Da despenalização do aborto à legalização de um crime: Esboços de Filosofia do Direito
Por Hermenegildo Samuel | 04/11/2020 | FilosofiaDA DESPENALIZAÇÃO DO ABORTO À LEGALIZAÇÃO DE UM CRIME: ESBOÇOS DE FILOSOFIA DO DIREITO
Hermenegildo Samuel[1]
Joaquim Rescova[2]
Resumo
Este artigo tem por objectivo contribuir com dados que possam ajudar a reflectir de forma mais humana a problemática da penalização e despenalização do aborto, no sentido de se compreender se se justifica ou não. Para o efeito, reflecte-se se despenalizar o aborto é ou não legalizar um crime. A vida humana inicia no momento da concepção, o novo ser que surge por meio desta é humano e também é pessoa humana, porque, é um indivíduo da espécie humana, por conseguinte, é um sujeito de direitos. O direito não é simplesmente a legislação editada e promulgada pelo Estado, é sobretudo e não só, a coisa que pertence justamente à determinada pessoa. Portanto, a vida é um direito do ser resultante da concepção, independentemente de ser ou não reconhecido pela legislação Estatal. Nas normas angolanas referentes ao aborto, entende-se existir uma certa imprecisão lógica entre o artigo 66.º do Código Civil e o artigo 156.º do Código Penal, no sentido de que a lei não reconhece os direitos do nascituro, mas criminaliza o aborto. A disponibilização e permissão do uso de alguns métodos abortivos como a pílula anticoncepcional de emergência e os dispositivos intra-uterinos (DIU) viola o artigo 156.º do Código Penal. O aborto é um mal jurídico em si, mas não obstante isto, deve-se continuar a reflectir sobre a sua penalização e despenalização, parcial ou integral.
Palavras-chave: Vida humana. Aborto. Ser humano. Direito. Métodos abortivos.
DE LA DÉPÉNALISATION DE L’AVORTEMENT À LA LÉGALIZATION D’UN CRIME: CROQUIS DE PHILOSOPHIE DU DROIT
Résumé
Le but article c’est de fournir des données pouvant aider à réfléchir de manière plus humaine à la question de la pénalisation et de la dépénalisation de l'avortement dans le sens de se comprendre ou ne pas comprendre s’il se justifié ou non. En effet, on réfléchit si avorter équivaut ou non à l’assassinat d’un être humain comme nous. La vie humaine commence au moment de la conception, l’être nouveau qui surgi de la conception est en réalité un être humain, parce qu’un individu de l’espèce humaine et par conséquent un sujet de droits. Le droit n’est pas simplement la législation éditée et promulguée par l’État, c’est aussi et non seulement la chose qui appartient précisément à une personne donné ou à des personnes humaines. Après tout, la vie est le droit de l’être issu de la conception, indépendamment d’être reconnue ou non par la loi de l’État. Dans la législation angolaise relative à l'avortement, il existe un conflit entre l'article 66 du Code civil et l'article 156 du Code Pénal, en ce sens que la loi ne reconnaît pas les droits de l'enfant à naître, mais criminalise l'avortement. Rendre disponible et permettre l'utilisation de certaines méthodes d'avortement telles que la pilule contraceptive d'urgence et les dispositifs intra-utérins (DIU) constituent une violation de l'article 156 du Code Pénal. L'avortement est un mal juridique en soi. Bien qu’il s’agisse essentiellement d’un mal juridique, on doit continuer à réfléchir à sa pénalisation et à sa dépénalisation, partielle ou intégrale.
Mots-clés: Avortement. Vie humaine. Être humain. Droit. Méthodes abortives.
Introdução
Hodiernamente, a problemática do aborto preocupa a maioria das pessoas, tanto as que o praticam como também as que não. Tem sido comum a discussão sobre a sua penalização e despenalização nos diversos países do mundo.
Com este artigo, queremos contribuir com dados que possam ajudar a reflectir de forma mais humana sobre a penalização e despenalização do aborto, no sentido de se compreender se se justifica ou não tal acto. Para o efeito, reflecte-se se despenalizar o aborto é ou não legalizar um crime. É de realçar que a nossa reflexão é de cariz filosófico jurídico, com isto, queremos dizer que não pretendemos apresentar uma apologia a favor da penalização ou despenalização do aborto, seja parcial ou integral, mas sim pretendemos realizar um exercício integralmente racional com a finalidade de perseguir a verdade.
Pois, é comum, sobretudo em países onde a mentalidade religiosa exerce uma grande influência, julgar as pessoas que são a favor da prática do aborto (pró-aborto) como imorais, desumanas, pecadoras…Como também é comum no mundo contemporâneo, julgar a posição anti-aborto, isto é, os que defendem a penalização do aborto, como fruto de uma mentalidade arcaica imbuída de dogmas religiosos irracionais. Nesta nossa reflexão, iremos prescindir destes modos de pensar e procuraremos servir-nos pura e simplesmente da razão.
Reflectiremos sobre o início da vida humana, procurando compreender se o novo ser que surge através da concepção é humano, se é pessoa humana e por conseguinte se é um sujeito de direitos. Iremos também procurar compreender o que é o direito. Reservaremos algumas páginas para reflectir sobre o aborto na legislação angolana e sobre os métodos contraceptivos disponíveis no nosso país, no sentido de compreendermos se violam a lei.
1. Início da vida humana
Ao procurarmos compreender se despenalizar o aborto é ou não legalizar um crime, é fundamental identificarmos quando é que inicia a vida humana, embora seja uma questão assaz complexa.
Fruto da complexidade da mesma, há várias e diferentes perspectivas, entre as quais, destacaremos as seguintes: no momento da concepção; quando a individualidade está garantida; quando o feto demonstra ondas cerebrais; quando o feto tem condições para viver fora do ventre da mulher; no momento do nascimento; quando o indivíduo se torna consciente de si e racional (GALVÃO, 2005, p. 107).
Por existir várias perspectivas, podemos pensar que o início da vida humana seja relativo, mas é importante reconhecermos que a experiência nos ensina que o facto de não conhecermos determinada coisa, não significa que a mesma não exista, de igual modo, pode ser que, o facto de existir várias perspectivas acerca do início da vida humana, não significa que o mesmo seja relativo. No entanto, para encontrarmos uma resposta satisfatória, é importante sabermos o que nos ensina a Biologia. Segundo Enna Padilla e Mónica Silva, a mesma ensina-nos que, “a vida de cada ser humano começa no momento da concepção, com a união do óvulo e do espermatozóide, constituindo-se, assim, a primeira célula do ser humano.” (PADILLA; SILVA, 2001, p. 41). Sgreccia explica a resposta dizendo:
O primeiro dado incontestável, esclarecido pela genética, é o seguinte: no momento da fertilização, ou seja, da penetração do espermatozóide no óvulo, os dois gametas dos genitores formam uma nova entidade biológica, o zigoto, que carrega em si um novo projeto-programa individualizado, uma nova vida individual. (SGRECCIA, 2002, p. 342).
Para comprovarmos a veracidade ou falsidade da resposta, é importante compreendermos o processo que vai da concepção ao nascimento. O mesmo ocorre em sucessivas fases, especificamente, germinal, implantação, embrionária e fetal.
Na fase germinal, o óvulo fecundado passa por sucessivas divisões, dando início ao processo de especialização, que consiste na formação dos órgãos do corpo (KIURA; GITAU; KIURA, 2014, p. 22).
Na fase da implantação, o óvulo fecundado agacha-se à parede do útero e alimenta-se a partir da mãe. (KIURA; GITAU; KIURA, 2014, p. 22).
Na fase embrionária (2 semanas após a concepção até cerca de 8 semanas após a mesma), ocorre a formação das diversas partes do organismo, maior parte deste começa a ganhar forma, entre as quais, o coração, que é o primeiro a funcionar, os olhos, a cabeça, o aparelho digestivo, os membros superiores e inferiores, o nariz, a boca. (PADILLA; SILVA, 2001, pp. 43-44).
Na fase fetal (7 meses antes do nascimento), o feto continua a desenvolver-se e os órgãos que se formaram no primeiro trimestre aperfeiçoam-se (PADILLA; SILVA, 2001, p. 44). O casal Kiura e Regina Gitau explicam-nos que
No quinto mês, o feto adormece e acorda a intervalos regulares, e alguns reflexos, como soluçar e engolir, desenvolveram-se. O feto chora e pode chupar no dedo. Nesta altura, os movimentos do feto podem já ser sentidos pela mãe. Os traços faciais são bem evidentes, e o feto pode dar murros. (KIURA; GITAU; KIURA, 2014, p. 23)
Portanto, uma vez que é a partir da concepção que surge a nova vida, e da concepção ao nascimento, a mesma desenvolve-se ininterrupta e harmoniosamente, ou seja, como diz Sgreccia, “a autogénese do embrião acontece de tal modo que a fase sucessiva não elimina a precedente, mas a absorve e a desenvolve, segundo uma lei biológica individualizada e controlada” (SGRECCIA, 2002, p. 346), é necessário que esta vida seja a mesma que se encontra no ser humano na fase extra uterina, tanto enquanto criança, adolescente e enquanto adulto, porque, se não for, a vida humana terá de ser e não ser humana ao mesmo tempo e na mesma relação. Pois, segundo o princípio lógico da não contradição, “é impossível que um ser seja e não seja idêntico a si mesmo ao mesmo tempo e na mesma relação.” (CHAUI, 2000, p. 234).
Assim sendo, não é possível que a vida humana inicie quando a individualidade está garantida, quando o feto demonstra ondas cerebrais, quando tem condições para viver fora do ventre da mulher, no momento do nascimento ou quando o indivíduo se torna consciente de si e racional, porque, estas fases são posteriores à da concepção. Portanto, a vida humana inicia no momento da concepção.
2. O novo ser vivente que surge por meio da concepção é um ser humano?
Tendo em conta o que foi exposto no subtema anterior, suscitou-nos a questão supra.
Parece-nos ser evidente que este ser seja humano, uma vez que possui vida humana. Mas a questão não é tão simples como parece. Por exemplo, Judith Jarvis Thomson no seu artigo, A Defense of Abortion, nega que o feto seja um ser humano desde o momento da concepção e conclui dizendo que “um aborto realizado na fase inicial da gravidez não consiste seguramente em matar uma pessoa […] ” (GALVÃO, 2005, p. 49). No entanto, para encontrarmos uma resposta exaustiva, é importante contemplarmos a natureza para compreendermos como ocorre o processo de geração dos seres, porque, o homem “ […] não está sozinho no mundo como em um ambiente externo que o circunda, mas é também parte integrante do mundo […] tem algo em comum com os animais, as plantas e as próprias coisas materiais e inanimadas, embora de todas se distinga e a todas transcenda pela sua peculiar dimensão espiritual” (SELVAGGI, 2001, p. 7).
O que sucede na natureza é que os seres não são gerados a partir do nada, a geração dos mesmo é condicionada por causas materiais, formais, finais e eficientes, ou seja, uma mangueira possui os seus frutos (mangas) e se quisermos que surja uma outra mangueira, é necessário que semeemos um caroço de manga numa terra fértil e sigamos com as devidas actividades para o seu normal desenvolvimento. De igual modo, um vitelo surge do acasalamento entre um boi e uma vaca. Portanto, o homem sendo parte integrante da natureza, como referimos acima, o seu processo de geração também ocorre por meio de seres já existentes (espermatozóide e o óvulo), ou seja, da intimidade sexual entre um homem e uma mulher, desde que haja contacto entre o espermatozóide e o óvulo, surge um novo ser vivente.
Em função disto, podemos questionar-nos o seguinte: como é possível que da intimidade sexual entre um homem e uma mulher, desde que haja contacto entre o espermatozóide e o óvulo, surja um novo ser vivente? De igual modo, o caso do caroço de manga e o do vitelo.
Quanto estas questões, Aristóteles ajuda-nos a respondê-la com o conceito de ato e de potência, ambos intrinsecamente vinculados. Sobre os mesmos diz Aristóteles:
Ato:
[…] é o existir de algo, não porém no sentido em que dizemos ser em potência: dizemos em potência, por exemplo, um Hermes na madeira, a semi-reta na reta, porque eles poderiam ser extraídos, e dizemos pensador também aquele que não está a especular; mas dizemos em ato o outro modo de ser da coisa. (ARISTÓTELES, Liv. IX, 1048a, 30-35).
Potência “[…] significa o princípio pelo qual uma coisa é mudada ou movida por outra ou por si mesma enquanto outra.” (ARISTÓTELES, Liv. IX, 1019a, 20).
Isto em palavras simples e de forma concreta significa: por exemplo, um bebé, quando ainda não tem capacidade suficiente para falar, a sua capacidade de falar está em potência, quando crescer e já puder falar, significa que a sua capacidade de falar está em ato.
Portanto, o espermatozóide e o óvulo unidos (o zigoto) é um ser humano em potência, porque, se actualiza em homem. De igual modo, o caroço de manga é uma mangueira em potência. No entanto, se fizermos a experiência com um caroço de figo, este não se vai actualizar em mangueira, mas sim em figueira, porque, não possui a potencialidade de mangueira, mas possui a de figueira. Por exemplo, a parede não pode andar, não pode falar e nem pode pensar, porque, não possui tais potencialidades.
Em suma, o novo ser vivente resultante da concepção é um ser humano, independentemente do nome que lhe atribuirmos.
3. O ser humano que surge por meio da concepção é uma pessoa humana?
Se fizéssemos esta questão a um homem da época medieval, certamente poderia achar que a mesma não faz sentido algum, mas nos dias actuais parece fazer algum sentido. Isto é evidenciado por Engelhardt (apud SGRECCIA, 2002, p. 359) ao escrever:
Nem todos os seres humanos são pessoas. Os fetos, os recém-nascidos, os retardados mentais graves e os que estão em coma sem esperança constituem exemplos de não-pessoas humanas. Essas entidades são membros da espécie humana. Não têm status, em si e por si, na comunidade moral. Não são participantes primários do empreendimento moral. Somente as pessoas humanas têm esse status.
É de realçar que a sua afirmação é consequência da perspectiva segundo a qual, a pessoa humana é um ser essencialmente auto-consciente, racional e possuidor de um senso moral. Mas para melhor reflectirmos em torno da questão, é imprescindível compreendermos a génese do conceito de pessoa vinculado aos seres racionais.
De acordo com Mounier, a noção decisiva de pessoa numa perspectiva universal foi determinada pelo cristianismo (MOUNIER, [s.d.], pp. 22-23), o mesmo foi empregue para designar os seres individuais de natureza racional, isto é, os indivíduos da espécie divina e humana. (MONDIM, 2003, pp. 291-292).
Uma das melhores definições formuladas ao longo da história do pensamento humano foi a de Boécio (apud MONDIM, 2003, p. 292), que a definiu como “ […] rationalis naturae individua substantia” (uma substância individual de natureza racional).
Portanto, o conceito de pessoa humana surgiu para designar o indivíduo da espécie humana. no entanto, o facto de o mesmo ter surgido para designar o indivíduo da espécie humana, não significa que a auto-consciência, o senso moral e tantos outros elementos não façam parte do mesmo, pelo contrário, este conceito abarca todos estes elementos, porque, designa o indivíduo da espécie humana, cujos elementos são inerentes.
Deste modo, conceber a pessoa humana exclusivamente como auto-consciente, racional e possuidor de um senso moral é reduzi-la a alguns dos seus aspectos. Por exemplo, o elefante, não é a sua tromba, nem sequer a sua cauda, mas sim o todo, corpo, instinto e etc.
Portanto, o ser humano resultante da concepção é uma pessoa humana, porque, possui a natureza humana e a individualidade, por conseguinte, possui a racionalidade, a auto-consciência e reúne todos elementos constitutivos da pessoa humana, mas em potência activa.
Segundo o professor Burity da Silva na sua obra, Teoria Geral do Direito Civil, reconhece que a pessoa é um sujeito de direitos (SILVA, 2004, p. 95). Logo, o novo ser humano que surge por meio da concepção possui direitos.
Uma vez que chegamos à esta conclusão, é importante questionarmos: o que é o direito? Será que é algo outorgado pelo Estado? Será que é algo que possuímos justamente? Ou é algo determinado por lei?
4. O que é o direito?
Actualmente o direito é geralmente concebido exclusivamente segundo a perspectiva positivista, isto é, como um conjunto de leis, ou melhor, legislação editada e promulgada pelo Estado, por isso, amiúde ouvimos nas aulas de Direito, ouvimos muitos juristas contemporâneos, encontramos nos manuais de Direito, o direito a ser definido como um “[…] conjunto de normas imperativas [ou jurídicas] que regulam a vida em sociedade, dotadas de coercibilidade quanto à sua observância.” (GARCIA, 2015, [s.p.]). Geralmente esta definição é sustentada pelo argumento segundo o qual, “Os seres humanos, por viverem em sociedade, necessitam de regras e princípios que possibilitem o convívio entre as pessoas, permitindo a evolução, a harmonia e a paz nas relações sociais.” (GARCIA, 2015, [s.p.]).
No entanto, o fundador da Filosofia do Direito, Aristóteles, e os fundadores da ciência do direito, os Romanos, entendiam o direito sobretudo como a coisa justa, ou seja, uma coisa que pertence justamente à determinada pessoa (OLIVEIRA, 2012, [s.p.]), que pode ser material ou imaterial, como por exemplo, o corpo da Sra. Fátima, o sapatinho da menina Gabriela, o título de doutor do Sr. Amaral. Estas coisas reais é que são direito, por isso, para os Romanos ‘‘[…] não se deve deduzir o direito da regra, é do direito, que existe, que será extraída a regra […]’’ (Digesto, De regulis júris 50.17.1 apud VILLEY, 2008, p. 93), ou seja, por exemplo, a vida é um direito, não porque existe a lei que determina que toda pessoa humana tem direito à vida, mas porque, a vida é algo real, cujo proprietário é a pessoa, por isso, existe a lei que reconhece que a vida é um direito.
Parece-nos adequada tal perspectiva, porque, os factos a comprovam. Pois, basta lançarmos o nosso olhar à realidade infantil. Entre as crianças, geralmente quando uma retira o brinquedo da outra, a outra diz: dê-me o meu brinquedo. Isto demonstra que as crianças têm consciência de que possuem coisas (direito) e quando as mesmas lhes são retiradas por outrem, eles compreendem que há uma “violação do seu direito”, mas elas não necessitam de leis positivas para compreender isto. Mas se porventura, num determinado Estado se promulgar uma lei que proíba os cidadãos de constituírem famílias, certamente a mesma será contestada. E porquê é que será contestada?
Portanto, é indubitável que o direito não é simplesmente a lei, por isso, conceber o direito exclusivamente como a legislação editada e promulgada pelo Estado é uma perspectiva reducionista, como diz Santos Justo, ‘‘[…] não têm faltado definições [de direito] desde as mais modernas (que o reduzem a um conjunto de normas dotadas de coercibilidade […] ” (JUSTO, 2012, p. 30). Por conseguinte, devemos concebê-lo numa perspectiva mais ampla e íntegra, isto é, concebê-lo principalmente como a coisa justa, ou seja, a coisa que pertence justamente à uma determinada pessoa, e depois como a lei e tanto mais, mas de forma harmoniosa.
Portanto, a vida do novo ser é seu direito, independentemente de ser ou não reconhecido pela legislação Estatal.
5. Conflito latente entre o artigo 66.º do Código Civil Angolano e o artigo 156.º do Código Penal Angolano
Parece-nos importante anexar ao nosso itinerário racional uma breve reflexão sobre as normas angolanas referentes ao aborto.
O Estado angolano como qualquer outro Estado democrático de direito reconhece que a vida é um direito fundamental da pessoa humana. Na Constituição da República, no seu artigo 30.º está consagrado que ‘‘O Estado respeita e protege a vida da pessoa humana, que é inviolável.’’
O nosso Código Civil, no número 1 e 2 do artigo 66.º, especifica que as pessoas que o Estado respeita e protege a vida são as que nascem completas com vida. Eis o que estabelece:
‘‘A personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida.’’
‘‘Os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento.’’
O Código Penal no seu artigo 156.º penaliza o aborto, mas abre excepção à algumas circunstâncias em que tal pode ocorrer (consultar o artigo 158.º.).
No entanto, suscita-nos as seguintes interrogações: se a personalidade jurídica se adquire no momento do nascimento completo e com vida e os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento, porquê é que o aborto é penalizado? Quem aborta atenta contra o direito de quem? Se a pessoa é um sujeito de direitos e o nascituro não possui personalidade jurídica, será que ele é considerado pessoa humana?
Parece-nos haver alguma incoerência do ponto de vista lógico formal entre o artigo 66.º do Código Civil e o artigo 156.º do Código Penal, porque, o reconhecimento dos direitos dos nascituros por parte da lei depende do nascimento destes completos e com vida, ou seja, a lei não reconhece qualquer direito ao nascituro antes do mesmo nascer completo e com vida. Portanto, parece-nos não haver razões jurídicas para se penalizar o aborto, porque, a lei não reconhece a vida como direito do nascituro, por conseguinte, quem atenta contra ela, atenta simplesmente contra a vida em si e não contra a vida enquanto um direito do nascituro, uma vez que o proprietário não é reconhecido.
Portanto, pensamos que para se continuar a penalizar o aborto, seja parcial ou integralmente, é importante reformularmos o artigo 66.º do Código Civil, reconhecendo a personalidade jurídica do nascituro (feto).
6. Métodos contraceptivos vs artigo 156.º do Código penal
Pensamos ser também importante reflectirmos brevemente sobre a aceitação do uso de alguns métodos contraceptivos em Angola, uma vez que o aborto é penalizado.
Muitos dos métodos designados contraceptivos têm uma função abortiva. Em Angola, comercializa-se, incentiva-se e disponibiliza-se estes métodos, inclusive por meio de instituições públicas. A existência deste facto pode ser comprovada na obra de Natércia de Almeida, intitulada Educação sexual dos jovens e prevenção da gravidez não desejada[3], eis a passagem:
A rede pública de saúde em Angola disponibiliza gratuitamente os seguintes dispositivos ou métodos contraceptivos: preservativo masculino, dispositivo intra-uterino ou DIU, pílulas anticoncepcionais combinadas (Microginon), minipílulas de progesterona não combinadas ideais para mulheres que amamentam (Microlute), contraceptivos hormonal injectável por via muscular (Depo-provera), pílula anticoncepcional de emergência ou do dia seguinte, implante subcutâneo (por baixo da pele ou chip, Jadelle), laqueação de trompas e vasectomia. (ALMEIDA, 2015, pp. 73-74).
No entanto, é importante esclarecermos que nem todos os métodos supracitados são abortivos, os que se pode demonstrar inequivocamente que o são de facto, são: a pílula anticoncepcional de emergência, também conhecida como pílula do dia seguinte e os dispositivos intra-uterinos (DIU).
A função abortiva da pílula do dia seguinte talvez possa ser demonstrada sem se recorrer necessariamente à ciência, basta reflectirmos: se o objectivo é impedir que haja concepção, significa que deve ser tomada antes do acto sexual, e porquê é que é tomada depois?
Segundo a ciência, a pílula do dia seguinte contêm estrogénios e progestagénio, a mesma aumenta a quantidade de hormonas e altera o estado natural do endométrio, tornando-o incapaz de permitir a implantação do novo ser humano (PADILLA; SILVA, 2001, p. 86).
Quanto aos dispositivos intra-uterinos, segundo Natércia de Almeida ‘‘são objectos colocados dentro do útero com o objectivo de evitar a implantação do embrião.’’ (ALMEIDA, 2015, p. 69). O casal Kiura e Regina Gitau esclarecem inequivocamente a função abortiva dos mesmos, explicando:
Os livros sobre contraceptivos insistem em que os DIU agem para prevenir a concepção, ou seja, impedir que os espermatozóides atinjam o óvulo. Se for este o caso, então estes dispositivos são menos fiáveis que os métodos de barreira mecânica, pela simples razão de que são mais pequenos e de maneira nenhuma ocupam a totalidade do espaço uterino!
A realidade é que os DIU impedem a implantação tornando o endométrio hostil à implantação. Têm este efeito, iniciando uma reacção inflamatória, dentro do endométrio, que, por sua vez, encoraja a fagocitose. Assim, o ovo fertilizado não está apenas impedido de se implantar, mas torna-se mais facilmente objecto de fagocitose. (KIURA; GITAU; KIURA, 2014, pp. 194-195).
Portanto, o acto de comercialização, incentivo e disponibilização da pílula anticoncepcional de emergência e dos dispositivos intra-uterinos (DIU) viola o artigo 156.º do Código Penal.
Conclusão
Neste itinerário racional procuramos reflectir se a despenalização do aborto constitui ou não a legalização de um crime. Pois, há quem defenda que abortar equivale a assassinar um ser humano como nós. Tivemos como ponto de partida a identificação do início da vida humana. Compreendemos que a mesma inicia no momento da concepção e que o ser que surge por meio desta possui vida humana e consequentemente é humano, também compreendemos que o mesmo é uma pessoa humana, porque, é um indivíduo da espécie humana e por conseguinte, é um sujeito de direitos. Reflectimos também sobre o conceito de direito, e entendemos que o mesmo não é simplesmente a legislação editada e promulgada pelo Estado, mas é sobretudo e não só, a coisa que pertence justamente à determinada pessoa. Portanto, a vida é direito do novo ser que surge por meio da concepção, independentemente de ser ou não reconhecido pela legislação estatal.
Por fim, analisamos brevemente a problemática do aborto na ordem jurídica angolana, identificamos um conflito entre o artigo 66.º do Código Civil e o artigo 156.º do Código Penal, no sentido de que a lei não reconhece os direitos do nascituro, mas criminaliza o aborto. Identificamos também que a prática de disponibilização e permissão do uso de alguns métodos abortivos como a pílula anticoncepcional de emergência e os dispositivos intra-uterinos (DIU) viola o artigo 156º do Código Penal.
Feito este exercício absolutamente racional, prescindido de moralismos, crenças, cultura, filiação partidária, posições de esquerda ou de direita, chegamos a compreender que despenalizar o aborto é de facto legalizar um crime, porque, abortar equivale realmente ao acto de assassinar um ser humano como nós, ou melhor, como escreveu Schwarz, abortar é “ […] cortar a criança aos pedaços, queimar a sua pele […]”(GALVÃO, 2005, p. 66). Portanto, o aborto é uma violação de um bem jurídico fundamental, que é a vida. Pois, o aborto é um mal jurídico em si. No entanto, somos de opinião de que não obstante a prática do aborto ser objectivamente um ilícito penal, devemos continuar a reflectir sobre a sua penalização e despenalização, mas de forma séria, profunda e essencialmente humanista.
Todavia, a despenalização do aborto em si é objectivamente um erro humano, que se justifica apenas pelo facto de sermos imperfeitos e ilimitados. Pois, esta questão transcende-nos do ponto de vista existencial.
[1] Licenciado em Filosofia pelo Instituto Superior Dom Bosco, unidade orgânica da Universidade Católica de Angola. Tel: 927 101 470 / hermenegildosamuelsamuel95@gmail.com
[2]Orientador Científico e Co-autor, Mestre em Filosofia, Doutor em Sociologia pela Universidade de Strasbourg, França, docente Universitário, joaquimrescova@gmail.com
[3] Esta obra foi recomendada pelo Ministério da Educação para fazer parte das bibliografias essenciais das diferentes instituições de ensino, sobretudo do ensino secundário.