Cultura Sexual e Sexualidade: elementos de dominação social

Por Gabriela Costa Faval | 13/12/2016 | Sociedade

Resumo

A sexualidade passou por diversas mudanças práticas e conceituais ao longo da história. O advento do cristianismo introduziu o pastorado, responsável pela maior prática de controle e disseminação de regras morais das sociedades antigas e que perdura até hoje; a prostituição e a homossexualidade levaram a medidas de controle de doenças, passando a restringir as práticas sexuais; movimentos sociais como a revolução sexual, o feminismo, a luta por direitos civis e a liberdade gay geraram reviravoltas nos costumes e nas possibilidades sexuais. Todos estes acontecimentos, somados a outras situações culturais, sociais e políticas, configuraram as definições dos papéis sexuais dentro de uma sexualidade normativa e, consequentemente, conflitos entre os gêneros. Entre a abjeção de um e o fortalecimento de outro, foram estabelecendo-se relações de poder que, nem sempre, resultavam em opressores e oprimidos, mas demonstravam que a sexualidade devia ser compreendido como um instrumento social e cultural, mas também político.

 

INTRODUÇÃO            

As atitudes sexuais diferem de acordo com contextos sociais distintos. Cada período da história da humanidade apresenta culturas sexuais, valores e crenças aplicados à sexualidade que mudam com o tempo e sob o efeito de alterações político-culturais.

Apesar de, só recentemente, a sexualidade ser compreendida como algo socialmente construído, foi essa compreensão da natureza intersubjetiva dos significados sexuais que permitiu enxergar a sexualidade como um importante elemento de regulação social.

A atenção inicial voltou-se para os “roteiros” sexuais que organizam a interação sexual dos indivíduos nos diversos locais sociais, revelando cenários culturais mais amplos, práticas discursivas e complexos sistemas de poder que produzem os significados e experiências da sexualidade. O “foco” de interesse, então, passou a ser a variedade de culturas sexuais e os espaços culturais que ali se manifestam.

Segundo Parker (2000), em muitas situações,

[...] as noções de atividade e passividade nas interações sexuais provaram ser mais importantes na definição da identidade sexual do que a “escolha” do objeto ou do sexo do parceiro (p.134).

Apesar das pesquisas sobre identidade sexual se direcionarem, em grande maioria, para as práticas homossexuais, o advento da AIDS deu surgimento a questões voltadas para os “grupos de risco”, em específico para os profissionais do sexo, através dos quais se constatou que as trocas sexuais e econômicas eram muito mais complexas e variadas do que se imaginava. Essa troca de sexo por favores, dinheiro ou presentes, nem sempre pressupunha uma identidade sexual mas em alguns contextos, eram organizadas entorno de uma consciência especifica de identidade.

Qual o significado de ser macho ou fêmea em uma cultura sexual? Esse papel se transforma de uma cultura para outra? Como seus representantes interagem sexual e socialmente? Todos os machos e fêmeas biológicos passam por uma socialização sexual, onde seus papéis e noções culturais são modeladas ao longo da vida, determinando desejos, sentimentos, práticas sexuais específicas dos seus grupos de idade ou status social e as alternativas sexuais possibilitadas dentro de suas culturas.

Essas comunidades estruturam as possibilidades de interação sexual entre os atores sociais individuais, definidas através de regras implícitas e explícitas e regulamentos impostos pelas culturas sexuais de comunidades específicas. Tornou-se, então, de grande relevância compreender as “redes sexuais, os sistemas de significados e os princípios sociais estruturais que organizam as possibilidades de interação” (PARKER, 2000). É essa consciência sobre as possibilidades de interação que determinam os diferenciais de poder social e cultural, principalmente entre homens e mulheres, mas também entre os diversos grupos sexuais socialmente construídos. Segundo Parker,

Precisamente devido ao fato de que diferentes culturas sexuais organizam a desigualdade sexual de formas específicas, essas regras e regulamentos culturais colocam limitações específicas ao potencial para a negociação nas interações sexuais – e condicionam, por sua vez, as potencialidades para a ocorrência de violência sexual, para padrões de utilização de medidas preventivas, para as estratégias de redução do risco de HIV/AIDS e assim por diante. (PARKER, 2000. p. 138)

Todos os estudos sobre as culturas sexuais e suas interações, permitiram compreender que as mudanças ocorridas nas relações de gênero e sexuais, tinham reflexo direto e indireto em mudanças políticas, econômicas e culturais mais amplas.

No processo histórico, quatro movimentos sociais se destacam pela marca do que poderia ser visto como sua perspectiva mais politizada da pesquisa social e cultural sobre a sexualidade: a revolução sexual, o feminismo, a liberação gay e o movimento de direitos civis. Esses movimentos não geraram apenas mudanças específicas, mas também liberdades para homens e mulheres dentro de um sistema sexo/gênero, onde a sexualidade biológica é culturalmente traduzida em ação.

Se, por um lado a revolução sexual e o feminismo giravam em torno das origens da opressão à mulher e da utilidade da exploração feminina para o sistema capitalista, o movimento gay colocou em julgamento as categorias ocidentais da masculinidade, da feminilidade e da sexualidade normativa, bem como a própria corporeidade. Já o movimento negro, surgido dentro dos direitos civis, aumentou a consciência de que as ideologias da sexualidade estão carregadas de pressupostos sobre raça, classe e nacionalidade, que moldam a sexualidade através de políticas de raça e etnicidade.

Quando se questiona o “natural” nas questões sexuais, destacando o processo histórico da sexualidade e sua compreensão como instrumento social e cultural, destaca-se, também, o fato de que “a desigualdade de gêneros e a opressão sexual não são fatos imutáveis da natureza, mas artefatos da história” (PARKER, 2000).

A via de mão dupla dos poderes sexuais

A sexualidade esteve manifesta desde o surgimento da humanidade e, não apenas como característica biológica, mas como instrumento de poder, moeda de troca. Se, por um lado a história dá indícios de uma dominação sexual masculina, por outro lado há, também, amplos sinais de que as mulheres das primeiras sociedades do velho mundo eram ativas na sexualidade e, nela, detinham certo poder de barganha. Ainda nessas sociedades, a necessidade da introdução de padrões regulatórios surge em contraposição ao reconhecimento do prazer sexual, em nome da ordem social e até de uma sobrevivência econômica.

Povos da antiguidade fizeram uso da arte para representar a dominância do falo – caso de Pompéia, cujas ruínas trouxeram à tona esculturas, pinturas e decorações em alto e baixo relevo adornando casas e ruas – e o papel reprodutivo da mulher. Algumas vezes representava-se o ventre feminino, mas sempre implicando a dominação sexual masculina.

Práticas onde se evidenciava o travestismo foram representadas em pinturas e esculturas, cuja origem poderia ser devido a uma redução no percentual de mulheres nessa sociedade, fazendo com que homens assumissem tarefas cotidianas exclusivamente femininas, ou por identificação de indivíduos “diferentes” dentro do grupo, mas às mulheres era negado o direito de vestir-se ou agir como homem, sendo raras as exceções.

A introdução da agricultura, por volta de 9000 – 8000 a.C, também trouxe mudanças significativas para a sexualidade, principalmente a feminina. A prática sexual, antes vista como meio de obtenção de prazer, sem parceiro(a) definido, passa a mudar paralelamente ao surgimento da noção de propriedade. A garantia da terra e sua transmissão aos descendentes exigia que essa descendência fosse determinada, assim, foram adotadas medidas (regras) para controlar a sexualidade feminina, de forma a que o sexo passasse a ter uma forte função reprodutiva. Isto, por sua vez, gerou diferenças evidentes no âmbito das relações sociais, entre os padrões sexuais de homens e mulheres, como afirma Stearns:

Todas as sociedades agrícolas tornam-se, de certo modo, patriarcais – isto é, dominadas por homens (e de pai para filho); e uma expressão fundamental do patriarcado foi o impulso de controlar a sexualidade feminina e diferenciar padrões por gênero (STEARNS, 2010. p. 31)

O sexo como função reprodutiva também afetou a sexualidade feminina. Em algumas comunidades rurais difundiu-se a ideia de que era indecoroso ou inapropriado que o apetite sexual de um casal permanecesse inalterado com o passar dos anos. Isto associado ao sexo para fins reprodutivos tirou das mulheres o direito a exercer sua sexualidade após a menopausa ou diante de uma situação de viuvez, negando-lhes, inclusive, a possibilidade de novo matrimônio.

Outro método de controle da sexualidade feminina foi o surgimento, no nordeste da África, da circuncisão feminina (retirada do clitóris para redução da libido e limitação do prazer sexual). A prática ocorria sem qualquer acompanhamento ou higiene médicos e resultava na morte de 90% das mulheres que a sofriam.

 As regras e normas morais que tiveram surgimento a partir de então, só afirmaram ainda mais essa diferença entre a sexualidade masculina e feminina. O adultério foi um claro exemplo disso, sendo considerado adúltero o homem que mantinha relações com uma mulher casada, mas não o contrário, já que era dado ao homem o direito de ter concubinas. O uso do véu encobrindo o rosto das mulheres casadas, justificava-se como uma forma de protegê-las das investidas sexuais e, assim, controlá-las.

A violência e a exploração provenientes dos estupros e da prostituição também têm seu destaque nesse processo, porém identificavam apenas um lado do poder, exercido sobre os grupos mais vulneráveis, um exemplo claro de dominação. No referente às sociedades agrícolas, não fica muito definido o que era ou não estupro, devido à pequena existência de registros e a leis não muito claras sobre essa prática. Mesmo após as primeiras leis (judaicas) que condenavam o estupro, não significou efetivamente uma restrição, visto a vítima (mulher) devia comprovar que não tinha sido consensual. Ainda cabia, aqui, uma ressalva: se a vítima fosse solteira o estupro era considerado uma ofensa ao pai, seu “dono” perante a sociedade e se fosse casada, a ofensa era ao seu marido, “dono” por acordo de casamento, ou seja, o crime nunca era visto como uma agressão à mulher. A pena ao estuprador era, muitas vezes, casar-se com a vítima, mesmo contra sua vontade, o que resultava em um castigo para a vítima.

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