DELAÇÃO PREMIADA NOS CRIMES DE LAVAGEM DE DINHEIRO...

Por Lucas Oliveira Rodrigues | 13/03/2017 | Direito

DELAÇÃO PREMIADA NOS CRIMES DE LAVAGEM DE DINHEIRO EM FACE DE GARANTIAS CONSTITUCIONAIS ATINENTES AO PROCESSO PENAL

 

Airon Caleu Santiago Silva

Lucas Oliveira Rodrigues

 

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 O INSTITUTO DA DELAÇÃO PREMIADA NAS LEIS N. 9.613/98 E 9.807/99; 2.1 Conceito; 2.2 Natureza Jurídica; 2.3 Pressupostos e Requisitos; 2.4 Pontos positivos e negativos; 2.5 Colaboração premiada vs. Delação premiada; 3 DELAÇÃO PREMIADA EM FACE DA CF/88; 3.1 Justificativas gerais da Delação premiada nas Leis n. 9.613/98 e 9.807/99; 3.2 Delação premiada e a garantias constitucionais atinentes ao processo penal; 4 CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.

 

 

RESUMO

 

Pesquisa levada a efeito tendo em vista o instituto da Delação Premiada e sua relação imprescindível com as garantias constitucionais de ampla defesa presunção de inocência dentre outras. Apresenta-se o conceito de Delação Premiada, bem como sua natureza jurídica, pressupostos, requisitos etc. Com base em tais conceitos, discute-se de que forma o instituto da Delação Premiada pode prejudicar garantias constitucionais atinentes ao processo penal, como por exemplo, direito ao contraditório.

 

Palavras-chave: Delação premiada; Garantias Constitucionais; Processo Penal.

 

 

1 INTRODUÇÃO

 

O instituto da delação premiada tem sido utilizado de forma cada vez mais frequente na atualidade, por conta de vários fatores, tais como: necessidade de produzir prova contra todos os envolvidos em esquemas de lavagem de dinheiro, fraudes, resgatar as quantias e objetos “perdidos” por conta da prática de crime etc. Porém muitas vezes tal instituto pode prejudicar na busca pela verdade real, afinal o delator pode simplesmente, seduzido pelos benefícios da delação, culpar um inocente.

Fora isso, como se verá adiante, a delação não possui sozinha o condão de ser prova suficiente para uma condenação, porém fato é que tem grande poder de influenciar a decisão do juiz, principalmente quando este participar do acordo de delação. Ou seja, tal instituto pode prejudicar o direito a um juiz imparcial.

Por isso, bem como tantas outras razões, impõe-se extremo cuidado na aplicação de tal instituto, bem como a análise mais aprofundada do mesmo em face da Constituição Federal e as garantias que esta confere a todos indistintamente.

Dessa forma, surge a necessidade de demonstrar como a delação premiada pode se tornar um empecilho à concretização de algumas garantias constitucionais relativas ao processo penal.

Para tal fim, abordou-se noções gerais à respeito da delação premiada, mais especificamente referentes ao conceito, natureza jurídica, aos pressupostos e requisitos, bem como pontos positivos e negativos do instituto em questão, confrontando este com algumas garantias fundamentais referentes ao âmbito processual penal.

Tal atividade foi levada a efeito, preponderantemente, através da utilização de livros e artigos referentes ao instituto da delação premiada.

 

2 O INSTITUTO DA DELAÇÃO PREMIADA NAS LEIS N. 9.613/98 E 9.807/99

 

Fato é que a assim chamada “delação premiada” tem sua razão de ser fundamentada principalmente em razões de política criminal, tanto que o ato de traição, que é, segundo boa parte da doutrina, imoral, chega a receber incentivo e até uma certa “premiação” por parte do Estado.

Pois bem, tendo isso em vista, convém evidenciar uma série de características do referido instituto de um modo geral (especificando, quando pertinente, o que se dá em relação à Lei n. 9.613/98 – crimes relativos às organizações criminosas e lavagem de capitais; e em relação à Lei n. 9.807/99 – relativa à proteção às vítimas e testemunhas, ou seja, de certa forma, estabelece um tipo de “regime geral” da delação premiada, conforme Bittar, 2011), bem como seus pontos positivos e negativos para que, ao fim, se possa compreender, ao menos em parte, os motivos do legislador ao criar tal instituto.

 

2.1 Conceito

 

Em linhas gerais, “a delação, ou chamamento do corréu, consiste na afirmativa feita por um acusado, ao ser interrogado em juízo ou ouvido na polícia, pela qual, além de confessar a autoria de um fato criminoso, igualmente atribui a um terceiro a participação no crime como seu comparsa” (BADARÓ, 2014, p. 314).

Renato brasileiro de Lima (2012), por sua vez, conceitua a delação premiada em função dos benefícios que ela pode fornecer ao coautor ou partícipe delator, ou seja, seria a possibilidade de alcançar um dos vários benefícios previstos (para cada tipo de delito tem-se mais ou menos benefícios) por conta da cooperação, seja ajudando a desmantelar o bando ou quadrilha, seja localizando o produto do crime, seja possibilitando o resgate, em segurança, da pessoa sequestrada e afins. Importante observar que a delação, neste sentido, deve ser efetiva, mas tal característica será analisada de modo mais profundo adiante, no ponto referente aos requisitos e pressupostos da delação premiada.

 

2.2 Natureza Jurídica

 

Embora haja divergência quanto à natureza jurídica da delação, fato é que, segundo Renato Brasileiro (2012), em alguns momentos pode ser entendida como confissão, como prova testemunhal, como indícios, como causa de redução de pena, como excludente de punibilidade, etc. Por outro lado, Gustavo Badaró (2014) entende não ser possível ver o corréu delator como testemunha, afinal este possui interesse na causa, não pode ser arrolado pelas partes, dentre outros motivos.

Renato Brasileiro ainda alude que, de todo modo, a delação premiada, considerada em si mesma, é meio de obtenção de prova, “afinal, através dela, o acusado presta auxílio aos órgãos oficiais de persecução penal na obtenção de fontes materiais de prova” (LIMA, 2012, p. 1094). No que tange aos crimes de lavagem de dinheiro (Lei n. 9.613/98), tendo o acusado cooperado indicando “localização dos bens, direitos ou valores objeto dos crimes, e se essas informações efetivamente levam à apreensão de tais bens, a delação terá funcionado como meio de obtenção de prova e a apreensão como meio de prova” (LIMA, 2012, p.1094).

No que tange à caracterização da delação enquanto prova testemunhal[1], é interessante, neste ponto, referir que o delator pode ou não ser corréu no mesmo processo que o delatado, porém, se o for, boa parte da doutrina refere que a sua contribuição não deve ser considerada prova testemunhal, mas tão somente indícios. Por outro lado, quando não for réu no mesmo processo, pode ser arrolado como testemunha de acusação, conforme refere Aury Lopes Jr. (2012).

Isso é relevante, segundo o referido autor, na medida em que, no caso de o delator ser corréu do delatado, aquele vai possuir também o direito ao silêncio, embora não o deva fazer no caso de ser arguido a respeito das acusações que fez, sob pena de ter suas afirmações desacreditadas. Por outro lado, fato é que meras testemunhas também possuem direito ao silêncio quando arguidas sobre algo que as possam incriminar[2], logo os delatores que tenham suas alegações recebidas como prova testemunhal também podem exercer tal direito, conforme autores como Aury Lopes Jr. (2012) e Renato Brasileiro de Lima (2012).

 

2.3 Pressupostos e Requisitos

 

Refere a doutrina de Walter Barbosa Bittar (2011, p. 168) que “consideram-se [...] como pressupostos de existência, aquelas condutas que fazem com que o investigado ou réu passe a ser considerado colaborador, ou seja, condutas que permitam reconhecer, no caso concreto, que se está diante de uma delação ou colaboração premiada”.

O aludido autor também traz outros pressupostos da delação em sua obra, a saber, a confissão, a colaboração com as investigações, a espontaneidade (ou voluntariedade) dessas e, como pressuposto de validade, a presença do defensor. Convém abordar cada um destes.

No que tange à confissão, embora ela seja expressamente trazida por apenas duas normas que tratam da delação[3], fato é que ela é algo imprescindível para que se tenha caracterizado uma delação[4]. Tal conclusão pode ser extraída do próprio conceito de delação já abordado anteriormente.

No entanto, a simples confissão nem ao menos possui o condão de basear, sozinha, a condenação do confitente, quanto mais para a caracterização da delação. Para que esta se dê, faz-se necessário, ao lado da confissão, condutas que inequivocamente demonstrem que há de fato vontade de colaborar com as investigações da verdade dos fatos (BITTAR, 2011).

 A respeito da colaboração, tem-se que, como já visto, esta deve ser efetiva (por outro lado, não necessariamente será eficaz), ou seja, o pretenso beneficiário da delação premiada deve demonstrar interesse em colaborar e, em princípio, não se opor a esclarecer ponto algum, afinal “uma restrição por parte do delator quando solicitado a colaborar [...] afeta diretamente a concessão do beneplácito, pois, em princípio, não cabe ao delator escolher os pontos em que aceitará colaborar ou não” (BITTAR, 2011, p. 173).

No que tange à espontaneidade e à voluntariedade, tem-se que “no ato espontâneo a ideia, a iniciativa de praticá-lo emana do próprio agente; no ato voluntário não se exige que a ideia de praticá-lo seja do próprio agente” (GOMES; CERVINI apud BITTAR, 2011, p. 174). Pois bem, tendo tais ideias em vista, convém referir que a as Leis n. 9.613/98 e 9.807/99 trazem, respectivamente, a ideia da necessidade da espontaneidade e da voluntariedade.

A Lei n. 9.613/98 traz a ideia de espontaneidade como elemento necessário para a caracterização da delação premiada. Por outro lado a Lei n. 9.807/99 traz a ideia da voluntariedade. Dessa forma, convém analisar se aqui, de fato, a diferenciação entre espontaneidade e voluntariedade foi querida pelo legislador ou se o uso de expressões diversas foi resultante, tão somente, de imprecisão terminológica e atecnia legislativa.

Para Bittar (2011) o que importa para o Estado é a obtenção de informações relevantes para o deslinde do caso e, de fato, parece certo afirmar que este é o principal fundamento do instituto da delação premiada, ou seja, não importa qual a motivação do delator[5], não importa se a ideia de confessar e colaborar com as investigações surgiu dele, do advogado ou do incentivo da autoridade (policial ou judicial), importa, sim, a colaboração levada a efeito pelo delator livre de coação de qualquer natureza[6].

A presença do defensor do delator não é exigida expressamente por nenhuma das normas que tratam sobre a delação premiada, porém é evidente que essa necessidade decorre da própria ordem constitucional vigente – afinal serviria como meio de resguardar a ampla defesa, o devido processo legal, a garantia de não ser obrigado a produzir provas contra si mesmo e afins – bem como da aplicação analógica da Lei dos Juizados Especiais (Lei n. 9.099/95) que refere em algumas ocasiões (por exemplo, no caso de composição civil dos danos e em caso de transação penal) a obrigatoriedade da presença do advogado. Então, tendo em vista que no caso, por exemplo, da composição civil de danos há tal obrigatoriedade mesmo não havendo a necessidade de admissão de culpa, a fortiori ratione, há tal necessidade no caso da delação premiada, tanto no momento em que o acusado aceita prestar informações quanto nos momentos em que efetivamente prestá-las, for chamado para tirar dúvidas quanto aos fatos do delito e assim por diante (BITTAR, 2011).

Basicamente são elencados por Walter Barbosa Bittar (2011) como requisitos da delação premiada a apuração das infrações penais e de suas autoria e a localização dos bens, direitos ou valores, objeto do crime.

O referido autor parece crer que, no caso da apuração das infrações penais e de suas autorias não é necessário a cumulação da constatação da materialidade do crime e de sua autoria para se alcançar o beneplácito[7] apesar de uma, sem a outra, ter quase nenhuma utilidade. O autor tira tal conclusão do fato de a Lei n. 7.492/86 exigir, além da confissão espontânea, somente a revelação da trama delituosa o que resultaria na possibilidade do agente receber os benefícios da delação mesmo que não indique seus coautores ou partícipes. Porém Lescano (2010) traz, no caso da Lei n. 9.613, a necessidade de a constatação da materialidade delitiva vir acompanhada da apuração da autoria e isso era bem óbvio na redação anterior à Lei n. 12.683/12 (esta alterou o §5º, do art. 1º, da Lei n. 9.613/98). Sendo a redação atual[8], aparentemente, aberta à divergência, ainda assim, parece mais certo adotar a posição defendida por Mariana Lescano (2010).

O delator pode, também, fornecer a localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime. Quanto a este requisito não há muito o que se dizer, ele consiste simplesmente no que já foi expresso: o delator fornece a localização dos bens, direitos ou valores objetos do crime. Cabe aqui as considerações feitas em relação ao conhecimento do delator, ou seja, não é necessário que ele entregue todos os objetos do crime, mas entregando os objetos que tem conhecimento já estará colaborando efetivamente e isso aumenta as possibilidades de conseguir maior benefício (BITTAR, 2011).

Refere Bittar (2011) que essa forma alternativa de esclarecimento, que surgiu no Ordenamento jurídico brasileiro em 1998 com o advento da Lei n. 9.613, se estende para os demais, pois, além de outros fundamentos, a Lei n. 9.807/99 ampliou a incidência do instituto da delação premiada à todos os casos cometidos em concurso de pessoas e esta lei, no seu art. 13, III, prevê como colaboração a recuperação total ou parcial do objeto do crime.

Importante evidenciar que a colaboração eficaz não é requisito para que o beneplácito se verifique, porém, fato é que, caso a colaboração seja eficaz, não há motivos para não se conceder o benefício previsto em lei, por consequência, a não concessão seria ilógica e iria de encontro aos valores constitucionais presentes no âmbito processual penal.

 

2.4 Pontos positivos e negativos

 

Guilherme de Souza Nucci (2014) traz em sua obra algumas características da delação premiada apontadas, pela doutrina, como positivas ou negativas, sendo que os pontos aludidos como positivos mais parecem a negação da existência ou justificação daqueles apontados como negativos.

Seriam pontos negativos: a) o Estado tornar oficial uma conduta antiética, a saber, a traição; b) o fato de que a premiação da delação pode ferir o princípio da proporcionalidade da pena, haja vista que delatados que cometeram o mesmo ou menos do que o delator geralmente serão submetidos a uma pena mais severa; c) o fato de que a traição em si, tem servido em nosso ordenamento jurídico para agravar ou qualificar a pena, então não deveria ser utilizada para reduzi-la e afins; d) não se pode prescindir da análise ética e moral dos meios utilizando como justificativa os fins; e) a existência da delação premiada não tem sido efetiva na sua finalidade de desmantelar associações criminosas, não tem sido suficiente para que os criminosos delatem uns aos como esperado; f) o Estado não pode negociar com criminosos; g) a delação pode servir como instrumento de vingança ou incentivo à delações falsas (NUCCI, 2014).

Em contrapartida, justificando o instituto da delação premiada, os assim chamados “pontos positivos da delação premiada” consistem em: a) o âmbito criminoso não é um ambiente ético, logo não há que se reprovar a premiação da traição, afinal tal premiação estaria, sim, em defesa da ética, a saber, mais especificamente, o respeito às normas vigentes; b) não há desproporcionalidade na aplicação da pena, haja vista que o que rege a mesma é a culpabilidade e parece certo afirmar que aquele que coopera com a justiça para o fim de desmantelar organizações criminosas, diminuir os danos de sua conduta criminosa e afins tem uma conduta menos reprovável do que aquele que foi delatado; c) as qualificações e aumentos de pena por conta de traição se dão, pois esta, em tais casos, visa lesão a um bem jurídico penalmente relevante, já na delação premiada a traição visa a proteção de um bem jurídico, logo é uma traição à serviço do Estado Democrático de Direito; d) se inseridos em lei, os fins podem, sim, justificar os meios; e) a falta de efetividade do instituto da delação premiada seria devido à falta de dedicação do Estado em fornecer real proteção aos delatores somada à impunidade de criminosos o que faz com que os pretensos delatores, por medo, deixem de prestar informações que seriam de vital importância para o deslinde de práticas criminosas; f) o Estado já negocia com criminosos, por exemplo, na transação penal (Lei n. 9.099/95), a delação premiada seria uma transação de nível diferente; g) o oferecimento de benefício para o acusado delatar a trama criminosa de que fazia parte, pode servir como incentivo ao arrependimento sincero o que ensejaria a realização de um dos fundamentos da pena, a saber, ressocialização; h) pode ser que se verifique a existência de falsa delação, porém esta, de qualquer forma, deverá ser severamente punida; i) questões éticas e valores morais variam de acordo com o local, tempo e bens em conflito, não se deve deixar que tais questões impeçam o efetivo combate ao crime organizado (NUCCI, 2014). Tendo isso em vista,

 

[...] parece-nos que a delação premiada é um mal necessário, pois o bem maior a ser tutelado é o Estado Democrático de Direito. Não é preciso ressaltar que o crime organizado tem ampla penetração nas entranhas estatais e possui condições de desestabilizar qualquer democracia, sem que se possa combatê-lo, com eficiência, desprezando-se a colaboração daqueles que conhecem o esquema e dispõem-se a denunciar coautores e partícipes. (NUCCI, 2014, p. 394).

 

Portanto apesar de ser um instituto merecedor de várias críticas de ordem ética, fato é que a delação premiada é necessário instrumento de combate ao crime e, quem sabe, de efetivação de garantias do acusado/apenado como ampla defesa, liberdade de locomoção e presunção de inocência, por exemplo.

 

2.5 Colaboração premiada vs. Delação premiada

 

Embora essa diferenciação não seja adotada pela doutrina de modo geral, refere a boa doutrina de Renato Brasileiro (2012) que a colaboração premiada é gênero do qual a delação premiada é espécie[9].

Pois bem, conforme o referido autor, na colaboração premiada há, obviamente, uma premiação dada pelo Estado ao colaborador, de forma semelhante se dá a delação premiada. Diferem, porém, pois, nesta última, o acusado entrega os seus comparsas, ele entrega os coautores ou partícipes do tipo penal de que é acusado, por isso, também, a delação premiada é chamada de chamamento do corréu. Em relação à colaboração premiada, aqui o acusado não irá entregar seus comparsas, por outro lado, simplesmente ajudará a minimizar os danos de seus atos, seja indicando o local onde está escondido o objeto do crime, dinheiro, onde a vítima está sendo mantida em cativeiro e assim por diante.

 

3 DELAÇÃO PREMIADA EM FACE DA CF/88

 

Refere Walter Barbosa Bittar (2011) que o instituto da delação premiada, considerado em si mesmo, não vai de encontro às garantias constitucionais, obedece, sim, a sistemática do ordenamento jurídico brasileiro, a saber, preponderância das garantias fundamentais presentes na Constituição Federal (CF).

O fato de o delator abrir mão do seu direito ao silêncio e do seu direito a não produzir provas contra si mesmo (nemu tenetur se detegere) para que possa ser beneficiado (ao confessar e apontar seus comparsas e/ou partícipes), não faz a delação ser inconstitucional, afinal muitas vezes o acusado não possui outros meios idôneos a livrá-lo da punição estatal, devendo-se ver tal instituto como – além de importante instrumento de política criminal passível de identificar os autores do crime e encerrar tal prática – meio de defesa e de proteção à liberdade do acusado.

Segundo o que se nota em Bittar (2011), parece, pelo menos à primeira vista, que se está aqui em face de uma colisão de direitos fundamentais: de um lado (do delator ou do delatado) as diversas garantias constitucionais referentes ao processo de modo geral (por exemplo, o devido processo legal, ampla defesa, contraditório etc.) e à aplicação da pena (nemu tenetur se detegere etc.) e, de outro lado (do delator ou do delatado), o direito à ampla defesa e a liberdade. Dessa forma, deve-se ter cuidado na aplicação do referido instituto.

Em relação àquele que é delatado, deve-se ter muito mais cuidado, haja vista que este, notadamente, é quem mais se prejudica no contexto de uma delação. À título de exemplo, Lopes Jr. (2012) e Lima (2012) referem que ao delatado deve ser assegurado o direito de reperguntas ao delator naquilo que diz respeito às alegações lhe foram imputadas, ou seja, o direito à ampla defesa e ao contraditório, assim como outros, devem ser resguardados da melhor e mais ampla forma.

No que tange ao delatado poder-se-ia questionar: “mas e quanto à proporcionalidade entre as penas impostas aos coautores do crime?” Este é um dos pontos negativos que, como já visto, a doutrina costuma levantar à respeito da delação premiada. De fato, a pena do delator que efetivamente colaborou com a justiça entregando os seus comparsas pode ser reduzida ou pode haver até mesmo a extinção da punibilidade (em alguns casos, até mesmo perdão judicial), em contrapartida aquele que foi delatado restará uma pena bem mais severa. Porém, conforme refere Nucci (2014), a pena é regida pela culpabilidade do acusado, ou seja, tendo o delator colaborado com o Estado, demonstra menor culpabilidade, devendo, então, sua pena ser menor (ou nenhuma) em relação àquele (delatado).

Tendo dito isto, surge indagação referente à quais razões justificariam a utilização do referido instituto, tendo em vista a sua “fragilidade” enquanto meio idôneo e hábil a produzir provas lícitas.

 

3.1 Justificativas gerais da Delação premiada nas Leis n. 9.613/98 e 9.807/99

 

Refere Bittar (2011) que com a crescente globalização há expansão, também, do alcance das atividades ilícitas, mais especificamente dos crimes relativos às organizações criminosas e, por consequência, os crimes de lavagem de capitais. Tal expansão, hipoteticamente, é o que justifica o surgimento do objetivo estatal de combater a criminalidade organizada através da “perseguição” dos resultados de tais atividades criminosas.

Pois bem, o referido autor alude que de fato o crime de lavagem de capitais está estreitamente vinculado com as atividades anteriores levadas à efeito pela organização criminosas, por exemplo, tráfico de drogas, armas, pessoas, prática de agiotagem etc. porém a lei 9.613/98 não exige que os crimes anteriores à lavagem tenham sido objeto de sentença penal condenatória transitada em julgado e, por isso, há quem discorde de tal visão – haja vista o garantismo constitucional – por outro lado, há quem entenda que meros indícios dos crimes anteriores são suficientes para que se possa condenar o agente pela lavagem de dinheiro (BITTAR, 2011).

De toda forma, restam óbvias as razões do legislador em tipificar tais condutas, a saber a patente ineficácia das medidas adotadas contra os crimes das organizações criminosas, ou seja, agora passa-se a combater o crime organizado através da repressão ao lucros alcançados pelos criminosos através da atividade ilícita, em outras palavras, busca-se fazer o crime “não compensar” (BITTAR, 2011).

Justamente pelo fato de ser deveras dificultosa a investigação das atividades dos crimes organizados é que se justifica a instauração do instituto da Delação premiada para, assim, incentivar os partícipes e coautores das infrações, membros ou não da organização criminosa, a delatar seus comparsas, esclarecer o funcionamento da organização, entregar ou indicar a localização de bens, direitos e valores objetos do crime e assim por diante.

Tal necessidade se coaduna com a edição da Lei 9.807/99 que estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, institui o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas e dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal, apelidada de Lei de Proteção à Vítima e à Testemunha.

Tal lei objetivou, pelo menos legalmente falando, fornecer proteção àqueles que, de certa forma, auxiliaram na atividade estatal de persecução penal, ampliando, inclusive, o âmbito de aplicação do instituto da delação premiada a todos os crimes praticados em concurso de pessoas (BITTAR, 2011).

 

3.2 Delação premiada e a garantias constitucionais atinentes ao processo penal

 

A boa doutrina de Walter Barbosa Bittar (2011) traz uma série de ocasiões em que o instituto da Delação premiada, ao menos em parte, vai de encontro a algumas garantias decorrentes da ordem constitucional referentes ao processo penal, como, por exemplo, o devido processo penal, o princípio da legalidade, contraditório dentre outros.

Quanto ao primeiro, sabe-se que “o devido processo penal, corolário do devido processo legal, é, de fato, um conjunto de garantias suficientes para possibilitar às partes o exercício pleno de seus direitos, poderes e faculdades processuais” (BONFIM apud BITTAR, 2011, p. 201, grifo nosso). Segundo o referido autor, fazem parte do direito ao devido processo penal o direito de participar de todo o processo em igualdade de condições com as demais partes, participação essa que se dará em contraditório e munido de meios hábeis à influenciar na decisão do magistrado, tudo isso em um prazo razoável (BITTAR, 2011).

Pois bem, disto decorre que a defesa deve ser impreterivelmente cientificada de que houve uma delação e do conteúdo desta para exercer o direito a uma ampla defesa, bem como para contraditar as alegações levadas a efeito pelo delator. Tal garantia serve também para o fim de que se tenha ciência de que o magistrado está analisando o conteúdo da delação com as devidas precauções, haja vista toda a “fragilidade” deste meio de obtenção de prova, caso contrário estar-se-ia violando a própria Constituição Federal (CF) (BITTAR, 2011). Assim,

 

Não é razoável surpreender a defesa, durante a instrução probatória, quando já instaurado o contraditório, com a informação de que um dos acusados “celebrou” acordo de delação premiada, sem prejuízo da defesa técnica, raciocínio contrário representaria a admissão de um absurdo desequilíbrio de forças durante o processo: de um lado, o Ministério Público cônscio de informações privilegiadas (com o aval do magistrado); de outro a defesa completamente vulnerável (BITTAR, 2011, p. 200, grifo nosso).

 

Dessas considerações extrai-se também a necessidade de observância da garantia à um juiz imparcial, corolário do próprio devido processo legal. Neste sentido, como já visto, o juiz não deve levar em consideração apenas o conteúdo da delação haja vista esta não ser suficiente para fundamentar uma condenação, caso contrário, isto evidenciaria a sua falta de imparcialidade. De outra forma, o juiz que porventura colha a delação pode se tornar extremamente tendencioso quanto ao processo em questão, prejudicando assim a garantia constitucional a um juiz imparcial.

Quanto ao princípio da legalidade que deve estar presente também em sede de Delação premiada, sabe-se que em nosso ordenamento jurídico não há, no que tange ao oferecimento da denúncia, a possibilidade de haver juízo de oportunidade por parte do Ministério Público (BITTAR, 2011), ou seja, “estando presentes os requisitos legais para o exercício da ação penal, deverá o Ministério Público oferecer a denúncia” (LOPES JR. apud BITTAR, 2011, p. 202). Dessa forma, não coaduna com a sistemática processual brasileira os “acordos de não acusação, ou acusação consensual, admitidos, ou reconhecidos, antes da sentença, com o oferecimento de beneplácitos, inerentes à delação premiada” (BITTAR, 2011, p. 202), embora tais acordos sejam atualmente celebrados pelo Ministério Público quando convém.

Como já dito anteriormente, a Delação premiada pode ser adotada como estratégia do indiciado, afinal, dessa forma, pode alcançar redução de pena e, no caso dos crimes de lavagem de capitais, iniciará o cumprimento da pena em regime aberto e também pode ter a sua pena não aplicada ou substituída por uma restritiva de direitos e, através da Lei n. 9.807/99 pode, inclusive, alcançar o perdão judicial, portanto pode ser que a Delação seja a melhor ou única estratégia do acusado capaz de pô-lo em liberdade ou amenizar a sua pena.

Dessa forma, embora possa parecer, à primeira vista, que há, na delação, lesão ao direito ao silêncio (afinal o delator deve confessar a prática do delito, senão não se caracterizará a delação), isso não se verifica, afinal o delator confessa de forma espontânea ou mesmo apenas voluntariamente, de qualquer forma, não é obrigado a confessar, o faz se quiser ser merecedor dos referidos beneplácitos.

Cabem, quanto ao direito ao silêncio em sede de Delação premiada, as considerações feitas anteriormente à respeito da natureza jurídica da delação enquanto prova testemunhal e a possibilidade de reperguntas e afins baseadas na doutrina de Aury Lopes Jr. (2012) e Renato Brasileiro de Lima (2012).

No que tange à garantia do contraditório, refere Bittar (2011) que, embora boa parte da doutrina refira o contrário, o instituto da Delação premiada não fere o contraditório. Isto porquê, via de regra, as alegações feitas à autoridade competente com o fim de realizar o acordo de delação serão repetidas, dessa vez em contraditório, caso isso não ocorra, aí sim poder-se-ia falar em lesão a tal princípio.

 

4 CONCLUSÃO

 

Com tudo isso, tem-se que o instituto da Delação premiada tem servido como meio para o desmantelamento de organizações criminosas servindo às razões de política criminal, porém é um meio de obtenção de prova relativamente “frágil” no que diz respeito à sua idoneidade para a produção de provas lícitas.

Requer-se em tal situação especial atenção às garantias constitucionais atinentes ao processo penal, objetivando-se mantê-las hígidas independente de quão válidos sejam os fins que se quer alcançar com a aplicação da delação premiada.

Convém referir que, para tal fim, as garantias fundamentais devem ser asseguradas tanto ao delator quanto ao delatado. Para o primeiro a delação como modo de manifestação da ampla defesa, sendo assegurado à ele o direito ao silêncio no que tange àquilo que não foi matéria de sua delação e, também, quanto àquilo que – sendo objeto da delação, mas não daquilo que confessou previamente – possa vir a prejudicá-lo (embora seja fato que, caso silencie sobre suas alegações, terá sua delação desacreditada) etc.; e, quanto ao segundo, devem ser assegurados o direito ao contraditório, também à ampla defesa, o direito à um juiz imparcial e afins. Enfim, a utilização do instituto da Delação premiada requer extremo cuidado por parte de magistrados, Ministério Público e demais agentes do Estado.

 

REFERÊNCIAS

 

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.

 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

 

______. Lei n. 9.613 de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, e dá outras providências. DOU de 04.03.1998.

 

______. Lei n. 9.807 de 13 de julho de 1999.
Estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, institui o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas e dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal. DOU de 14.07.1999.

 

______. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 79.812-8 – SP (Medida Liminar). Rel. Min. Celso de Mello, DJU 07.12.1999.

 

BITTAR, Walter Barbosa. Delação premiada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

 

LESCANO, Mariana Doernte. A delação premiada e sua (in)validade à luz dos princípios constitucionais. Trabalho de Conclusão de Curso. Pontifícia Universidade Católica - RS: Porto Alegre, 2010. Disponível em: <http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2010_1/mariana_lescano.pdf> Acesso em: 02 de maio, 2015.

 

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. vol. 1. Niterói: Impetus, 2012.

 

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

 

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo e execução penal. São Paulo: 2014.

 

[1] Walter Barbosa Bittar (2011, p. 172) refere que a colaboração com o esclarecimento dos fatos (pressuposto da delação premiada) não se equipara à prova testemunhal, pois a testemunha participa do processo de modo passivo enquanto o colaborador de modo ativo e efetivo.

[2] Direito ao silêncio é direito que assiste a qualquer um. (Habeas Corpus N. 79.812-8 -SP (Medida Liminar). Relator Min. Celso de Mello).

[3] Art. 25, §2º, da Lei n. 7.492/86 e art. 16, parágrafo único, da Lei n. 8.137/90.

[4] Até porque, via de regra, o beneplácito cabível no contexto de uma delação é a redução de pena (geralmente de um a dois terços), ficando facultado ao juiz substituir a pena restritiva de liberdade por pena restritiva de direitos, deixar de aplicá-la etc. Isso é o que se pode observar, por exemplo, no art. 1º, §5º, da Lei n. 9.613/98 que trata sobre os crimes de lavagem de capital, bem como na regra (“o indiciado ou acusado que colaborar [...] terá sua pena reduzida de um a dois terços) estabelecida no art. 14, da Lei n. 9.807/99 que trata sobre o sistema de proteção a vítimas e testemunhas. Ou seja, “se um réu está disposto a pleitear redução ou liberação da pena é porque está admitindo sua culpa, pois quem nega os fatos, pleiteia absolvição” (BITTAR, 2011, p. 171). Então, embora não expressa em todos os dispositivos normativos que tratam da delação, a confissão é pressuposto lógico da delação premiada.

[5] “[...] não é exigido do agente arrependimento, pouco importando sua motivação mas, assim, como toda confissão, não pode ser obtida sob qualquer forma de ameaça ou coação” (BITTAR, 2011, p. 170).

[6] Em sentido diverso, Mariana Doernte Lescano (2010), refere que na Lei n. 9.613/98 a ideia deve surgir do delator para que se manifeste o pressuposto da espontaneidade, por outro lado, na Lei n. 9.807/99 basta que a colaboração levada a efeito seja livre de qualquer tipo de coação ou ameaça, sendo irrelevante a motivação ou a origem da delação.

[7] Até porque nem sempre o delator terá conhecimento de tudo, devendo ser levado em consideração para a concessão do beneplácito aquilo que efetivamente o colaborador tem conhecimento e aquilo que ele efetivamente forneceu à autoridade (BITTAR, 2011).

[8] “[...] esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes , ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime” (art. 1º, §5º, Lei 9.613/98).

[9] Walter Barbosa Bittar (2011) apresenta críticas a tal diferenciação, mais precisamente à diferenciação realizada por Luiz Flávio Gomes entre delação premiada e confissão premiada (esta ultima teria o mesmo significado da “colaboração premiada” referida por Renato Brasileiro). Por exemplo, não se deveria exigir que o agente fornecesse todos os dados necessários para a persecução penal, haja vista que mesmo parcela destes seria útil, também não se deveria falar em confissão premiada, pois a própria confissão é requisito da delação premiada, então não haveria razão para tal diferenciação, tendo em vista também que os benefícios para uma e outra serão semelhantes.