Da constitucionalidade da Lei Maria da Penha e da necessidade de sua efetiva implementação

Por Lindinalva Rodrigues Corrêa | 05/12/2009 | Direito

Da constitucionalidade da Lei Maria da Penha e da necessidade de sua efetiva implementação

"Uma menina brinca com duas bonecas e briga para que fiquem quietas. Ela também parece uma boneca porque é linda e boazinha e porque não incomoda ninguém" [1].

Ao entrar em vigor no dia 22 de Setembro de 2006, a Lei 11.340/ 2006, apelidada de "Lei Maria da Penha", constatou-se uma série de açodadas e injustas críticas em desfavor da mesma, que na verdade confirmaram a própria razão de existir da norma, ou seja, a evidente desigualdade material entre homens e mulheres, que contrasta com a igualdade formal que se busca alcançar por meio desta Lei, razão da amplitude das ações previstas, que provocaram como reação imediata, paralelo à comemoração das mulheres, o desassossego de muitos, sobretudo àqueles que consideravam a violência doméstica e familiar contra a mulher, como uma questão privada, adstrita ao reduto doméstico ou familiar, assim como se,de repente, todas as mazelas que ocorrem entre as paredes dos domicílios familiares pudessem ser reveladas... Como se, de um momento a outro, a casa deixasse de ser um asilo tão inviolável...

O Estado de Mato Grosso, por meio da feliz iniciativa da Desembargadora Shelma Lombardi de Kato, foi um dos primeiros a colocar em prática a Lei 11.340/2006, e após a instalação das Varas e Promotorias Especializadas de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher na capital, passamos a atuar nesta área e nos deparamos com um assombroso mundo oculto pelas paredes solidamente edificadas pela "aparência", vergonha e medo, daquilo que estranhos a tais fatos poderiam chamar de "lar, doce, lar".

Nossa rotina é um frenético e extenuante contato com situações cruéis, absurdas e desumanas, que evidenciam as agruras de famílias inteiras em face da violência doméstica e familiar perpetradas quase sempre contra mulheres e crianças, as partes mais frágeis de uma relação histórica de domínio masculino, que encontra na virilidade e força, um instrumento de poder sobre a fêmea e aqueles que consideram mais fracos ou a ele subordinados, aonde reiteradamente vem descarregando suas frustrações, numa relação doentia de amor e ódio e, sobretudo de superior para inferior.

A Lei 11.340/2006, na sua área de atuação, marca sem dúvida o início de um novo tempo, no qual as mulheres oprimidas por toda ordem de violência (física, moral, psicológica e patrimonial), poderão finalmente ter com quem contar, pois verão o seu caso, antes tido como irrelevante pelo direito penal (crime de menor potencial ofensivo), tratado com o devido respeito e consideração pelos operadores jurídicos, resgatando-lhes a dignidade.

A violência praticada contra as mulheres é conhecida como violência de gênero porque se relaciona à condição de subordinação da mulher na sociedade, que constitui na razão implícita do número estarrecedor de casos de agressões físicas, sexuais, psicológicas, morais e econômicas (patrimoniais), perpetrados em desfavor de mulheres, revelando a incontestável desigualdade de poder entre homens e mulheres, sobretudo nas relações domésticas e familiares.

Dados estarrecedores da OMS (Organização Mundial de Saúde), inserto no relatório divulgado pela Anistia Internacional em 05/03/2004, apontam que 70% dos assassinatos de mulheres no mundo são cometidos por homens com quem elas tinham ou tiveram algum envolvimento amoroso e segundo investigação feita pela ONG Human Rights Watch, de cada 100 mulheres brasileiras assassinadas, 70 o são no âmbito de suas relações domésticas.[2]

Tendo concluído o relatório do Senado Federal que: "dentre todos os tipos de violência contra a mulher, existentes no mundo, aquela praticada no ambiente familiar é uma das mais cruéis e perversas. O lar, identificado como local acolhedor e de conforto passa a ser, nestes casos, um ambiente de perigo contínuo que resulta num estado de medo e ansiedade permanentes. Envolta no emaranhado de emoções e relações afetivas, a violência doméstica contra a mulher se mantém, até hoje, como uma sombra em nossa sociedade".[3]

Segundo a Sociedade Mundial de Vitimologia (Holanda), que pesquisou a violência doméstica em 138 mil mulheres de 54 países, 23% das mulheres brasileiras estão sujeitas à violência doméstica.A cada 4 minutos, uma mulher é agredida em seu próprio lar por uma pessoa com quem mantém relação de afeto. As estatísticas disponíveis e os registros nas delegacias especializadas de crimes contra a mulher demonstram que 70% dos incidentes acontecem dentro de casa e que o agressor é o próprio marido ou companheiro.Mais de 40% das violências resultam em lesões corporais graves decorrentes de socos, tapas, chutes, amarramentos, queimaduras, espancamentos e estrangulamentos.O Brasil é o país que mais sofre com a violência doméstica, perdendo cerca de 10,5% do seu PIB em decorrência desse grave problema

O efeito da violência doméstica e familiar contra a mulher, decorrentes de maus tratos, humilhações, agressões físicas, sexuais, morais, patrimoniais e psicológicas, é, sem dúvida, devastador para sua auto-estima, sem falar no medo vivenciado cotidianamente, temor aterrorizante causador de insegurança e instabilidade, agravados pelo fato das vítimas nunca saberem a razão capaz de desencadear nova fúria dos agressores e na vergonha que passam diante de familiares, vizinhos, amigos e conhecidos, que provocam ansiedade, depressão, dores crônicas, dentre outras moléstias, o que requer a intervenção do Estado, por meio de efetivação de políticas públicas adequadas, com mecanismos de discriminação positiva ou de ações afirmativas, capazes de reduzir a tragédia da violência de gênero, fim a que se destina a Lei 11.340/2006.

Até a promulgação desta Lei, que acarretou um acalorado debate sobre o tema, a violência de gênero sofria de uma espécie de "invisibilidade", difundida pela idéia nefasta de que a violência entre parceiros íntimos ou pessoas da mesma família, constituía um problema privado, que só aos envolvidos interessava o que era perfeitamente possível pelas leis descriminalizadoras vigentes até então, que efetivamente não puniam os agressores, nem tratavam as vítimas, permitindo a propagação da violência de gênero.

Aqueles que ignoram a subjugação feminina aos ditames masculinos e o quanto este desequilíbrio é capaz de gerar conflitos, chegaram até a mencionar uma possível inconstitucionalidade da Lei 11.340/2006, o que de forma alguma possui argumentos de sustentabilidade, já que a Lei surgiu de uma antiga exigência de Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil, que se destinam a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, como a Convenção da Organização das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, que conta hoje com 165 Estados signatários, sendo que o Brasil a ratificou em 1984[4], atendendo a reivindicações do movimento feminista, a partir da primeira Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada no México, em 1975.

A Convenção se fundamenta na dupla obrigação de eliminar a discriminação e de assegurar a igualdade. Logo, a Convenção consagra duas tutelas diversas: a repressiva ou punitiva, que proíbe a discriminação e a positiva, destinada à promoção da igualdade, objetivando além de erradicar a discriminação contra a mulher e as suas causas, também estimular estratégias de promoção da igualdade entre homens e mulheres, com políticas compensatórias, visando à aceleração da igualdade enquanto processo, mediante a adoção de medidas afirmativas, como as previstas na Lei Maria da Penha, que se consubstanciam como medidas especiais e transitórias, destinadas ao combate das desigualdades que aflige as mulheres de forma geral.

Assim, conclui-se que, para garantia da igualdade não basta a proibição da ação discriminatória, efetuada por meio da legislação repressiva, sendo essenciais a implementação de políticas públicas capazes de incentivar a inclusão social dos grupos reconhecidamente vulneráveis.

A Convenção consagra também a urgência de se erradicar todas as formas de discriminação contra as mulheres, a fim de que se garanta o pleno exercício de seus direitos civis e políticos, como também de seus direitos sociais, econômicos e culturais e ao ratificar a Convenção, os Estados Signatários assumiram o compromisso de, progressivamente, acabarem com todas as formas de discriminação, no que diz respeito ao gênero, assegurando efetiva igualdade entre os sexos.

Segundo Andrew Byrnes: "A Convenção em si mesma contém diferentes perspectivas sobre as causas de opressão contra as mulheres e as medidas necessárias para enfrentá-las. Ela impõe a obrigação de assegurar que as mulheres tenham uma igualdade formal perante a lei e ela reconhece que medidas temporárias de ação afirmativa são necessárias em muitos casos, se as garantias de igualdade formal devem se transformar em realidade. Inúmeras previsões da Convenção também incorporam uma preocupação de que os direitos reprodutivos das mulheres devem estar sob o controle delas próprias, e que o Estado deve assegurar que as escolhas das mulheres não sejam feitas sob coerção e não sejam a elas prejudiciais, no que se refere ao acesso às oportunidades sociais e econômicas. A Convenção também reconhece que há violações, às quais mulheres são submetidas, que necessitam ser eliminadas (como estupro, assédio sexual, exploração sexual e outras formas de violência contra as mulheres). Em suma, a Convenção reflete a visão de que as mulheres são titulares de todos os direitos e oportunidades que os homens podem exercer; adicionalmente, as habilidades e necessidades que decorrem de diferenças biológicas entre os gêneros devem também ser reconhecidas e ajustadas, mas sem eliminar da titularidade das mulheres a igualdade de direitos e oportunidades." [5]

No âmbito do sistema regional da Organização dos Estados Americanos – OEA, de proteção aos direitos humanos, as mulheres brasileiras dispõem de uma Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida internamente como Convenção de Belém do Pará, de 1994, ratificada pelo Brasil em 1995 que estabelece que toda mulher possui o direito de viver livre da violência e de qualquer forma de discriminação. (artigo 6º)

Ao ratificar a Convenção de Belém do Pará, o Brasil se comprometeu a incluir em sua legislação interna normas penais, civis e administrativas, assim como as de outra natureza que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher e adotar as medidas administrativas apropriadas para a efetivação destas medidas (exatamente como as previstas pela Lei 11.340); tomar todas as medidas apropriadas, incluindo medidas do tipo legislativo, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes, ou para modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência ou a tolerância da violência contra a mulher (razão pela qual foi vedada a aplicação da Lei 9.099/1995, nos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do artigo 41 da Lei em comento); estabelecer procedimentos jurídicos adequados e eficazes para a mulher que tenha sido submetida à violência, dentre os quais as adequadas medidas de proteção efetivas (previstas no artigo 18 e outros da Lei Maria da Penha); além de estabelecer os mecanismos judiciais e administrativos necessários para assegurar que a mulher vítima da violência efetivo acessoao ressarcimento dosdanos que porventura lhe forem causados[6].

O parágrafo 2.º, do art. 5.º, da Constituição Federal de 1988, dispôs que os direitos e garantias nela expressos: "não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte", que dá margem à entrada no rol dos direitos e garantias consagrados pela Constituição Federal, de outros direitos e garantias provenientes dos tratados internacionais, revelando o caráter não taxativo do elenco constitucional dos direitos fundamentais, admitindo expressamente que tratados internacionais de proteção aos direitos humanos ingressem no ordenamento jurídico brasileiro, inclusive em idêntico nível com o das normas constitucionais vigentes.

Flávia Piovesan afirma que: "relativamente aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, a Constituição brasileira de 1988, nos termos do art. 5º, § 1º, acolhe a sistemática da incorporação automática dos tratados, o que reflete a adoção da concepção monista. Ademais, como apreciado no tópico, a Carta de 1988 confere aos tratados de direitos humanos o status de norma constitucional, por força do art. 5º, § 2º.[7]

Talvez para que não houvesse qualquer dúvida sobre o caráter dos tratados e convenções que subsidiaram a promulgação da Lei 11.340/2006, conste expressamente do seu artigo 6º que: "A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos", com status de norma constitucional, portanto.

Por sua vez, o art. 226 da Constituição Federal estabelece: A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado, enquanto seu § 8º determina que o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Assim, estudando atentamente a luta das mulheres contra a desigualdade de gênero que desencadeia a violência doméstica e familiar, somos obrigados a concluir que a promulgação da Lei 11.340/2006, ainda que tardia (já que o Brasil é o 18º país da América Latina a efetivar uma lei com tais características), foi elaborada para atender aos ditames constitucionais vigentes, tratando-se de medida de ação afirmativa, que visa enfrentar com ações adequadas a questão, tanto servindo para a punição do agressor, como para tratar a vítima e seus familiares, inclusive o próprio agressor, a fim de se buscar e efetiva diminuição da desigualdade e da violência em si.

O fato é que doravante, não se pode mais admitir qualquer omissão dos entes públicos, que devem intervir em defesa das vítimas, implantando de fato, em todos os seus termos, a Lei Maria da Penha, que impõe a necessidade de se criar urgentemente e com toda estrutura exigida, Juizados ou Varas Especializadas de Defesa da Mulher contra a Violência Doméstica e Familiar em todas as unidades da federação, a fim de se propiciar à mulher que vive situação de violência e seus familiares, toda assistência formada pela rede de apoio que é exigida pela Norma.

Após longos anos em que fora objeto de discussões intensas, constituindo um verdadeiro instrumento de cidadania, ciente desta perversa realidade, a Lei em comento surge em nosso ordenamento jurídico como uma dádiva há tempos pleiteada, não se trata de uma lei comum ou de mais uma lei que as autoridades e o povo irão decidir se "pega" ou se não "pega", pois esta é uma Lei que tem história, possui razão de existir, é feita de muita luta e garra, constituindo um mecanismo de discriminação positiva, tal como o Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto do Idoso e outros, elaborado para proteger as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, em perfeita consonância com os dispositivos constitucionais vigentes, não se podendo, nem para fins de debate, aceitar a pecha de inconstitucionalidade, já que não podemos analisá-la isoladamente, sem recorrer ao contexto histórico e sem ignorar que a violência de gênero faz parte de nossa cultura, posto que os superiores, via de regra, não são vítimas de agressão. Logo, conclui-se que, historicamente, as mulheres são vistas por todos (inclusive por outras mulheres e por si próprias), como seres inferiores em relação aos homens, mentalidade que precisa mudar.

Cabe a nós, operadores do direito em geral, o desassombro de fazer a verdadeira justiça, aplicando a Lei Maria da Penha, procurando extirpar de nossa vida preconceitos e estereótipos, vez que invariavelmente entendemos como indiscutível a punição efetiva tão somente dos infratores patrimoniais, havendo um consenso acerca da necessidade de exemplar punição de autores de crimes contra o patrimônio, admitindo-se que eles colocam em risco a tranqüilidade pública, esquecendo-se completamente que pesquisas e estudos revelam as conseqüências trágicas da violência doméstica e familiar para as crianças e adolescentes que a sofrem ou presenciam, que, quando adultos, tendem a repetir esse padrão de comportamento, razão pela qual, ao nos omitirmos, estaremos potencialmente criando delinqüentes, para em tempo oportuno, podermos puni-los.

Assim, sendo a Lei em comento uma norma de discriminação positiva ou, como preferem alguns, de ação afirmativa, é certo que a Constituição Federal, não só não veda a adoção de medidas nesse sentido, mas, antes disso, as favorece, já que no seu preâmbulo, a nossa Lei Maior estabelece como objetivo da Assembléia Nacional Constituinte a instituição de um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais, visando alcançar-se o ideal de igualdade e justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

O ordenamento jurídico brasileiro não só permite ao Estado promover as políticas das ações afirmativas, mas, antes, as impõem, a fim de que sejam alcançados os direitos fundamentais baseados no artigo 3º da Constituição Federal, pois na sua redação temos o emprego de verbos como "erradicar, construir, reduzir e promover", devendo o ente público desenvolver um comportamento ativo, positivo e eficaz.

De outra parte, o art. 5º, caput, da Constituição Federal, analisado em conjunto com o art. 3º, ao afirmar que todos são iguais perante a lei, estabelece que: o Estado garantirá a todos o direito à igualdade, sem ignorar as desigualdades existentes, que motivam, dentre outras medidas, a criação das normas de ação afirmativa, visando o alcance do ideal de igualdade efetivo idealizado pelo legislador constituinte ao descrevê-lo formalmente.

Muito já se disse sobre a desigualdade material existente entre homens e mulheres, cujos dados estatísticos demonstrados no tópico anterior, certamente serão capazes de convencer até os mais incrédulos que porventura se imaginem vivendo em um país em tal igualdade seja real.

E, a propósito do princípio da isonomia, ensina CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO: "Em verdade, o que se tem de indagar para concluir se uma norma desatende a igualdade ou se convive bem com ela é o seguinte: se o tratamento diverso outorgado a uns for 'justificável', por existir uma 'correlação lógica' entre o 'fator de discrímen' tomado em conta e o regramento que se lhe deu a norma ou a conduta são compatíveis com o princípio da igualdade, se, pelo contrário, inexistir esta relação de congruência lógica ou – o que ainda seria mais flagrante – se nem ao menos houvesse um fator de discrímen identificável, a norma ou a conduta serão incompatíveis com o princípio da igualdade." [8].

E mais:

"...sempre que a correlação lógica entre o fator de discrímen e o correspondente tratamento encartar-se na mesma linha de valores reconhecidos pela Constituição, a disparidade professada pela norma exibir-se-á como esplendorosamente ajustada ao preceito isonômico. Será fácil, pois, reconhecer-lhe a presença em lei que, 'exempli gratia', isente do pagamento de imposto de importação automóvel hidramático para uso de paraplégico."[9]

O igual tratamento pela lei, para ser legítimo, pressupõe uma igualdade de fato preexistente. Constatando-se que não há igualdade de fato entre homens e mulheres, o que fora amplamente comprovado pelas estatísticas da violência de gênero, tratarem-se desiguais como se iguais fossem, é que constituiria a verdadeira inconstitucionalidade. Assim, considerando que nossa Constituição Federal é analítica, além de seus princípios estatuídos como ideais a serem alcançados, previu em seu próprio texto medidas de ação afirmativa, sem prejuízo de outras evidentemente, como é o caso artigo 37, VIII, que dispôs que lei infraconstitucional trataria da reserva percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definiria os critérios de admissão dessas pessoas, o que efetivamente foi efetuado posteriormente pela Lei n.º 8.112/1990.

Também a legislação eleitoral vem adotando medida de ação afirmativa em favor do sexo feminino, com leis estabelecendo que um percentual mínimo das vagas de cada partido ou coligação deverá ser preenchido por candidaturas de mulheres, buscando um relativo equilíbrio entre os gêneros no que diz respeito às candidaturas parlamentares, assim como existem normas que fixam percentuais a serem ocupados por essas minorias em serviços públicos ou em universidades públicas.

FÁBIO KONDER COMPARATO, ao dispor sobre o tema, nos traz elucidações muito importantes e adequadas:

"(...) objeto da isonomia é a igualdade de normas, enquanto que as chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade das condições sociais. No primeiro caso, a igualdade é um pressuposto da aplicação concreta da lei; ao passo que, no segundo, ela é uma meta a ser alcançada, não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programas de ação estatal. Não há, pois, por que se pretender apagar ou escamotear as desigualdades sociais de fato entre os homens, com a aplicação da isonomia. Como bem afirmou Rousseau, 'sob os maus governos' essa igualdade é aparente e ilusória; ou seja, é meramente formal, como disseram ao depois os marxistas. E isto, porque a abolição dos estamentos e a submissão de todos à lei votada por todos, ou por seus representantes legítimos, não significa, por si só, a equiparação de fortunas ou modos de vida. Os 'maus governos' a que aludiu o autor do 'Contrato Social' são, exatamente, os que procuram justificar sua omissão no campo das desigualdades sociais com o princípio da igualdade de posição jurídica individual; quando uma coisa não se confunde nem dispensa a outra." [10]

Leda Maria Hermann, ao comentar o artigo 1º desta Lei, ressalta:

"A proteção da mulher, preconizada na Lei Maria da Penha, decorre da constatação de sua condição ( ainda) hipossuficiente no contexto familiar, fruto da cultura patriarcal que facilita sua vitimação em situações de violência doméstica, tornando necessária a intervenção do Estado em seu favor , no sentido de proporcionar meios e mecanismos para o reequilíbrio das relações de poder imanente ao âmbito doméstica e familiar.

Reconhecer a condição hipossuficiente da mulher vítima de violência doméstica e/ou familiar não implica invalidar sua capacidade de reger a própria vida e administrar os próprios conflitos. Trata-se de garantir a intervenção estatal positiva, voltada à sua proteção e não à sua tutela "[11].

Assim, ciente da desigualdade evidente entre homens e mulheres, historicamente existente em nosso país e no mundo, em mais ou menos intensidade, diante de todo o exposto, conclui-se que a Lei 11.340/2006 é claramente constitucional, constituindo medida de ação afirmativa, que visa reequilibrar as desigualdades de gênero, com o fim de apenar o agressor efetivamente e oferecer tratamento adequado para a vítima e toda a família, incluindo o autor da violência.

Lindinalva Rodrigues Corrêa

Promotora de Justiça



[1]Do livro Adelante, de J.H. Figueira, que foi livro escolar no Uruguai até poucos anos atrás, segundo Eduardo Galeano, A Cultura do Terror. Mulheres, L&PM, 2000, p. 180.

[2]Human Rights Watch, abril de 1997.Injustiça Criminal x Violência contra a Mulher no Brasil. Número de catálogo, Library of Congress: 97-71949

[3]Senado Federal. Subsecretaria de Pesquisa e Opinião Pública. Violência Doméstica contra Mulher. DataSenado 08.03.2005. grifo nosso.

[4]O Brasil ratificou com reservas a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher em 1º de fevereiro de 1984, o tendo ratificado plenamente em 1994. Em 13 de março de 2001, o Brasil ratificou o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, que criou dois mecanismos de monitoramento: O direito de petição, que permite o encaminhamento de denúncias de violação de direitos e o procedimento investigativo, que habilita o Comitê a averiguar a existência de grave e sistemática violação dos direitos humanos das mulheres.

 

[5]BYRNES, Andrew. The "other" human rights treaty body: the work of the Committee on the Elimination of Discrimination against Women. In: Yale Journal of International Law, v. 14, 1989.Grifamos.

[6]Artigo 7, inciso c - incluir em sua legislação interna normas penais, civis e administrativas, assim como as de outra natureza que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra as mulheres e adotar as medidas administrativas apropriadas que venham ao caso; inciso e - tomar as medidas apropriadas, incluindo medidas de tipo legislativo, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes, ou para modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência ou a tolerância da violência contra as mulheres.

Artigo 8, inciso d - aplicar os serviços especializados apropriados para o atendimento necessário à mulher objeto de violência, por meio de entidades dos setores público e privado, inclusive abrigos,serviços de orientação para toda a família, quando for o caso, e cuidado e custódia de menores; inciso h - garantir a investigação e recopilação de estatísticas e demais informações pertinentes sobre as causas, conseqüências e freqüência da violência contra as mulheres, com o objetivo de avaliar a eficácia das medidas para prevenir, punir e eliminar a violência contra as mulheres e de formular e aplicar as mudanças que sejam necessárias.

[7]Direito Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limonad, 1996. P. 111.

[8]MELLO, Celso Antônio Bandeira. Princípio da Isonomia: Desequiparações Proibidas e Desequiparações Permitidas, Revista Trimestral de Direito Público, 1/1993, p. 81/82

[9]Cf. ob.cit, p. 83

[10] CARVALHO, José Sérgio, autor (organizador). O principio da igualdade e a escola. Educação, Cidadania e Direitos Humanos, 2004, p.77/78. Grifo nosso.

[11]Cf. ob. cit.p. 83-84. Grifo nosso.