de interpretar as questões religiosas, integrando as forças opostas do maniqueísmo que tanto o perturbavam
"... devemos adorar e santificar o mundo inteiro em sua plenitude total e não apenas em sua metade oficial, artificialmente dissociada... Ou mesmo criar um deus que integrasse em si também o demônio e diante do qual não tivéssemos que cerrar os olhos para não ver as coisas mais naturais do mundo" (p. 60/61).
Com clara referência aos conceitos do Gnosticismo, em particular ao demiurgo (entidade que, sem ser criadora, é impulsora do universo, imprimindo-lhe movimento) Abraxas também revela a influência da psicanálise de Carl Jung e de Sigmund Freud, na busca da essência do Eu: "A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo. A ave voa para Deus. E o deus se chama Abraxas" (p. 91).
A influência do misticismo também é marcante na trajetória de Sinclair, sendo freqüentes as referências à temática bíblica. Da obra Novalis de Nietzsche vem a identificação de que "...destino e Espírito são nomes de um mesmo conceito" (p. 82); do Fausto de Goethe e de Santo Agostinho, o reconhecimento de que "... a vida de libertino é uma das melhores preparações para o misticismo" (p. 84).
A dedicação à prática contemplativa lhe propiciou uma intensificação da consciência de si mesmo, e Pistórius lhe revela que "... também somos criadores e... nossa alma participa sempre de uma contínua criação do mundo" (p. 103).
Outro símbolo marcante é o sinal de Caim, interpretado como uma distinção moral entre os indivíduos, que se encontram separados por uma forma diversa de ver o mundo. Os que possuíam o sinal tinham por tarefa "... erguer no mundo... talvez um exemplo e, quando não, o anúncio de uma possibilidade diferente" (p. 142).
Eram indivíduos pertencentes a categorias diversas: astrólogos, cabalistas, naturalistas, vegetarianos, budistas, espíritas, teosofistas, que se dedicavam à busca de uma nova moral e uma nova religião, assumindo a responsabilidade pela sua própria trajetória
"... por isso, cada um de nós tem que encontrar por si mesmo o ?permitido? e o ?proibido? relativamente à sua própria pessoa... Aquele que acha mais cômodo não ter que pensar por si mesmo e ser seu próprio juiz, acaba por submeter-se às proibições vigentes" (p. 62).
Esta é justamente a grande contradição da vida encontrada por Sinclair: a realização do destino individual e isolado só se realiza numa relação dialética com os demais indivíduos, "... com o mundo inteiro" (p. 158):
"... Antes me havia perguntado muitas vezes por que eram tão poucos os homens que conseguiam viver por um ideal. Agora percebia que todos os homens eram capazes de morrer por um ideal. Mas não por um ideal seu, livremente escolhido, mas por um ideal comum e transmitido" (p. 159).