DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS NO MUNICÍPIO DE ARACRUZ-ES: FRUTO DO NOVO PARADIGMA INSTAURADO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Por Claudio Ernani Litig | 07/07/2010 | AmbientalCláudio Ernani Litig¹
Mestrando em Tecnologia Ambiental na Faculdade de Aracruz Licenciado Pleno em Pedagogia - Habilitações: Orientação Educacional, Educação Infantil e Magistério dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental pela Faculdade de Ciências Humanas de Aracruz em 2002..Bacharel em Teologia pela Escola Superior de Teologia (ICSP) em 1995.
e-mail: claudioelitig@.hotmail.com
Professora. Nadja Ferreira²
Mestra em Educação e Doutoranda em Educação (UFES)
RESUMO
O objetivo deste artigo é descrever a demarcação das terras indígenas no município de Aracruz, como fruto do novo paradigma instaurado na Constituição Federal de 1988. Propõe-se a discutir o reconhecimento do direito à autodeterminação dos povos indígenas, efetuado pela Constituição de 1988, quebrando o paradigma da integração e assimilação que dominava os diversos momentos históricos da constituição. No entanto, apesar do avanço do reconhecimento do direito à autodeterminação dos povos indígenas, muitos vícios tutelares e preconceitos precisam ser superados.
Preocupou-se em constatar que até hoje vive-se uma crise de paradigmas onde o colonizador procura impedir que os povos indígenas sejam o sujeito de sua história. A comunidade indígena do município de Aracruz tem buscado a efetivação de seu direito garantido pela constituição de 1988, mas tem sofrido restrições e retaliações, demonstrando franco descaso e preconceito ao longo das últimas décadas por parte do Governo brasileiro. Entre a maioria dos moradores de Aracruz e das empresas percebe-se a presença de forte preconceito e desconhecimento do que é uma diversidade cultural que desconsidera a contribuição das comunidades indígenas para a construção da identidade Aracruzense.
PALAVRAS-CHAVE: Demarcação; Paradigma; Identidade Cultural; Direito Indígena; Constituição Federal.
INTRODUÇÃO
De forma breve, a história dos Tupinikim começa com sua localização em uma área de aproximadamente 100.000 km2, sendo uma faixa de terra correspondente ao tamanho dos atuais Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo. Seus limites ficavam entre o rio Cricaré, em São Mateus, e Ilhéus, no sul da Bahia.
Em 1560 os portugueses estavam conquistando o território brasileiro ao sul da Bahia e, encontrando resistência dos Tupinikim, resolveram queimar e massacrar as aldeias dos índios, cujos corpos foram colocados lado a lado na praia pelo Governo Geral, Mem de Sá, perfazendo uma légua de 6 km. (COUTINHO, 2006).
Moradores de várias tabas (aldeias) embrenharam-se nas matas e atravessaram o Rio Doce e se localizaram em suas florestas nas duas margens, dali chegando às terras do município de Aracruz, onde conseguiram viver longe dos brancos por uns tempos.
Entretanto, muitas de suas aldeias indígenas foram contactados pelos jesuítas, que os trouxeram para a aldeia Catequética de Santos Reis Magos, hoje, Nova Almeida, Município da Serra, de onde muitos índios retornaram às florestas, distanciando-se dos brancos, especialmente após a expulsão dos jesuítas em 1760.
Com o avanço da civilização, primeiramente portuguesa, e depois brasileira, os Tupinikins foram novamente encontrados pelos brancos, o que resultou em sua incorporação à ordem colonial, à qual foram aculturados e, depois, assimilados e deculturados. À medida em que iam abandonando suas aldeias para conviver com os brancos, essas culturas se descaracterizaram, no momento em que foram invadidas por grileiros, posseiros e fazendeiros, como tem ocorrido nos dias atuais na Amazônia. Suas terras passaram a pertencer ao Império e depois, à União, como terras devolutas, podendo ser requeridas e vendidas (COUTINHO, 2006).
Dessa forma, os 40.000 hectares do novo território Tupinikim em Aracruz foram parar nas mãos de terceiros cidadãos. Depois de conquistar as terras dos índios, os portugueses doaram extensões por todo o país. Assim, os índios de Nova Almeida e de Santa Cruz receberam sua primeira devolução, em 1610: uma faixa de terra que iniciava-se de Jacaraípe até Comboios, numa área de 70 km de extensão por 30 km de largura incluindo, também, toda a área dos atuais distritos de Santa Cruz e Barra do Riacho.
Os índios tupinikins chegaram ao território de Aracruz provavelmente ainda no século XVI, enquanto os Guaranis chegaram em 1976. Juntos reconquistaram na justiça 18.070 hectares dos 40 mil reivindicados. Contentaram-se em perder mais da metade de seu território para sobreviver dignamente em sua terra.
A reconquista de parte do território indígena, antes em poder da empresa Aracruz Celulose, no Município de Aracruz, em 2008, acendeu na alma nativa a esperança de restauração da nação Tupinikim que um dia habitou o território de 100.000 km2 do sul da Bahia ao norte do Espírito Santo.
No entanto, os 18.000 hectares reconquistados são suficientes para manter as atuais aldeias e ainda permitir a recriação de muitas outras desaparecidas debaixo da expansão dos eucaliptos do final dos anos da década de 60 e início dos anos 70. Segundo dados da FUNAI (2005), em Aracruz, no Espírito Santo, os índios estão divididos em 539 famílias. Essa população corresponde, aproximadamente, a 3,66% da população de Aracruz e 0,002% da população brasileira. Os dois grupos indígenas de Aracruz subdividiram-se em sete aldeias que são: Caieiras Velhas, Comboios, Irajá, Pau Brasil de etnia Tupinikim, Boa Esperança, Piraquê-açu e Três Palmeiras de etnia Guarani.
Diante das diversidades culturais existentes nestas aldeias e vitimados pelo processo colonial, o presente artigo tem a temática "Demarcação das Terras Indígenas no Município de Aracruz-ES: fruto do Novo Paradigma Instaurado na Constituição Federal de 1988." A partir deste novo paradigma, foi garantido aos indígenas o direito à terra que ocupam, nos temos do artigo 231 da CF\88, que dispõe: "São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens." Nesse sentido vamos tratar das inovações no tratamento da questão indígena na constituição, o reconhecimento do direito das questões indígenas, a concepção de igualdade como cidadãos, o direito a diferença e a contribuição dos povos indígenas para a construção da identidade Aracruzense.
INOVAÇÕES NA CONSTITUIÇÃO SOBRE AS QUESTÕES INDÍGENAS
No passado não havia leis e políticas que efetivamente garantissem sobrevivência física e cultural dos povos indígenas, nem que combatessem a violência por particulares e pelas próprias autoridades do estado. A Constituição de 1891 não fazia sequer menção à existência de índios no território brasileiro (ARAÚJO, 2006). Apenas em 1916, na Lei n. 3.071 do Código Civil, os índios (silvícolas) são mencionados e qualificados como "incapazes relativamente a certos atos" (art. 6º, III). E com o advento da Lei n. 4.121 em 1962, foi acrescentado o parágrafo único ao art. 6º a seguinte redação: "O silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do País."
O Estatuto do Índio (1973) infelizmente também limitou o regime tutelar aos índios e às comunidades indígenas ainda não integrados (art. 7º). Isto significa que o regime tutelar cessará a partir do momento em que ele estiver integrado ao meio social , ou seja, será considerado índio e protegido enquanto não estiver integrado; depois de integrado, perderá a proteção.
O Código Civil vigente de 2002 (Lei n. 10.406) não trata os índios como incapazes, mas remete à legislação especial regular a sua capacidade (art. 4º). Esta mudança esta de acordo com os novos paradigmas a partir da Constituição Federal de 1988. Supera o entendimento de que os índios são relativamente incapazes de certos atos da vida civil.
Num brevíssimo histórico haveremos de notar as alterações constitucionais referentes aos indígenas, limitando aos seus direitos à posse da terra.
A primeira Constituição Brasileira ao mencionar os índios a Constituição de 1934, que atribuiu à União a competência para legislar sobre "incorporação dos silvícolas à comunhão nacional (art. 5º, XIX, m) e reconhecendo-lhes a posse da terra nas quais se encontrem permanentemente localizados (art. 129). Mas em nada alterou o tratamento destinado aos índios. As demarcações nesta época foram precárias, pois confinavam índios de diferentes origens em uma mesma reserva, ignorando diferenças culturais. O fruto desta política foi a criação do Parque Nacional do Xingu, em 1961, pelo Governo de Jânio Quadros. Ali começou-se um novo modelo de tratamento da questão indígena, que inspirou o paradigma dos anos 80.
A Constituição de 1937 e de 1946 apenas se limitou em repetir a disposição quanto ao reconhecimento à posse da terra (art. 154 e art. 216). A alteração significativa ocorreu com a Constituição Federal de 1967, que transferia para o domínio da União as "terras ocupadas pelos silvícolas" e inalienáveis (art. 4º, IV). Também neste mesmo dispositivo é atribuído aos indígenas "o usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas (terras) existentes." No entanto, a Constituição de 1946 e de 1967 preservam a política integracionista (art. 5º, XV, r e art. 8º, XVII, o).
Observam-se que nas alterações mantiveram-se os mesmos regimes quanto ao domínio da União sobre as terras indígenas, bem como quanto à política integracionista e a inalienabilidade dessas terras. Como conseqüência da disciplina constitucional, ainda hoje se repete a limitação da tutela jurídica à posse das terras tradicionalmente ocupadas
O ponto culminante no tratamento da questão indígena só se deu com a Constituição de 1988. Aqui foi instaurado o novo paradigma, rompendo-se com o modelo equivocado de propriedade e tratando com profundidade e extensão as questões indígenas. São tantas e variadas inovações que se faz necessário transcrevê-las:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens."
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada a participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantindo, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito à indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.
§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, §§ 3º e 4º.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.
Art. 20. São bens da União: (...)
XI ? as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (...)
XIV ? populações indígenas; (...)
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: (...)
XI ? a disputa sobre direitos indígenas.
Art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação a Constituição.
Através deste breve histórico constitucional é possível identificar uma série de inovações no tratamento da questão indígena. Antes da Constituição de 1988 os direitos indígenas reconhecidos eram basicamente restritos ao direito de posse sobre a terra; a partir da CF/1988 houve uma significativa ampliação desses direitos, sobretudo como conseqüência do reconhecimento de sua "organização social, costumes, línguas, crenças e tradições," (art. 231).
A Constituição de 1988 é um marco paradigmático no tratamento destinado aos povos indígenas no Brasil. Para Araújo (2006), quebrou-se o paradigma da "integração" e da "assimilação" e foi substituído pelo multiculturalismo, a partir do direito à diferença. Além disso, "ao reconhecer aos povos indígenas direitos coletivos e permanentes, a Constituição abriu um novo horizonte para o país como um todo, criando as bases para o estabelecimento de direito de uma sociedade pluriétnica e multicultural, em que povos continuem a existir como povos que são, independentemente do grau de contato ou de interação que exerçam com os demais setores da sociedade que os envolve" (Araújo, 2006: 45).
Assim, os povos indígenas têm o direito de continuar sendo e vivendo como índios, sem que isto signifique sua incapacidade, superando o princípio da tutela para reconhecer o princípio da diversidade cultural e o multiculturalismo.
No entanto, apesar dos avanços, o reconhecimento formal do direito à autodeterminação dos povos indígenas, as leis complementares e a regimentação jurídica e administrativa ainda não fizeram superar os vícios tutelares, autoritários e assistencialistas do Estado Brasileiro. Desse modo, a ruptura dos paradigmas preconceituosos levada a cabo pela Constituição de 1988 que ainda não foi atendida, ainda não abandonou as velhas estratégias de homogeneização cultural.
A PERSISTÊNCIA DA QUESTÃO INDÍGENA NO MUNICÍPIO DE ARACRUZ
A questão indígena em Aracruz se ainda não parece caminhar para uma solução satisfatória para os índios, pelo menos nesta década que passou, trouxe algumas melhorias que permitem ver uma luz no fim do túnel. No entanto, essa luz ainda está longe e talvez necessite de mais uma década para se chegar ao seu final. Os índios ainda carecem de certa autonomia econômica-financeira pois com o aumento da renda per capita das aldeias, atualmente os poucos que estão empregados ganham o Salário-Mínimo Nacional , enquanto a maioria da população pratica a economia de subsistência com base numa agricultura incipiente e rudimentar ou vive da pesca e em menor escala, da caça e coleta na natureza.
Em novembro de 1991, o Projeto Alternativo de Desenvolvimento Econômico dos Guarani - aplicável com modificações às aldeias Tupinikim, redigido pelo Prof. José Maria Coutinho, a partir dos diálogos com Kuaruû Mimbi, filho e representante do cacique Guarani, da aldeia de Tekoá Porá- foi protocolado na Secretaria de Estado para Assuntos de Meio Ambiente (SEAMA). Nesse projeto foram solicitadas ao Governo diversas obras para a aldeia, desde o saneamento básico, água tratada, eletricidade e assistência médica até obras de infra-estrutura agrícola de terraplanagem (com serviços de um trator de esteira para "destocamento" da área de plantio), bem como instrumentos agrícolas e aplicações de sementes. Reivindicaram-se, também, a iniciação da pecuária de pequeno porte, a elaboração de um projeto de reflorestamento com árvores frutíferas para as aldeias, a implantação de um projeto de criação de peixes, a aquisição de animais silvestres, moinhos de café, engenhoca de cana, animais de tração, carroça de arado, construção de caixa d?água e de quebra-molas.
Em atenção ao clamor das comunidades indígenas a Prefeitura de Aracruz em parceria com a Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania organizou um "Seminário Estadual sobre a Questão Indígena", no qual compareceram caciques, autoridades municipais, estaduais e até lideranças indígenas nacionais como Ailton Krenak, Itatuitim Ruas, Marcos Terena, tendo a Prefeitura e o Governo Estadual, mais uma vez, se comprometido a resolver os problemas imediatos dos indígenas.
Como nada foi cumprido, no dia 09 de abril de 1992, Dia do Índio, os 1.300 indígenas do Município de Aracruz comemoram em suas aldeias, pintando seus corpos e vestindo tangas e enfeitando-se com colares e cocares, e cobrando entrada dos visitantes para verem suas danças típicas. Segundo reportagem do Jornal A GAZETA, 19-04-92, os índios continuavam a viver na mesma economia de subsistência de uma agricultura rudimentar, caça e pesca rarefeitas, ou artesanatos, enquanto alguns se engajavam no mercado de trabalho como proletários rurais ou urbanos, como lavradores, garis, ajudantes de pedreiro, empregadas domésticas, e outros ganhando, quando muito, o salário-mínimo nacional. Na ocasião, os índios lembraram a falta de um trabalho conjugado entre o Governo do Estado, a Prefeitura de Aracruz, a FUNAI e o Conselho Indigenista Missionário , que segundo o Chefe do Posto Indígena da FUNAI, Edson da Silva Fidélis, o problema estava nas diferenças políticas e ideológicas dessas organizações.
Na mesma reportagem, as professoras da Escola da Aldeia Guarani, Fátima dos Anjos e Odiléia Nascimento Gustavo, embora percebendo a necessidade de os índios aprenderem a cultura e o modo de vida dos brancos para conviverem mais proveitosamente com eles, questionaram seu próprio trabalho queixando-se da dificuldade de ensinar a língua portuguesa e da alfabetização das crianças numa educação bilíngüe (Guarani e Português), que consideraram como uma "invasão" da cultura indígena. Os índios Guarani, por uma questão de sobrevivência haviam se tornado bilíngües, ainda falando o tupi-guarani entre eles, e se comunicando com o branco em português.
As reivindicações indígenas nessa reportagem já tinham se ampliado, mas pareciam refletir a falta de cumprimento satisfatório ou a renovação dos convênios realizados e leis sancionadas pelos prefeitos desde o primeiro convênio com a FUNAI, em 1985. Os Guarani, principalmente, queriam o cumprimento do projeto de apoio e fortalecimento à agricultura, de novembro de 1991, em caráter emergencial.
Finalmente, em outubro de 1993, segundo a reportagem do jornal A TRIBUNA, no dia 15 daquele mês, o Governo do Estado, gestão Albuino Azeredo, resolveu envolver-se na causa indígena, enviando-lhes o Projeto Transcol da Saúde, ou "Assistência Médica sobre Rodas", a partir de um diagnóstico feito por médicos, dentistas e assistentes sociais, que indicou uma intervenção tanto curativa quanto preventiva na área da saúde. Assim, foram reconhecidos problemas como a situação de miséria em que viviam, refletida na deficiência do saneamento básico, na situação precária do serviço d?água, na inexistência de fossas individuais e de esgoto sanitário, na presença de insetos e convivência com animais domésticos dentro de casa, no déficit na alimentação e subnutrição (o principal problema), na higiene pessoal, nas habitações e nas aldeias em geral, bem como doenças como gripe, bronquites, doenças epidêmicas, verminose, doenças de pele, alergia e outros.
Foram, ainda, identificados a inexistência de programas educativos voltados para a cultura e realidade indígena e a aplicação de um tipo de educação alienada de sua cultura. Entretanto, a intervenção do Estado através das visitas do ônibus-hospital, vista como paliativa, concentrou-se na assistência médica, em vez de um ataque maciço aos vários problemas com um esforço conjugado das respectivas Secretarias de Estado, e isso devido à falta de um maior interesse ou vontade política do Governo Estadual em resolver o problema decisivamente.
Projeto de Formação de Educadores Índios Tupinikim e Guarani
Além das deficiências na área da saúde, os índios sofreram com a aculturação e a assimilação. Nas aldeias Tupinikins, por exemplo, a cultura indígena pouco diferia da cultura branca, que foi "envolvente" antes do movimento de revitalização das culturas indígenas iniciadas em 1985. Hoje, após esforços educativos descritos abaixo, a língua tupi-guarani vem sendo ensinada em todas as aldeias de Aracruz, por professores indígenas treinados e concursados pela Prefeitura Municipal. Por sinal, há um movimento em nível nacional para se ensinar o tupi-guarani nas escolas oficiais do Ensino Médio, lideradas por um professor dessa língua, Eduardo Navarro, filósofo da USP, que lançou um Dicionário de Tupi no ano de 2000.
Com a intenção proclamada de resgatar uma dívida histórica, política e moral com os povos indígenas - e de reparar os danos causados a esses povos, propondo-se a reconstruir, por meio da educação, valores e tradições a serviço da criação de sociedades diferentes e de buscar uma aprendizagem mútua entre índios e não-índios, com base numa filosofia de educação interculturalista, bilíngüe, especifica e diferenciada (Sbcomissão, 1997: 1, 4)- foi formada, em 1995, a Subcomissão da Educação do Núcleo Interinstitucional de Saúde Indígena (NISI, 1997). Essa comissão reuniu-se em um "Seminário de Educação Indígena", elaborando um "Projeto de Formação de Educadores Índios Tupunikim e Guarani", com base na Política Nacional de Educação Indígena, o qual ficou pronto em 1997.
As comunidades indígenas apontaram 54 jovens candidatos para freqüentar o Curso de Formação de Professores Indígenas, com duração de 2.970 horas, previsto para ser concluído em aproximadamente 3 anos, de 1997 a 1999. Ao final do curso de formação de professores índios foi realizado um Concurso Público pela Prefeitura Municipal de Aracruz, no qual se inscreveram 20 candidatos entre os formandos, sendo 11 aprovados e contratados para trabalhar nas escolas de todas as aldeias.
Reivindicação das Terras Indígenas
As comunidades indígenas sabem que a dívida histórica para com o seu povo não se limita na realização dos projetos apresentados, mas sobretudo garantir a sobrevivência das futuras gerações. Por isso, no dia 8 de dezembro de 1997 foi realizada uma Assembléia Indígena Tupinikim e Guarani, no Centro Comunitário de Coqueiral, com o objetivo de "debater com autoridades, entidades e parentes indígenas de outros Estados, a questão da ampliação e demarcação das terras e deliberar sobre a continuidade da luta", ao mesmo tempo, discutir "a situação atual do procedimento administrativo para a demarcação das terras indígenas do Espírito Santo."
A Assembléia deu conhecimento aos presentes de que os processos referentes à unificação das terras indígenas de Caieiras Velhas e Pau Brasil e à ampliação da terra indígena de Comboios, encontravam-se sobre a mesa do Ministro da Justiça, Iris Resende. Tais processos reivindicavam a ampliação das terras das aldeias em mais de 13.579 hectares.
Na ocasião, os índios de todas as aldeias de Aracruz ali presentes por suas lideranças, reiteraram a importância da luta, invocando o artigo 231 da Constituição Federal de 1988 e reafirmaram sua necessidade das terras para garantir o futuro de sua cultura e de suas vidas, bem como acusaram o governo brasileiro de ter contribuído "para que nossas terras fossem invadidas pela Aracruz Celulose". Eles também solicitaram que o governo reconhecesse seu erro e que fizesse justiça baseado-se em amparo legal a eles assegurado, acusaram a Aracruz Celulose de "estar usando todo seu poder para pressionar o governo brasileiro", e pediam urgência na assinatura dessas portarias, dizendo-se dispostos a aguardar uma resposta até o dia 20 de janeiro de 1998, data a partir da qual "iremos tomar todas as medidas necessárias para garantir nossos direitos" (ATA, 1997 ? Documento da 1º Assembléia Indígena Tupinikim e Guarani).
No ano seguinte, em 2 de abril de 1998 foi celebrado entre a Aracruz Celulose e os índios de Aracruz o "Termo de Ajustamento de Conduta" (TAC). Válido por 20 anos, até 2018, esse acordo cedeu aos índios um montante de 12,4 milhões de dólares (Carta da ARCEL, s/d:1) e fez cessar as disputas de terras entre as comunidades indígenas e a Aracruz Celulose, tendo essas comunidades indígenas reconhecido como legítimas as terras devolvidas pela Aracruz Celulose e desistindo de suas reivindicações de outros territórios em poder da empresa.
Ficou também estabelecido no "Termo de Ajustamento de Conduta" (1998), que o Projeto de Aplicação da Verba preveria a aplicação preferencial do dinheiro em necessidades coletivas da comunidade, no atendimento às necessidades de cada família, devendo ainda ser aplicado em subprojeto de assistência social às comunidades para atender as necessidades básicas, notadamente de alimentação, vestuário e habitação, ou em projetos que assegurassem no mínimo, a subsistência de todos os programas das comunidades.
O diretor Presidente da Aracruz Celulose, Carlos Augusto Lira Aguiar garante que "O acordo foi a forma racional e madura encontrada pelas partes para solucionar a disputa [...] vai possibilitar às comunidades indígenas atingir o nível desejável de desenvolvimento sustentável por elas almejado" (Carta da ARCEL, s/d:2).
Entretanto, muitos dos que acompanharam, de fora, essas negociações e o histórico acordo (TAC) de 02 de abril de 1998, questionaram os "ganhos" obtidos pelos índios. O que não ficou claro nesse acordo para a sociedade capixaba e aracruzense, e mesmo para os índios, foi a garantia de gestão sustentável proclamada pelo diretor presidente da Aracruz Celulose. Todavia, encerrando a disputa de cinco séculos entre brancos e índios no Espírito Santo, a Empresa sustentou que os acordos foram mais que satisfatórios para os índios, capazes de engendrar um desenvolvimento sustentável, do qual ela participaria, juntamente com a FUNAI e o Ministério Público Federal no Espírito Santo.
Não basta empregar esse dinheiro em projetos de interesse dos índios, já que muitas vezes esses interesses podem carecer de gestão a médio e longo prazo. A curto prazo esse montante pode resolver as carências imediatas em saúde, educação, habitação, vestuário, projetos agrícolas, e até culturais (como um Museu do Índio), também pode remodelar completamente o traçado urbano das aldeias, melhorar sua qualidade de vida e colocar os índios num patamar de fartura e auto-suficiência. A médio prazo, sua inserção no mercado local e regional, sem a devida preparação de quadros e lideranças executivas, com graus universitários em agronomia, economia, administração, ciências contábeis e outras, e não faltarão os "espertinhos" interessados em subtrair bens de capital dos índios. A longo prazo, a pergunta que não quer calar questiona se ao final do cumprimento do acordo, em 2018, os índios terão mantido o patamar de desenvolvimento auto-sustentável que lhes tenha proporcionado a melhoria da qualidade de vida . Também se pergunta se eles voltarão a ficar dependentes das atuais organizações indigenistas e não-governametais , se retornarão à natureza na economia da caça-pesca-coleta de seus antepassados, ou se voltarão às suas atuais miseráveis economias de subsistência, desemprego e à desassistência de hoje, chorando arrependidos pela renúncia aos mais de 11 mil hectares em troca do histórico acordo. Teria sido 12,4 milhões nada mais que um "Cavalo de Tróia"? São perguntas que a sociedade capixaba faz apreensiva.
Em 13 de maio de 1999, a reportagem do jornal A GAZETA trazia estampada a manchete "Aracruz (Celulose) faz acordo comercial com índios", dizendo logo abaixo que a empresa iria comprar toda a produção de eucaliptos plantados em terras indígenas o que renderia àquela comunidade R$ 5 milhões. Segundo a reportagem, a Aracruz Celulose assinou dois contratos de compra de madeira de eucaliptos com a Associação Indígena Tupinikim e Guarani (AITG) de Aracruz, formada como exigência do Acordo, para representá-los, tendo contado com a presença do Presidente da FUNAI, Mário Lacerda, além de autoridades estaduais (Secretário da Educação ? Marcelo Basílio), municipais (prefeito Luís Carlos Gonçalves), o gerente florestal da Aracruz Celulose Tadeu Mussi deAndrade e lideranças indígenas. Dentro de dois anos, os índios deveriam fazer o corte de 250 mil eucaliptos e, dentro de quatro anos, de um milhão deles, recebendo respectivamente R$ 1 milhão e R$ 4 milhões de reais. Alegou-se que além da renda obtida, os índios ainda evitariam a destruição das florestas nativas ainda existentes.
Por ironia do destino ou descaso das políticas públicas, os índios, que tanto protestaram contra a presença invasora da Aracruz Celulose às suas terras e à sua cultura, e após saírem vitoriosos da última demarcação das terras conquistadas pela empresa, que aumentou o território das aldeias em mais 2.571 há, perfazendo um total de 7.051 hectares, agora se renderam um acordo comercial, mediante o qual aceitaram que a empresa plantasse eucaliptos em terras indígenas e lhes pagasse cotas ocasionais pelo corte dessas árvores. Isso vem demonstrar, mais uma vez a política anti-indígena e o descaso dos governos Federal, Estadual e Municipal para com os índios do país, não havendo ainda a elaboração de gestão e investimento num projeto de desenvolvimento econômico alternativo, faltando inteligência, criatividade e vontade política das autoridades para com os nativos, sucumbindo os índios a uma renda que lhes permitia manter projeto agrícola de cultivo de feijão, café, milho e maracujá, entre outros. Tal submissão dos indígenas ao capital financeiro internacional acabou colocando-os na rota da assimilação e destruição cultural definitiva no contexto da globalização e do globalismo.
O Cacique Sizenando fala sobre o Acordo com a Aracruz Celulose
Nas palavras de Sizenando, a aldeia não é ainda auto-suficiente em sua produção agrícola e pecuária. A auto-sustentação prometida pela Aracruz Celulose ainda não se concretizou. O dinheiro do acordo (TAC) mal dá para cuidar do que está plantado. Segundo Sizenando, as 188 famílias da aldeia Caieiras Velhas têm plantados 95 mil pés de café e 3.000 pés de côco. O dinheiro do Projeto Agropecuário, cerca de R$ 371.000,00, é dividido para 6 aldeias, ficando para cada uma R$ 61.833,00, para ser usado em projetinhos de pomar, horta, plantações e outros.
Entre esses outros projetos estão o do caranguejo e o carvão de eucalipto. A coleta ou cata dos caranguejos traz renda para alguns marisqueros da aldeia e também alimentam os moradores. Entretanto, pessoas de outras comunidades de outras regiões não indígenas não respeitam as regras da época da desova e prejudicam os índios, coletando indiscriminadamente as fêmeas e machos (os Tupinikins só coletam os machos). O Rio Piraqueaçu vem sendo despovoado de peixes por pescadores que usam redes de arrastão e pegam grandes quantidades, enquanto os índios só usam a vara de pindaíba e não pegam peixes pequenos. Os índios também fazem e vendem carvão com galhos do eucalipto das terras que pegaram de volta, enquanto vendem esse eucalipto para a Aracruz Celulose, aproveitando a rebrota para usarem a madeira no futuro.
No momento, os índios sentiram-se prejudicados. Assim fizeram um diagnóstico de suas seis comunidades e enviaram à Aracruz Celulose, à FUNAI e Prefeitura de Aracruz, mostrando que o dinheiro não satisfaz as necessidades do plantio e outras. Querem rever o acordo, que consideram lesivo ao interesses indígenas. Seu grande sonho: a conquista das terras e sua unificação tal qual era antigamente, antes da chegada da Aracruz Celulose na área, quando Pau Brasil, Caieiras Velhas, Irajá (dos Tpinikim), e Tekoá Porá, Três Palmeiras e Piraqueaçú (dos Guarani) formavam um território contínuo, sem interrupções.O cacique Sizenando concluiu o depoimento dizendo que a luta só vai terminar quando as aldeias estiverem unificadas. Para isso, a Aracruz Celulose terá que ceder mais um pedaço que era deles, e que está hoje tomado por eucaliptos entre as aldeias de Caieiras Velhas e Pau Brasil. "E quem viver verá", finalizou.
Demarcação das Terras Indígenas
No dia 27 de agosto de 2007, depois de 40 anos de reivindicação, o Ministro da Justiça declara a posse permanente dos índios Tupinikim e Guarani e determina à FUNAI demarcar a terra reclamada por direito. A demarcação das terras indígenas consiste na explicação, pelo Ministério Público Federal, os limites das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, como determina na atual legislação. Desta forma, de acordo com o artigo 231 e o artigo 129 da Constituição Federal der 1988, que determinam respectivamente os direitos territoriais dos povos indígenas e estabelece a competência do Ministério Público Federal, que sejam cumpridos os prazos estipulados no artigo 2º do decreto 1775/1996, principalmente o que se refere à portaria declaratória de responsabilidade do Ministério da Justiça concedendo agilidade do processo a fim de evitar danos irreparáveis de direitos indígenas. Por esse motivo, deveria haver revisão ou adequação do Decreto 1775/96, a fim de facilitar a regularização e agilidade ao cumprimento dos direitos dos povos indígenas.
No que se refere ao direito dos Tupinikins de Aracruz à ocupação tradicional da terra, objeto da demarcação, qual o questionamento da empresa Aracruz Celulose para reivindicar a legitimidade dos títulos de propriedade do imóvel que ocupava? Como já foi mencionado anteriormente, pode-se verificar através das informações da própria empresa e da FUNAI, a Aracruz Celulose adquiriu da Companhia Ferro e Aço (COFAVI), cerca de 10.000 ha. de terras na década de 40 e posteriormente, adquiriu do Estado do Espírito Santo, mais 30.000 ha.
Para efeito jurídico-legal, seja qual for a documentação utilizada pela empresa para alegar legitimidade, torna-se sem efeito, porque os índios ocupavam e ocupam as terras de acordo com seus usos, costumes e tradições, disposto no § 1ºdo Art.231 da Constituição Federal, que define esses aspectos: 1. as que por eles habitadas em caráter permanente; 2. as utilizadas para suas atividades produtivas; as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e 4. as necessárias à sua reprodução física e cultural.
O direito dos povos indígenas de acordo com a Constituição Brasileira e em acordo com a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos Indígenas, adotado pela ONU e pelo Brasil, traz o seu direito de "autodeterminação", que implica em reconhecer simplesmente, "(...) que os índios têm direito de controlar suas vidas e comunidades, e de participar em todas as decisões que os afetem, dentro da estrutura vigente de unidade nacional e de integridade territorial (...)" (INFORMATIVO FUNAI, 2009: 2).
No entanto, a luta pela demarcação e proteção das terras indígenas não é fim em si mesma, mas faz parte de uma gestão constante na sustentabilidade dos povos indígenas em suas terras. Um dos espaços para reorganização sócio-familiar, para a construção da sustentabilidade dos povos indígenas e das terras demarcadas é o Fórum Permanente de Gestão de Aracruz, onde se aprofundam as discussões sobre temas diversos da área de integração indígenas e sobre questões emergentes das lideranças.
Os índios entregaram um documento em que relatam sua insatisfação com os resultados obtidos, até agora, e diagnosticam seus problemas e fizeram propostas de soluções. Diante dessa lista de reivindicações é possível ver que os índios de Aracruz estão bem conscientes de seus problemas, apontando variadas soluções para os mesmos. No entanto, o encaminhamento dessas soluções carece de um melhor dimensionamento, haja vista que colocam nas mãos de parcerias problemas que eles mesmos poderiam resolver e/ou pensam resolver, outros que dependem da ajuda de parceiros externos. Qualquer que seja o caminho apontado, a solução de seus seculares problemas depende da injeção e variados recursos financeiros e técnicos da sociedade circundante. Nem todos os problemas foram diagnosticados por todas as aldeias. Algumas não os perceberam, o que faz parecer que não os tem ou que os resolveram, enquanto outros problemas são exclusivos de certas aldeias. Da mesma forma as soluções.
Outro problema muito importante foi a questão do caráter que deveriam imprimir à sua economia, se de subsistência ou voltada para a exportação do excedente para as comunidades brancas vizinhas. De qualquer modo, os índios propuseram uma diversificação das roças e culturas agrícolas, bem como a instalação de criatórios de um número variado de animais domésticos e selvagens, como forma de garantirem sua alimentação. Duas outras necessidades gerais identificadas foram o resgate da história das comunidades indígenas e a diversificação do lazer, sejam como forma de sustentação de sua identidade étnica, ou como ação preventiva do alcoolismo, principalmente entre os jovens. Por fim, uma olhada atenta e solidária à lista, tendo como ponta de lança uma sólida vontade política, por parte dos governantes federais, estaduais ou municipais, ou mesmo pelas elites empresariais, permitiria o resgate da dívida histórica da sociedade nacional com os povos indígenas.
CONTRIBUIÇÕES DOS POVOS INDÍGENAS DE ARACRUZ
Durante as fases da conquista, exploração e colonização no Município de Aracruz, o colono impôs suas práticas jurídicas, educacionais e culturais, recusando-se a assimilar conceitos diversos de seus paradigmas e cultura, e aprender outros saberes. Os conquistadores legitimavam apenas as práticas deles e os índios (conquistados), detentores de uma cultura milenar, predestinaram-se à assimilação progressiva de uma pretensa superioridade cultural.
Verificou-se no breve histórico nos dispositivos constitucionais que os índios foram tratados como merecedores de um regime de tutela e por conseqüência, suas comunidades e organizações, são tratados a partir de uma perspectiva de inferioridade e de serem diferentes. Entretanto, como "direito à diferença" nas relações interétnicas da comunhão nacional com os índios, faz-se necessário o registro da definição formulada pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha: "Comunidades indígenas "são aquelas que se consideram segmentos distintos da sociedade nacional em virtude de uma consciência de sua continuidade histórica como sociedades pré-colombianas; índio é quem se considera pertencente a uma dessas comunidades e é por ela reconhecida como membro" (1985, p.36,37).
O índio é um sujeito que foi vitimado pelo processo colonial, o que não inviabilizou de ser sujeito. Ele sempre releu o processo colonial a partir de seu paradigma cultural. A maioria das pessoas tem um pouco de idealização das comunidades indígenas como populações que pertencem a outro tempo, não ao tempo presente, e que teriam dado origem a populações mais avançadas, mais evoluídas, como a civilização ocidental. Nesta perspectiva o índio é visto como um ser inferior que precisa ser integrado à comunhão nacional. Após essa integração, não será mais considerado inferior. Essa percepção está equivocada, porque a cultura não é cristalizada, os traços culturais poderão variar no tempo e no espaço, como de fato variam. A cultura é um processo.
Os índios do Município de Aracruz também evoluíram e modificaram sua cultura, assim como a cultura ocidental se modificou. Eles são sujeitos contemporâneos. Os indígenas que vivem conosco em Aracruz não tem reconhecida a sua identidade. As pessoas colocam a identidade em cima dos elementos de divertimento, como exemplo, o índio não anda mais nu. É preciso considerar que se o índio não anda mais nu é porque se assim o fizer, será preso, por estar convivendo com outra cultura. Encontram-se também, muitas resistências da sociedade Aracruzense como da empresa FIBRIA (ex Aracruz Celulose) a partir de afirmações discriminatórias, como: "hoje os índios têm casa de alvenaria com antena parabólica, com ar condicionado, têm motocicleta, carro, incorporaram sobrenomes como: Oliveira, Santos, etc. Desta forma, as pessoas e a empresa deslegitimam a existência de uma identidade. Assim sendo, não precisa haver demarcação de terras nem preocupações com essa parcela importante da sociedade brasileira que é a indígena. Essa visão, infelizmente, é ainda permeada por preconceitos e desconhecimento do que é uma diversidade de culturas e uma convivência entre povos com diferentes culturas.
As pessoas pensam que os índios têm uma única cultura, as mesmas crenças e língua. Não é verdade. Hoje, vivem no Município de Aracruz 02 etnias indígenas: Tupinikim e Guarani, ambas falam duas línguas, o Tupi e o Guarani. Quem considera estas duas culturas atrasadas e primitivas esquece que os índios produziram saberes, literatura, poesias, canto, religião e definiram o nome da cidade e suas regiões, etc.
O nome do município "Aracruz" vem da língua Tupi ? Itacuruçu: Ita (pedra) ? Curuçu (cruz) = cruz de pedra (Aracruz = cruz de pedra ou pedra do altar da cruz). No brasão do município de Aracruz está presente este significado.
As regiões do município de Aracruz levaram nomes indígenas como: Sauaçu = sagüi (macaco) - Açu (grande) = macaco grande; Piraqueaçu = Piraquê (peixe) - Açu (grande) = peixe grande; Sauê ? tipo de macaco; Putiri = flor; Guaximdiba; Grapuama; Jacupemba.
Na religião, os Guarani Mbyá de Aracruz, consideram as aldeias de Angra dos Reis e Parati como os "teólogos da florestas." A religião é um dos traços mais marcantes dessa tribo
Além dos costumes, como a rede, banhos (os europeus não tinham o costume de tomar banho todos os dias), alimentos, miscigenação, etc.
Observam-se que os índios deixaram fortes influências que permanecem vivas entre nós e em cada um de nós, mesmo que não saibamos disso ou não reconheçamos. É uma questão cultural. O reconhecimento da cultura indígena e sua contribuição é uma preocupação dos não-indígenas e não dos indígenas. Eles não têm esta preocupação. Eles sempre releram o processo colonial e olham o mundo a partir do seu paradigma cultural. O que é importante para eles e para todas as pessoas é que tenham assegurada a cidadania e as condições básicas para uma vida digna, ou seja, acesso à educação, à saúde, á terra. Tendo essas condições básicas de vida, os indígenas do Município de Aracruz irão seguir seus próprios cursos e suas próprias leituras dos acontecimentos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Voltemos ao ponto de partida : o novo paradigma instaurado pela Constituição de 1988 que garantiu aos indígenas de Aracruz a demarcação das terras pela União bem como sua proteção; o direito à organização social, costumes, línguas, crenças e tradições; direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, que são inalienáveis e indispensáveis, bem como à posse e usufruto exclusivo das riquezas do solo, rios e lagos nelas existentes... No entanto, apesar dos avanços, como o reconhecimento do direito à autodeterminação dos povos indígenas, a visão "civilizatória" e "assimilatória" foi substituída pelo multiculturalismo. Vive-se hoje uma crise de paradigmas, contexto em que se deve buscar convívio que leve respeito à cultura alheia e à assimilação de práticas e vivências.
Neste sentido os povos indígenas de Aracruz têm sido desprezados e desrespeitados, sendo vitimas pelo processo colonial, impedindo que os povos indígenas sejam protagonistas de sua história. Eles têm buscado a efetivação de seu direito e tem sofrido restrições, retaliações e têm sido levados a caminhar por rumos desconhecido ou não desejados.
Quando o não-índio faz interferências nos sistemas internos das comunidades indígenas - baseado em costumes, tradição e independentemente de leis escritas, desprezando regras, valores e princípios dos povos indígenas, impede essa comunidade de buscar soluções adequadas para seus conflitos, levando-os a fazer novamente a vontade do mais forte. Assim eles são oprimidos e não há realização de justiça.
A Constituição de 1988 no remete ao respeito aos povos indígenas, reconhecendo sua tradição milenar, seu direito e dignidade do seu grupo social. Significa educação diferenciada, meio ambiente equilibrado, terra para tirar seu sustento e afirmar sua espiritualidade, participar da sociedade envolvente em igualdade de condições e oportunidades (UJACOW, 2005).
Tem-se avançado muito sobre o paradigma da diversidade cultural, do respeito à diversidade cultural e a sua contribuição em relação ao reconhecimento das diferenças e da necessidade de cidadania das populações indígenas. No entanto, os leigos, que são a maioria no município de Aracruz, infelizmente estão permeados pelo preconceito e pelo desconhecimento do que é uma diversidade cultural e do que é uma convivência entre povos com diferentes culturas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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4. BRASIL. Portaria nº 1.463, de 27 de agosto de 2007. Diário Oficial da União, Brasília, 28 ag. 2007. Seção 1, nº 166.
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