DA COISA JULGADA NAS RELAÇÕES JURÍDICAS CONTINUATIVAS: Um diálogo doutrinário sobre a revisão da sentença qualificada pela coisa julgada

Por Tájara Marina Leite Guimarães | 21/12/2020 | Direito

DA COISA JULGADA NAS RELAÇÕES JURÍDICAS CONTINUATIVAS:

Um diálogo doutrinário sobre a revisão da sentença qualificada pela coisa julgada

 

Tájara Marina Leite Guimarães.* 

 

Sumário: 1. Introdução. 2. Conceito de coisa julgada. 3. Relações jurídicas continuativas. 4. O fundamento processual da revisão da sentença. 5. Considerações finais. Referências.   

 

1. INTRODUÇÃO.

O Estado Democrático de Direito tem como um de seus princípios norteadores, a coisa julgada, prevista no art. 5º da Constituição Federal Brasileira, em seu inciso XXXVI: a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

Hodiernamente, a coisa julgada tem recebido ampla atenção dos processualistas, pois indaga-se muito acerca de sua revisão e relativização. Este trabalho apresenta o entendimento de diversos doutrinadores acerca da imutabilidade e indiscutibilidade da sentença, ou seja, da coisa julgada, nas relações jurídicas continuativas, pois, estas relações jurídicas estão sujeitas a variações dos seus elementos constitutivos.

O presente trabalho visa demonstrar o fundamento da revisão da sentença qualificada pela coisa julgada, tendo como base as sentenças que regulam relações continuativas. Para tanto, primeiramente se fará uma conceitualização da coisa julgada a partir dos conceitos coligidos de alguns autores renomados do direito processual moderno evidenciando a importante função da coisa julgada num Estado Democrático de Direito.

Em um segundo momento se demonstrará o que é uma relação jurídica continuativa e suas características. Em seguida, através do estabelecimento de um diálogo doutrinário, abordar-se-á acerca do fundamento processual que dá vazão a revisão da sentença que regulamenta relações jurídicas continuativas. Por fim, realizar-se-á algumas considerações com o objetivo de explicitar os pontos de destaque do trabalho, assim, como evidenciar as implicações e conseqüências observadas neste estudo.    

2. CONCEITO DE COISA JULGADA.

O instituto da coisa julgada surge de uma decisão política. A atividade jurisdicional só pode lograr êxito aos seus objetivos se chegar um momento em que o litígio não possa mais prosseguir. É imprescindível estabelecer-se um limite temporal absoluto, um fim à permissibilidade da discussão e das impugnações. Sem isso, a jurisdição permaneceria indefinidamente aberta à possibilidade de rediscutir-se a decisão judicial, com as óbvias repercussões negativas sobre a segurança nas relações jurídicas.

O Código de Processo Civil brasileiro acerca do conceito de coisa julgada, no art. 467, prescreve: “Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.”   

Ao analisar a coisa julgada o mestre processualista Enrico Tullio Liebman esclarece que a coisa julgada é “a força nova e particular da sentença, já eficaz em si própria, que a desvincula do fluxo dos atos do procedimento, assegura sua duração no tempo e torna incondicionada e indiscutível sua eficácia”. Neste mesmo sentido Ovídio A. Baptista leciona que “a virtude própria de certas sentenças judiciais, que as faz imunes às futuras controvérsias, impedindo que se modifique, ou discuta, num processo subseqüente, aquilo que o juiz tiver declarado como sendo “a lei do caso concreto” denomina-se coisa julgada”.     

A coisa julgada está, intimamente, ligada aos efeitos da sentença como assevera, o ilustre, Vicente Greco Filho: “a coisa julgada é a imutabilidade dos efeitos da sentença ou da própria sentença, que decorre de estarem esgotados os recursos eventualmente cabíveis”. Complementando com a lição de Amaral Santos citado por Humberto Theodoro Júnior a coisa julgada somente se fará “pelo esgotamento dos prazos dos recursos, excluída a possibilidade de nova formulação, é que a sentença, de simples ato do magistrado, passará a ser reconhecida pela ordem jurídica como a emanação da vontade da lei”.

A coisa julgada é, portanto, uma qualidade dos efeitos da sentença, é a imutabilidade da ordem contida no dispositivo da sentença depois de esgotado o prazo para interposição dos recursos.  

 

3. RELAÇÕES JURÍDICAS CONTINUATIVAS.

As relações jurídicas abordadas neste trabalho são aquelas qualificadas como continuativas, e cujos elementos são, por sua própria essência, variáveis nos seus pressupostos de qualidade e de quantidade. Portanto, divergem das relações jurídicas materiais tradicionais, face à invariabilidade destas.

Ao pronunciar-se sobre as relações jurídicas continuativas, o processualista, Ernane Fidélis esclarece que as relações jurídicas continuativas não se esgotam com a decisão final, prosseguem no tempo, como é o caso das relações entre o alimentando e o devedor de alimentos, onde há prestações periódicas.  

As sentenças denominadas dispositivas, e as determinativas decidem as relações jurídicas continuativas subordinando-se a modificações quantos aos pressupostos de qualidade e de quantidade, trazendo de forma implícita a cláusula rebus sic stantibus. Tais sentenças possuem principalmente caráter constitutivo ou mesmo somente declaratório, conforme o caso.

Essas relações continuativas são mutáveis com o passar do tempo, não a sentença em si, posto que imutável, estabelecendo o juiz/interprete o seu livre convencimento conforme a situação de fática ou jurídica observada na época. Enquanto essa situação perdurar, fica mantido o entendimento anterior, mas alterando-se o estado de fato ou de direito, deverá haver, novo julgado adaptado à realidade posterior.

De fato, as sentenças que regulam relações jurídicas continuativas, por conterem implicitamente a cláusula rebus sic stantibus, são passíveis de um processo de integração, adaptando-as, através de um novo pronunciamento judicial, ao estado de fato superveniente. Poder-se-ia entender, equivocadamente, que as sentenças dispositivas não ensejariam à formação da coisa julgada, entretanto, o que predomina na doutrina é o entendimento de que há a formação de coisa julgada material, sendo errônea a tese de que as sentenças prolatadas rebus sic stantibus, visto que sujeitas ao contido inc. I, do art. 471 CPC, não fazem coisa julgada material. Se assim fosse, de pronto ao encerramento do processo respectivo poderia a parte interessada iniciar outro para obter um novo julgado da lide.

 

 

4. o fundamento processual da revisão da sentença.

No direito romano a sentença era a própria coisa julgada ou, esta, era a res in iudicium deducta, ou seja, o bem jurídico disputado pelos litigantes. Os romanos acreditavam que a sentença era o ato que punha fim a contestabilidade de um bem jurídico, esta, era vista pelos romanos como um pressuposto da segurança no gozo dos bens da vida. Desta concepção romana de coisa julgada desenvolveram-se duas correntes de pensamento. Uma convencionou-se chamar teoria processualista que Ovídio A. Baptista  esclarece:

“A teoria processual da coisa julgada, sua eficácia declaratória teria operacionalidade apenas para os processos futuros, não modificando de modo algum nem criando qualquer vinculo de direito material. O juiz do segundo processo é que ficaria vinculado ao primeiro julgamento, em virtude apenas de um preceito de direito processual, e não porque o direito, porventura inexistente, tivesse passado a existir em razão da sentença.”        

 

De outro lado, a teoria denominada substancialista, no dizer de Ovídio A. Baptista, defende que:

“A coisa julgada é fator constitutivo de um novo vinculo de direito material. Toda sentença, seja confirmadora de um direito preexistente ou, ao contrário, pronuncia contra o direito, e, portanto, injusta, produz uma nova relação jurídica de direito material.”   

 

Direito material e direito processual estão relacionados reciprocamente, um subordinado ao outro e o outro subordinado ao um, neste sentir, o mestre, Liebman leciona:

“A eficácia da sentença é por certo processual, mas ela incide diretamente no direito, nesse ato, direito e processo se encontram e se fundem numa unidade, sem sombras ou ulteriores distinções, superadas pela pronúncia do juiz, que recolhe em si e exprime toda a essência e toda a força do direito”  

       

Sensível às mudanças nas situações fáticas imprevisíveis ao tempo do comando regulador da relação jurídica continuativa e com fundamento na teoria substancialista, o legislador prescreveu o inciso I do art. 471, CPC:

“Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo:

I – se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;”

 

a coisa julgada material se projeta para o futuro. A sentença de mérito transitada em julgado adquire a qualidade de imutabilidade e indiscutibilidade, como se extrai do caput do art. 471, CPC. Ocorre que em certos casos a sentença regula relações jurídicas continuativas, que não se esgotam com a decisão final. Nestas relações jurídicas, com o passar do tempo, podem ocorrer mudanças do estado de fato ou de direito, não persistindo o mesmo do momento da sentença, exigindo-se nova regulamentação da matéria. Ernane Fidélis, ao analisar a revisão das sentenças que regulam esse tipo de relações jurídicas, explicita:

“O que justifica a revisão da sentença sobre relação jurídica é a modificação do estado de fato ou de direito. Se nada se alterar, mesmo que a parte invoque razões não alegadas anteriormente a revisão é incabível. Ao contrário do que possa parecer, a coisa julgada, em tais hipóteses, não é ofendida. A alteração decorre é de regra de direito material, em razão da própria natureza da relação jurídica continuativa, que a sentença revela.”

 

Acerca desta temática, o mestre processualista, Humberto Theodoro leciona:

 

“A sentença, baseando-se numa situação atual, tem sua eficácia projetada sobre o futuro. Como os fatos que motivaram o comando duradouro da sentença podem se alterar ou mesmo desaparecer, é claro que a eficácia do julgado não deverá perdurar imutável e intangível. Desaparecida a situação jurídica abrangida pela sentença, a própria sentença tem que desaparecer também. Não se trata, como se vê, de alterar a sentença anterior, mas de obter uma nova sentença para uma situação também nova.”            

 

Nesta mesma linha de entendimento, o ilustre ministro do Superior Tribunal de Justiça, Teori Albino Zavascki esclarece:

“A rigor, como percebeu Calmon de Passos, e como já dizia Liebman, todas as sentenças são proferidas com cláusula rebus sic stantibus. Vale dizer, sempre que a pretensão – seja em ação de conhecimento, seja em ação cautelar – estiver fundada em nova situação de fato ou de direito, o que se terá presente não é a reprodução da ação anterior, mas uma nova ação, já que outro é o fundamento jurídico do pedido. Sob este aspecto, realmente, não haverá qualquer arranhão ao princípio da coisa julgada.”

 

Observa-se que está, praticamente, pacificado na doutrina o entendimento de que a coisa julgada constitui relação jurídica de direito material e, portanto, havendo mudanças de ordem fática e jurídica nas relações de caráter contínuo, a coisa julgada se retrai para incidir numa nova sentença.

    

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

O alcance que a coisa julgada assumiu no direito moderno, fruto do apego exagerado pela segurança, que é o sustentáculo básico dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, deve ser revista, em prol da justiça, que é o valor que, na dogmática jurídica contemporânea colide em face da segurança.

O efeito da ação de modificação ou revisional não é de confronto com a coisa julgada e sim de atenuação ao princípio da autoridade da mesma, provocando novo pronunciamento judicial em razão de fato ou estado de direito novo.  

O exemplo clássico de aplicação da ação de modificação ou revisional no processo civil, reside nas sentenças que fixam prestação de alimentos, busca-se a adequação do que fora decidido anteriormente, face à mudança dos pressupostos da relação obstacularizada, quais sejam, a necessidade do alimentando e a disponibilidade do alimentante, ensejando ajuizamento de nova ação, consequentemente, nova decisão apta a fazer coisa julgada.

O que há é, simplesmente, a atenuação da coisa julgada e não a quebra da imutabilidade que qualifica os efeitos da sentença é o entendimento que prevalece na doutrina processualista contemporânea, visto que ao ser renovado o fundamento jurídico do pedido a lide não é a mesma, guardando apenas identidade de partes. Então, a lógica processual compatível com esse entendimento é a seguinte: novos fatos, ação e causa de pedir, outro pedido, nova sentença donde a coisa julgada passa a ter novamente plena autoridade.

 

REFERÊNCIAS

 

GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2003.

 

LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Vol. 3. Tocantins: Intelectus.

 

SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil: vol. I: Processo de conhecimento. São Paulo: Saraiva, 2006.

 

SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil, volume 1: processo de conhecimento. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005..  

 

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

 

ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da tutela. 4 ed. São Paulo: saraiva, 2005

Artigo completo: