DA COISA JULGADA REBUS SIC STANTIBUS: Uma perspectiva da relativização da coisa julgada

Por Tájara Marina Leite Guimarães | 21/12/2020 | Direito

DA COISA JULGADA REBUS SIC STANTIBUS

Uma perspectiva da relativização da coisa julgada

 

* Tájara Marina Leite Guimarães

 

 

 

 

INTRODUÇÃO.

 

O instituto jurídico da coisa julgada, ao ser preceituado no art. 5°, inciso XXXVI da Constituição Federal brasileira, eleva-se ao grau de garantia fundamental. Este instituto está intimamente ligado ao valor segurança jurídica reconhecido nos estados democráticos de direito, visto que põe fim às discussões dos litígios carentes de prestação jurisdicional.

A coisa julgada vem sendo amplamente questionada devido à constatação de sua relativização e/ou revisão com o fundamento de concretizar a justiça social nas relações jurídicas reguladas por sentenças qualificadas pela coisa julgada.

No presente trabalho visa-se a demonstração da relativização da coisa julgada em face da cláusula implícita das sentenças, ou seja, da cláusula rebus sic stantibus. Para tanto, primeiramente perquirir-se-á acerca do conceito e natureza jurídica da coisa julgada.

Em um segundo momento discorrer-se-á sobre a cláusula rebus sic stantibus e sua relação com as sentenças judiciais. Em seguida realizar-se-á uma investigação doutrinária, objetivando reunir o entendimento dos processualistas em torno da relativização da coisa julgada. Por fim tecerei algumas considerações extraídas deste estudo.

 

CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA DA COISA JULGADA.

O Código de Processo Civil brasileiro define a coisa julgada em seu art. 467, transcreve-se: “Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.”

Dos ensinamentos de Liebman apreende-se que “coisa julgada é a força nova e particular da sentença, já eficaz em si própria, que a desvincula do fluxo dos atos do procedimento, assegura sua duração no tempo e torna incondicionada e indiscutível sua eficácia.”.

A coisa julgada nasce com um fundamento político, qual seja o de que a prestação jurisdicional tem um limite sem o qual não se chegaria a uma certeza importante para a manutenção da paz social. Neste sentido Ernane Fidélis esclarece:

“Acontece que a finalidade da jurisdição é regular casos concretos. Incertas ficariam as relações sociais, com a possibilidade de perpetuação dos litígios, se as decisões jurisdicionais não adquirissem a característica de definitividade”.

 

O processualista anteriormente citado define coisa julgada da seguinte forma:

“a coisa julgada não é nenhum efeito da sentença, já que desta ela não decorre. Nem ficção de verdade, nem fonte de direito material para o caso concreto. É, simplesmente, uma qualidade que, por questão de ordem pública, a sentença adquire: a imutabilidade e a indiscutabilidade”.

 

   A coisa julgada é, portanto, um instituto jurídico processual por meio do qual se confere certa definitividade à sentença, com o intuito de pôr fim aos litígios, dando às partes a certeza da titularidade de um direito questionado judicialmente.

Questão polêmica se dá em torno da natureza jurídica da coisa julgada, observada desde a tradição romana, a qual entendia a coisa julgada como sendo a própria sentença, ou o próprio objeto de litígio definitivamente decidido. O nobre processualista, Vicente Greco Filho, ao analisar a natureza jurídica da coisa julgada expõe:

“A coisa julgada é, entendida por alguns, como o efeito da sentença que a completa, tornando-se imutável e plenamente eficaz, e outros que entendem a coisa julgada como qualidade dos efeitos da sentença ou da própria sentença, a imutabilidade, que não é efeito da sentença nem uma complementação da própria sentença, mas apenas atributo dos efeitos originais do julgado”.

 

O código processual brasileiro recepcionou o entendimento de que a essência da coisa julgada está na qualidade que esta confere à sentença, qual seja a imutabilidade, sendo a coisa julgada o ato do poder público que estabelece a durabilidade do que foi manifestado na relação sobre a qual ocorreu o julgado.

 

 

 

 

CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS.

A teoria da imprevisão fundamenta-se na constatação da existência de fatos incomuns e imprevisíveis que tornem impossível a manutenção daquilo que se estabeleceu numa determinada contratação.

A fonte formal e genérica da coisa julgada rebus sic stantibus no processo civil encontra-se no inciso I do artigo 471 do Código de Processo Civil:

 

“Art. 471. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo:

I – se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;”

 

Sobre a regra citada assim se pronuncia Humberto Theodoro Junior: “Isto se dá naquelas situações de julgamento rebus sic stantibus, como é típico o caso de alimentos. A sentença, baseando-se numa situação atual, tem sua eficácia projetada sobre o futuro. Como os fatos que motivaram o comando duradouro da sentença se podem alterar ou mesmo desaparecer, é claro que a eficácia do julgado não deverá perdurar imutável e intangível.”

Segundo o autor, a ação revisional não se limita a alterar a sentença anterior, mas a obter uma “uma nova sentença para uma situação jurídica nova.”

Com base nos ensinamentos de Liebman, Cândido Rangel Dinamarco é contunde ao asseverar que “a autoridade da coisa julgada material sujeita-se sempre à regra rebus sic stantibus, de modo que, sobrevindo fato novo ‘o juiz, na nova decisão, não altera o julgado anterior, mas, exatamente, para atender a ele, adapta-o ao estado de fatos superveniente.”

Vale ressaltar que o conceito de coisa julgada rebus sic stantibus presente no pensamento de Cândido Rangel Dinamarco é mais amplo que o tradicional, posto que o autor não limita sua presença às situações continuativas e à ocorrência de fatos imprevisíveis – requisitos para a incidência da rebus sic stantibus no direito material -, mas a qualquer fato ou negócio novo que venha a alterar a situação afirmada na sentença, como a transação superveniente.

A respeito da clausula rebus sic stantibus implícita nas sentenças, o eminente ministro do STJ, Teori Albino Zavacki esclarece:

 

“A rigor, como percebeu Calmon de Passos, e como já dizia Liebman, todas as sentenças são proferidas com cláusula rebus sic stantibus. Vale dizer, sempre que a pretensão – seja em ação de conhecimento, seja em ação cautelar – estiver fundada em nova situação de fato ou de direito, o que se terá presente não é a reprodução da ação anterior, mas uma nova ação, já que outro é o fundamento jurídico do pedido. Sob este aspecto, realmente, não haverá qualquer arranhão ao princípio da coisa julgada.”

 

Predomina o entendimento no direito contemporâneo de que a aplicação da clausula rebus sic stantibus é a decorrência lógica da presença de princípios salutares de eqüidade em situação de exceção. Trata-se de uma revisão em virtude de uma alteração anormal e imprevisível que altere sensivelmente as bases sobre as quais se assentou a sentença.

 

A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA.

O instituto da coisa julgada trouxe ao Direito a idéia de, mesmo depois de uma disputa judicial longa, chegamos a definições, pelo menos em tese, imutáveis.

De forma a possibilitar uma nova discussão acerca do que foi anteriormente afirmado pela sentença transitada em julgado, ou seja, possibilitar a relativização da coisa julgada, tem-se o argumento de que a indiscutibilidade da coisa julgada não pode ser sobreposta à realidade, de maneira que se torne viável a revisão da conclusão formada.

São três os princípios a partir dos quais se argumenta a favor da relativização da coisa julgada, quais sejam: o da proporcionalidade, o da legalidade e o da instrumentalidade. Ao examinar-se este último, enfatiza-se que o processo, ao ser vislumbrado em sua dimensão instrumental, apenas terá sentido se o julgamento for pautado pelos ideais de Justiça e estiver adequado à realidade. No que se trata do princípio da legalidade, assevera-se que, uma vez que o poder do Estado deve estar limitado pela lei, não há possibilidade de se pretender conferir a proteção constitucional da coisa julgada a uma sentença que seja completamente alheia ao direito positivo.

Enfim, no que concerne ao princípio da proporcionalidade, acredita-se que diante do fato de que a coisa julgada é apenas um dos valores que gozam de proteção constitucional, não poderia, de tal forma, prevalecer em detrimento de outros valores que desfrutam da mesma proteção a despeito de terem o mesmo grau hierárquico. Ao admitir-se que a coisa julgada pode se chocar com outros princípios dignos da mesma proteção, dá-se vazão ao pensamento de que a coisa julgada pode, também, ceder diante de outro valor que seja, como esta, protegido constitucionalmente.

A respeito da relativização da coisa julgada, Guilherme Marinoni expõe seu entendimento:

“A ‘tese da relativização" contrapõe a coisa julgada material ao valor justiça, mas surpreendentemente não diz o que entende por "justiça" e sequer busca amparo em uma das modernas contribuições da filosofia do direito sobre o tema. Aparentemente parte de uma noção de justiça como senso comum, capaz de ser descoberto por qualquer cidadão médio (l’uomo della strada), o que a torna imprestável ao seu propósito, por sofrer de evidente inconsistência”.

 

No que pese a autoridade do discurso do renomado processualista acima citado, este estudo direciona-se no sentido favorável à relativização da coisa julgada, com parâmetros nos princípios democráticos/constitucionais (equidade e justiça social).

 

CONCLUSÃO

Com o advento da coisa julgada perpetuam-se os efeitos da sentença. Há, no entanto, efeitos que se propagam em situações jurídicas que se modificam com o passar do tempo, causando, se perdurarem os mesmos efeitos, prejuízos irreparáveis aos sujeitos de relações jurídicas que se modificaram por um fato novo, destoando, portanto, da necessária justiça (equidade) garantida a todos que buscam a prestação jurisdicional do Estado.

O prejuízo causado à parte é tamanho que não pode ser admitido ou sanado pelo ordenamento jurídico. A qualquer tempo devem ser, estas sentenças, revisadas, perdendo, portanto, a qualidade de imutabilidade e indiscutibilidade. Impugnar-se-á decisão incompatível com os ditames democráticos observados na Constituição Federal. Este é o pensamento principal do concluído em nosso estudo. Tem-se como linha mestra de raciocínio que devem ser seguidas à risca as regras constitucionais, sempre em busca da verdade real, do direito justo sobre as formas processuais e preclusões.

Extrai-se, deste pensamento, que a sociedade atual exige um regramento no sentido de alterar o dogma da coisa julgada, e ampliá-lo, excepcionalmente, em casos específicos cuidadosamente analisados pelo magistrado evitando o uso dos Recursos Extraordinário e Especial.

O que se propõe é a relativização, a adequação, dos institutos jurídico-processuais, como a coisa julgada, ao momento atual e ao sistema democrático de direito, que privilegia a justiça e a igualdade social em detrimento do dogma da estabilidade do sistema jurídico. A comunidade jurídica deve abrir seu leque de possibilidades e fazer valer os direitos inerentes aos cidadãos.

Com a relativização da coisa julgada, propõe-se resolver o problema, muitas vezes criado pelo apego á lógica jurídica em prejuízo da sociedade. É um antídoto contra injustiças e ingerências, e a favor da sociedade e de seus cidadãos, visto que estes são os titulares do poder soberano do estado democrático, tendo este um poder/dever concedido pelo povo.

 

REFERÊNCIAS.

 

DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2001. 

GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2003 

LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Vol. 3. Tocantins: Intelectus. 

MARINONI, Guilherme. Sobre a chamada "relativização" da coisa julgada material disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5716 

SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil: vol. I: Processo de conhecimento. São Paulo: Saraiva, 2006. 

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2002. 

ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da tutela. 4 ed. São Paulo: saraiva, 2005.

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