Da Condição Humana
Por Luciano Machado | 02/03/2009 | LiteraturaDizem os estudiosos que o ato de escrever, por mais discreto e cuidadoso que seja, faz com que as pessoas que o praticam acabem desnudando a própria alma e a sua real natureza íntima diante dos leitores; que de suas palavras se deduz, nas entrelinhas, o que são e o que sentem, e que o estudo investigativo de suas obras pode transformá-las de heróis em bandidos, ou vice-versa.
Concordo em parte.Acho que nem sempre o autor ou autora se identificam como pessoas com os conceitos expressos naquilo que escrevem e que brota em geral dos arquivos do inconsciente.Graciliano Ramos, por exemplo, talvez em função do que sofreu, era uma pessoa extremamente irritadiça e rabujenta, tinha poucos amigos, não gostava de crianças nem de vizinhos e tinha como fonte habitual de leitura a Bíblia.E no entanto foi capaz de produzir obras primas como "Infância" e "São Bernardo".
François Villon, poeta francês, tinha a fama de ser ladrão, malfeitor e chefe de quadrilha, mas foi um extraordinário poeta lírico, conforme o depoimento da crítica e o conteúdo de seus próprios livros.
Outros houve cuja vida pessoal foi um inferno, povoada de tragédias e perseguições, como foi o caso deBocage,o mestre dos sonetos e a maior expressão da poesia portuguesa, e Mark Twain, pai da comédia norte-americana, que transmutavam em beleza e humor as suas peripécias e riam de suas próprias amarguras.Balzac viveu em apuros, perseguido por doenças e dívidas, mas só ocasionalmente transferia estes problemas para seus livros, e quando isto acontecia, costumava ser educado e complacente com suas criaturas e respeitoso com o bem estar dos leitores, sem chateá-los ou aborrecê-los.Estes e outros, antes de buscarem adeptos ou cúmplices de seus dramas ou modos de ser, apenas se limitavam a narrar os fatos, às vezes com ironia e sutileza, mas sem nenhum ressentimento ou mágoa pessoal.
Mas às vezes acontece que o autor impregna com cores tão fortes a sua narrativa, que acaba ferindo a suscetibilidade de quem o lê.
Um fato desse gênero ocorreu com uma colega minha de trabalho em relação a Érico Veríssimo, porque, segundo ela, no Incidente em Antares, conseguiu transmitir tão vivamente o cheiro nauseabundo dos mortos que a enojou.E a partir de então, por esse fato isolado, nunca mais quis ler os seus romances, perdendo, com isso, a oportunidade de saborear a leitura de obras tão maravilhosas como Olhai os Lírios do Campo e a trilogiaO Tempo e o Vento.
Alguns leitores taxavamo escritor Jorge Amado de burguês, que se servira de sua condição de delegado socialista nas convenções internacionais para divulgar a sua obra e o seu nome em outros países e continentes, enquanto mantinha relaçoes de cordialidade com a artistocracia e com reconhecidos adversários de sua linha político-partidária.O que, aliás, ele nunca procurou esconder, pois era amigo pessoal de Antonio Carlos Magalhães e de outras figuras da extrema Direita.Entretanto, poucos autores conseguiram retratar com tamanha verossimilhança e empatia os fatos sociais e personagens como em seus romances "Teresa Batista", "Suor" e "Gabriela".
Burgueses ou paradoxais, outros tiveram o seu lado polêmico sem deixar de ser grandes autores, como o integralista Plínio Salgado com a sua "Vida de Jesus"; o gozador e boêmio Vinícius de Morais, com suas magníficas poesias e composições musicais;o escandalosoOscar Wilde, com suas parábolas "O Rouxinol e a Rosa" , "O Príncipe Feliz" e "O Pescador e sua Alma";o dissoluto André Gide que no entanto produziu "A Sinfonia Pastoral".E assim poderíamos citar inúmeros exemplos, nas artes e nas letras, desvinculados da condição humana, escola ou filosofia a que tenham pertencido, pois nenhuma instituição outorga o talento e a genialidade.
Eu me lembro de alguém com quem um dia conversava que me disse que havia deixado de ler certos autores porque descobrira fatos negativos a seu respeito.Entre esses autores estavam alguns norte-americanos bastante conhecidos, como o poeta Edgar Allan Poe, o dramaturgo Tennessee Williams e o romancista Ernest Hemingway.O primeiro por ser um alcoólatra, o segundo por sua desregrada vida pessoal e o terceiro por serum violento neurótico de guerra que, além de extravasar os seus instintos sanguinários no boxe, na caça e na pesca, tinha cometido o pecado mortal de suicidar-se.
Isso infelizmente acontece quando começamos a endeusar as pessoas e não nos contentamos com o que possam transmitir essencialmente através de sua arte.Precisamos conhecê-las, investigar suas vidas, saber como são e como se comportam e, às vezes,nos decepcionamos.
Um excelente autor ou autora, conforme o revelam em seus textos, às vezes não passam, como pessoas , de indivíduos socialmente intratáveis, por seus hábitos pessoais, por sua irreverência, por sua arrogância, sua vaidade, orgulho ou prepotência; ou então por serem humildes demais, apagados, tímidos, introvertidos e incapazes de entabular ou manter uma boa conversa.
O exercício da arte de escrever, ou de qualquer outra arte, por induzir à reflexão, ao raciocínio e à expressão, deveria com o tempo educar e melhorar as pessoas.Mas isto, infelizmente, devido a uma série de outros fatores, nem sempre acontece.
Luciano Machado