De Deus para o mundo: uma eclesiologia (4) – a Bíblia e as pistas para a Igreja Universalizada
Por NERI P. CARNEIRO | 26/08/2019 | ReligiãoDe Deus para o mundo: (4) – a Bíblia e as pistas para a Igreja Universalizada
Não é estranha a afirmação de que a Igreja está prefigurada na bíblia. Entretanto, não apenas prefigurada, mas também originando-se no antigo povo de Deus e continuada na ação missionária e sacramental. A partir da ação apostólica configura-se a atual face da Igreja: luz do mundo, por ser expressão do Cordeiro imolado; ponto de convergência das nações, caracterizando-se como dom universal.
a- igreja comunidade dos que creem
Logo nas primeiras linhas da constituição dogmática Lumen Gentium (LG), do Vaticano II, podemos ler que Deus decidiu chamar à Igreja aqueles que creem em Jesus Cristo. Diz também que a Igreja é “prefigurada já desde o princípio do mundo e admiravelmente preparada na história do povo de Israel e na Antiga Aliança” (LG 2). Essa afirmação conciliar é cristalina nas páginas das escrituras afirmando a eleição de um povo, na antiga aliança; e a comunidade dos justos, na perspectiva da nova aliança. Quem nos assegura disso é o próprio senhor Jesus, ao afirmar: “quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32). Não mais só um povo, mas todos os povos. É a universalização de uma proposta eclesial.
No plano do Pai, expressão da plenitude do Reino, a Igreja sempre esteve presente com essa finalidade: acolher a comunidade dos crentes. No “ato da criação”, como expressão do gesto de bondade divina (Gn 1 e 2), ela foi “prefigurada” a fim de que se pudesse ver no mundo o sinal daquilo que o sucederá: o Reino de Deus. No transcurso da história, ela foi “preparada” na história do povo eleito, o qual simbolizou a comunidade cristã: o antigo Israel precedeu a comunidade dos discípulos e seguidores de Jesus. Mas ela somente foi inaugurada, como sinal da permanência de Jesus entre nós, no sinal sacramental da Eucaristia e na dinamicidade da comunidade dos fiéis, inicialmente ungidos pelo Espirito Santo, em Pentecostes, mas perenemente se renovando ao longo da história, no ato do batismo.
Ou seja, a Igreja, comunidade dos seguidores de Jesus, é uma incipiente expressão humana da comunidade da Trindade Santa, não como ato pleno, mas como esperança potencial, a se realizar plenamente na parusia. Cabe à Igreja, entretanto, preparar no mundo o reino esperado, uma vez que na consumação dos tempos “quando o Filho do Homem vier em sua glória, acompanhado de todos os anjos, ele se assentará em seu trono glorioso. Todas as nações da terra serão reunidas diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. E colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos, à sua esquerda” (Mt 25,31-33).
b- Novo povo
Mais ainda, na já referida Lumen Gentium encontramos a afirmação de que em consonância e cumprindo o desígnio do Pai, Cristo veio nos incorporar ao projeto do Reino como “filhos adotivos”: “Veio pois o Filho, enviado pelo Pai, que n'Ele nos elegeu antes de criar o mundo, e nos predestinou para sermos seus filhos de adoção, porque lhe aprouve reunir n'Ele todas as coisas”. O que foi “preparado” pela história do povo hebreu é narrado ao longo das páginas do da Antiga Aliança e descrita no Novo Testamento de modo que “Cristo, a fim de cumprir a vontade do Pai, deu começo na terra ao Reino dos Céus e revelou-nos o seu mistério, realizando, com a própria obediência, a redenção. A Igreja, ou seja, o Reino de Cristo já presente em mistério, cresce visivelmente no mundo pelo poder de Deus” (LG 3).
Partindo disso, somos levados a concluir que podemos encontrar na Palavra de Deus vários vestígios e figuras da Igreja. O próprio texto da Lumem Gentium faz um levantamento e comentário desas imagens: “No Antigo Testamento, a revelação do Reino é muitas vezes apresentada em imagens, também agora a natureza íntima da Igreja nos é dada a conhecer por diversas imagens tiradas quer da vida pastoril ou agrícola, quer da construção ou também da família e matrimônio, imagens que já se esboçam nos livros dos Profetas”(LG 6).
c- Igreja nasce no coração de Deus
Partindo dessas imagens podemos afirmar que a Igreja nasce no coração de Deus para crescer no coração dos seres humanos. Manifesta-se à humanidade na atuação de Jesus Cristo; na convocação de um grupo de discípulos; na eleição de Pedro como ponto de apoio propulsor e para a continuidade da obra de Jesus. Expressa sua natureza: primeiramente sua sacramentalidade ao unir definitivamente a terra e o céu no mistério da Eucaristia; e depois suas dimensões mística e física expressas no supremo sacrifício da cruz, ao verter sangue e água. E finalmente manifesta-se com força e fervor missionário no evento de Pentecostes, visto que o espirito enche os corações de ardor missionário.
Em todos esses eventos a Igreja, se manifesta ao mundo como dom divino, pelo qual Deus não só se propõe ao diálogo com os seres humanos, como abre espaço para a resposta humana. Esse presente divino, entretanto, não se destina mais a uma única nação, como na antiga aliança que havia sido selada com o antigo povo de Deus, mas se destina a toda a humanidade... a todos que aderirem ao convite. Devendo-se destacar que os primeiros a aderir ao chamado de Jesus Cristo foram os excluídos da sociedade.
A igreja de Cristo, portanto, tem um lugar social a partir de onde ela nasce e se desenvolve: os excluídos. Daí que a Igreja não é somente espaço de oração, mas semente de conversão e transformação social.
E, dessa forma, tudo que foi prefigurado pelo povo de Deus como primeira experiência eclesial, no contexto da Antiga Aliança, agora se desenvolve na história da humanidade com uma nova fisionomia que, ao mesmo tempo, se abre para o mundo e o convida a se converter a Deus. Com esse gesto divino, abrindo diálogo com o mundo, a Trindade Santa indica a nova característica da Igreja: universal, pois ultrapassa as barreiras de um grupo humano que se constitui numa nação, para se abrir a toda a humanidade. E a porta de entrada são as vítimas da exclusão, os preferidos de Jesus de Nazaré.
Portanto, a Igreja que brota a partir da palavra de Deus só pode ser uma Igreja universal, pois aberta ao mundo e voltada para o mundo em seu processo evangelizador. De acordo com a ordem de Jesus: “Ide por todo o mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15). A novidade proclamada pela boa mensagem é destinada a todos os povos, portanto universal. Deve-se, entretanto, ressaltar que a boa notícia se caracteriza a partir da resposta de Jesus aos discípulos de João: “Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo: cegos recuperam a vista, paralíticos andam, leprosos são curados, surdos ouvem, mortos ressuscitam e aos pobres se anuncia a Boa-Nova. E feliz de quem não se escandaliza a meu respeito!” (Mt 11,4-6).
d- Adoção batismal
A proclamação do evangelho, tem como finalidade convocar à adesão. Uma adesão que se dá mediante o ato do batismo. Os batizados são introduzidos no grupo ou na comunidade dos seguidores de Jesus. O critério para ser incorporado à Igreja-novo povo de Deus, é o batismo.
Temos aqui, uma vez mais, a ação sacramental como ponto alto da vida eclesial. Noutras palavras: no processo dialogal é pelo sacramento da Eucaristia que Jesus se faz presente na comunidade eclesial. E como resposta a esse convite ao diálogo; ou antes, como meio de começar a fazer parte da comunidade eclesial, as pessoas são acolhidas pelo batismo. O sacramento do batismo, portanto é a porta de entrada das pessoas nessa comunidade eclesial.
Em síntese: A comunidade dos seguidores de Jesus é composta por aqueles que são incorporados pelo batismo: “aquele que crer e for batizado, será salvo” (Mc 16,16). Ou seja, pelo batismo o crente é incorporado à Igreja. Mas, vale ressaltar: trata-se de um convite destinado “a toda criatura”. O convite é universal para que a Igreja seja universal: anunciar a todos a boa nova que consiste em aderir ao projeto de salvação pelo sinal sacramental do batismo. E viver em sintonia com o Cristo Eucarístico que em seu gesto supremo de paixão, morte e ressurreição se mantém presente na Igreja.
Essa presença, ocorre como um divisor de águas: Ligando o novo e o velho; derrubando a uns e erguendo a outros, nos moldes dos últimos versos do cântico de Maria, afirmando que a misericórdia do senhor se estende para sempre sobre seus amados: “sua misericórdia se estende de geração em geração sobre aqueles que o temem. Ele mostrou a força de seu braço: dispersou os que tem planos orgulhosos no coração. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos, e mandou embora os ricos de mãos vazias. Acolheu Israel, seu servo, lembrando-se de sua misericórdia, conforme prometera a nossos pais, em favor de Abraão e de sua descendência, para sempre” (Lc 1,50-55).
e- “As nações caminharão à sua luz”
As escrituras, como podemos notar, estão repletas de indícios e demonstrações da presença de Deus na Igreja. Desde a eleição do povo hebreu até a formação da comunidade cristã. Todo esse percurso nos pode ajudar a entender a universalidade da proposta da igreja e a catolicidade dessa proposta universal, nascida no plano de Deus, “em favor de Abraão e de sua descendência, para sempre”, como afirmou Maria.
Não é novidade afirmar que desde a criação até a perspectiva da parusia, acenada no Apocalipse pode-se visualizar a ideia da Igreja vertida do coração de Deus para aconchegar todos os que aderem ao projeto salvífico. A visão narrada em Ap 21,9-27 ajuda a entender essa dinâmica. Aí podemos ver que a “cidade santa”, descendo do céu, de junto de Deus (do coração de Deus), é, ao mesmo tempo: a Jerusalém celeste, está vinculada à antiga aliança; e a esposa do cordeiro, é expressão e vínculo da nova aliança.
Quando lemos Ap 21,12-14, podemos enxergar a universalidade nas portas que se abrem para os quatro pontos cardeais. “Ela está cercada por muralha grossa e alta, com doze portas. Sobre as portas há doze Anjos e nomes inscritos, os nomes das doze tribos de Israel: três portas para o lado do oriente; três portas para o norte; três portas para o sul, e três portas para o ocidente. A muralha da cidade tem doze alicerces, sobre os quais estão os nomes dos doze Apóstolos do Cordeiro”. Em outras palavras, a universalidade da Jerusalém celeste e esposa do Cordeiro está prefigurada na muralha de doze portas que se abrem para o norte, sul, leste e oeste – universalizando-se. Além disso, a muralha de doze portas tem doze alicerces: as portas são as doze tribos e os alicerces são só doze apóstolos.
Como a Jerusalém celeste é esposa do cordeiro, somos levados a concluir que a universalização acenada pelas doze portas dos quatro lados, fundamentadas no alicerce apostólico expressa a mesma convocação missionária e batismal. A presença eucarística de Jesus é o sol que atrai todas as nações e lhes permite caminhar iluminados pela luz que é o próprio cordeiro. Por isso o autor do apocalipse diz: “A cidade não precisa do sol ou da lua para a iluminarem, pois a glória de Deus a ilumina, e sua lâmpada é o Cordeiro. As nações caminharão à sua luz, e os reis da terra trarão a ela sua glória; suas portas nunca se fecharão de dia — pois ali já não haverá noite —, e lhe trarão a glória e o tesouro das nações” (Ap 21, 23-25).
Neri de Paula Carneiro
Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador
Rolim de Moura – RO – neri.pcar@gmail.com