De Deus para o mundo: uma Eclesiologia (2) Igreja-Eclésia-Comunidade

Por NERI P. CARNEIRO | 30/07/2019 | Religião

De Deus para o mundo: uma Eclesiologia (2) Igreja-Eclésia-Comunidade

Coloquemo-nos diante da indagação: “o que é isso que denominamos de Igreja?”

Poderiam nos ser apresentadas várias respostas, mas uma das melhores seria afirmar a centralidade da comunidade. Não se trata de qualquer reunião de pessoas, mas de um encontro celebrativo. Não existe Igreja sem a comunidade que partilha a mesma fé. E isso pode ser confirmado quando entendemos o significado etimológico de Igreja.

Entre os gregos antigos a Eclésia era uma assembleia da qual podiam participar os membros previamente determinados. Tratava-se de um grupo seleto, que zelava pela cidade; definia os rumos da cidade. E havia critérios rígidos para ser membro da eclésia: cidadãos maiores de 20 anos, naturais da polis e que não estivessem em falta com os seus direitos.

Evidentemente a Igreja cristã não é uma reprodução do modelo e da sociedade grega! Mas preserva algumas características do conceito, com um alcance remodelado, em consonância com o projeto do Reino. Permanece, entretanto, uma ideia importante: a Igreja é um grupo seleto (selecionado pelo batismo; o batismo é a porta por onde se adentra à Igreja cristã), mas não é um grupo fechado, como o era a Eclésia dos gregos.

A afirmação a ser feita, neste ponto é que, seguramente, a Igreja cristã tem outro fundamento. Não nasceu da vontade humana, mas de um plano e de uma ordem divina para ser, no mundo, sinal do Reino.

Foi prefigurada na criação (Deus os fez homem e mulher... e viu que isso era bom, Gn 1,27ss). Ao ser chamado à vida o ser humano nasce em um grupo familiar. No ato criador de “homem e mulher” está uma afirmação de vida coletiva, uma prefiguração da vida eclesial. A escolha divina pelo ser humano é anterior à escolha humana por Deus. A adesão humana é uma resposta à convocação divina.

Além desse, ao longo das páginas da bíblia podemos visualizar diversos momentos prefigurantes da Igreja. Com base nisso, podemos dizer que a Igreja aprendeu a ser Igreja quando seguiu os passos e se fez caminhante, com Abraão (Sai da tua terra, da tua parentela e vai..., Gn 12,1). Deus convoca para o diferente, pois a mesmice impede o crescimento humano. Sair do conforto em que se está instalado é uma perfeita forma de se direcionar ao outro com o qual se forma uma comunidade. O eu e o outro apenas como “eu” e “outro” permanecem no isolamento. Quando se encontram ocorre uma relação eclesial: pode-se falar em “nós”.

No deserto, com Josué, a Igreja aprendeu a fazer opções (eu e minha família serviremos ao Senhor.... Js 24,15), recusando-se a cultuar outras divindades. Os grupos humanos formam-se ao redor de diferentes desafios e propostas. Raras são as que conduzem ao Senhor. Por isso a necessidade de opção. Deus propõe um caminho, mas espera das pessoas uma resposta na forma de adesão ao seu plano de amor comunitário. Essa adesão é pessoal, mas se manifesta no grupo. Não existe Igreja/grupo/assembleia, sem os indivíduos, mas os indivíduos isolados ou sem interação, não formam Igreja. Inicialmente a interação entre os indivíduos ocorre em nível familiar, propaga-se nas diversas faces da sociedade e quando manifesta-se a mesma crença e empenho pelo mesmo compromisso evidencia-se uma comunidade eclesial.

Em inúmeras outras situações entre os profetas ou nos livros de sabedoria, aparecem outros elementos precursores da Igreja: a vontade de Deus em relação à comunidade humana. E todas essas situações são precursoras e prenúncio daquilo que Jesus de Nazaré viria concretizar: não a criação da Igreja, mas a apresentação das propostas e condições para que se desenvolvesse a eclésia-comunidade. E demonstrou isso ao longo de sua vida pública: ele convocava para o seguimento. “Chamou a Si alguns a quem Ele quis, e escolheu doze para andarem com Ele e para os mandar a pregar” (Mc 3,13). A esses a quem havia convocado envia em missão (Lc 10,1; Mc 6,7) com poderes em favor dos destinatários: a ação eclesial é uma ação conjunta, coletiva, para o outro, por isso missionária. O Vaticano II chama essa característica de “ad extra”, uma Igreja voltada “para fora”, em saída, para o outro... aberta para o mundo a fim de que o mundo, mediante a ação da Igreja, volte-se para o Reino e o Reino possa se implantar no mundo superando sua face anti-reino.

Diz explicitamente o decreto Ad Gentes, do Vaticano II: A missão da Igreja realiza-se pois, mediante a atividade pela qual, obedecendo ao mandamento de Cristo e movida pela graça e pela caridade do Espírito Santo, ela se torna atual e plenamente presente a todos os homens ou povos para os conduzir à fé, liberdade e paz de Cristo.” (Ad Gentes, 5).

Prefigurada em inúmeras páginas a Igreja ganha um tom constitutivo a partir da boca do próprio Senhor. De acordo com o evangelho de Mateus, sai da boca de Jesus a afirmação determinante: “tu és Pedro e sobre esta pedra construirei a minha Igreja” (Mt 17,18). É, portanto, sobre esse ponto de apoio, sobre essa base, que se assenta a Igreja cristã. A Igreja, enquanto grupo missionário, mantém o vínculo com o Senhor e entre seus membros a partir de uma liderança diaconal (de serviço). A pedra (Pedro) não foi posta com a finalidade de se tornar uma figura em evidência, nem para ser cultuada. A pedra é escolhida para ser ponto de apoio e de partida para o serviço. Ponto de convergência e de missão/envio.

Os líderes da Igreja (do Papa até as mais remotas lideranças das várias comunidades espalhadas pelo mundo) não existem para serem servidos, admirados, idolatrados, mas para servirem e ajudarem a edificar a Igreja, a assembleia do povo de Deus. Pensar diferentemente disso é colocar-se contra o ensinamento do Mestre, que não veio para ser servido, como o afirma em Mateus: “O Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir, e para dar a sua vida em resgate de muitos”. (Mt 20,28). E esse serviço tem uma dupla dimensão: anúncio da boa nova e supressão das necessidades dos marginalizados, conforme decisão dos apóstolos (At 6,1-6).

E podemos dizer mais: essa é a grande e principal característica do cristianismo. Uma Igreja Servidora, isso faz da Igreja cristã uma instituição única: ela não existe para manter as estruturas mas, pelo contrario, as estruturas existem para o serviço. Um “estar a serviço” que tem como ponto de partida os excluídos da sociedade-mundo. É o mundo, onde viceja o anti-Reino, o espaço em que a Igreja, instrumento do Reino, exerce sua missão-serviço evidenciando sua essencial diferença: o serviço aos necessitados. E esse serviço só pode ser interrompido na plenitude do Reino. Portanto, no mundo, a Igreja sempre será servidora com vistas na transformação das estruturas que corroem o Reino. Ser instrumento de superação das situações de sofrimento é uma das formas da Igreja acelerar a construção do reino; mas, por outro lado, na medida em que os membros da comunidade-eclésia se abstêm de praticar a justiça, o amor, a solidariedade, e não se esforçam para superar as situações de maldade estão retardando ou impedindo a germinação das sementes do reino.

Além de ser convocada pelo Senhor, a Igreja cristã, também se diferencia das demais crenças, em razão da manifestação inicial. Os escolhidos (grupo seleto, como na eclésia grega) para serem os primeiros ouvintes e membros não foram os ricos e poderosos, mas os excluídos da sociedade. Exatamente o oposto do que ocorria nas crenças antigas nas quais os deuses cobravam sacrifícios na forma de oferendas. E isso exigia que o crente fosse possuidor de algum bem; fosse rico para entregar as oferendas. Nessas crenças os sacerdotes enriqueciam com os donativos. Os governantes eram beneficiados com as normas emanadas das diversas divindades e com os impostos cobrados em nome dos deuses. Em outras palavras: as crenças antigas não se destinavam ao povo, mas às elites; a manutenção da crença dependia da riqueza do adepto.

No Egito ou na Mesopotâmia antigos quase sempre os monarcas eram apresentados e se apresentavam como deuses. Ao povo cabia obedecer às vontades desses monarcas divinizados e contribuir financeiramente para a manutenção da religião oficial. Dessa modalidade de crença os pobres ou os escravos eram excluídos, pois não tinham condições econômicas para manter as oferendas. A religião, portanto, acabava sendo um privilégio dos privilegiados. E os deuses eram representantes dos grupos dominantes.

Postura radicalmente diferente foi a de Jesus: nasceu pobre entre os pobres (entre pastores Lc 2,6-10). Viveu entre os pobres e “pecadores” (mulheres, doentes, pobres, e demais excluídos), justamente aqueles que não tinham acesso nem à religião dos judeus nem a dos romanos. Não é por acaso que Jesus destaca a oferta da viúva pobre, dizendo que ela doou mais do que todos os outros, pois não ofereceu as sobras da riqueza e sim sua pobreza, ou seja, sua vida: “Em verdade, vos digo: esta viúva pobre deu mais do que todos os outros. Pois todos eles depositaram como oferta parte do que tinham de sobra, mas ela, da sua pobreza, ofereceu tudo que tinha para viver.”(Lc 21,1-4; ver também Mc 12,43-44).

Na cosmovisão judaica quase sempre os doentes eram considerados renegados por Deus. Por seu lado os pobre, eram renegados pelos romanos pois não tinham como contribuir com os impostos. E foi a esses a quem Jesus se dirigiu para serem os primeiros ouvintes de sua palavra e grupo social da base de sua Igreja. São os excluídos, os preferidos do Senhor, deles é que o Senhor teve pena, por vê-los “como ovelhas sem pastor” (Mt 9,36; Mc 6,34; ver também Jo 10,7ss).

A Igreja-comunidade, portanto, deve se erguer a partir deses que foram os abandonados tento pelos líderes religiosos como pelos dirigentes políticos. Tornaram-se, efetivamente, ovelhas sem pastor. Diante dessa constatação e para esse seleto grupo de seguidores é que se explica e se aplica a missão Pedro, pedra angular: apascentar ovelhas (Jo 21,15-17). Os escolhidos (a eclésia do Senhor) formam a comunidade não porque criaram uma estrutura gigantesca, como é atualmente a Igreja enquanto instituição, mas na medida em que esse seleto grupo usa todos os recursos da instituição, não somente e primeiramente para a pureza cultual, mas para a radicalidade evangélica do serviço, pois, diz o Senhor “eu vos escolhi e vos designei para irdes e produzirdes frutos” (Jo, 15,16).

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura – RO