Cultura Negra em Nazaré e Cachoeira-BA
Por Nayla Rodrighero Lima | 23/08/2009 | SociedadeEsse trabalho foi solicitado pela docente Marise de Santana(UNEB) na disciplina Cultura Negra do mestrado em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional e pretendeu fazer relatos e reflexões sobre a cultura negra presente nos terreiros de candomblé e olarias dos municípios Nazaré e Cachoeira-Ba. As reflexões partem dos pressupostos teóricos vistos em sala de aula, especialmente, a partir da obra "A verdade Seduzida por um conceito de cultura no Brasil" de Muniz Sodré.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Pensar a (ou sobre a) cultura negra no Brasil faz-se relevante por considerar que o lugar que ocupamos no espaço e o período temporal em que vivemos condicionam a nossa visão de mundo. Especialmente no Brasil, não é possível ignorar o passado que construiu nossa história e está presente em nossas vivências, mas que nem sempre perpassa os manuais escolares de modo que possa provocar reflexão e interesse por investigação.
Por considerar que a cultura negra no Brasil deve ser um tema investigado e discutido por acadêmicos, os estudantes da disciplina Cultura Negra, no mestrado em Cultura e Desenvolvimento Regional campus V-UNEB, foram convidados pela professora regente da disciplina Cultura Negra, Marise de Santana, a um passeio cultural às cidades de Nazaré e Cachoeira, ambas pertencentes ao estado da Bahia, a fim de observar na prática e fazer as comparações devidas com àquilo estudado e discutido acerca do tema durante as aulas ministradas por essa professora.
Esses estudos, e relatório, justificam-se, principalmente, por tratar de os estudiosos serem da área de educação. Área que permite proliferar esse conhecimento -que desmistifica o senso comum- e provocar debates nos mais variados contextos de sala de aula.
CULTURA NEGRA NOS MUNICÍPIOS, NAZARÉ E CACHOEIRA-BA
Dia 27 de julho de 2009, numa sexta-feira nublada, na cidade Santo Antônio de Jesus-Ba, um grupo de estudantes da disciplina Cultura Negra do mestrado em Cultura e Desenvolvimento Regional, da Universidade da Bahia (UNEB) campus V, reuniu-se às 8h da manhã para aguardar o momento de iniciar –iniciarmos- um passeio à Nazaré.
Nossa primeira parada foi numa Olaria em Maragujupinho. Fomos recebidos por Seu Joaci (oleiro -profissão passada de pai para filho) que em princípio observou o que dizia a Professora Marise para, posteriormente, colocar seu relato pessoal. Segundo ele, os brasileiros -nós- foram muito explorados, pois os índios entusiasmados com a chegada dos portugueses começaram a mostrar as riquezas de nossa terra. Relatou ainda, que teve contato com alguns índios da cidade de Porto Seguro e, na oportunidade, disse a esses índios que os considerava "preguiçosos" já que, de acordo com o que ele havia assistido na tevê, as índias trabalhavam com as cerâmicas e os índios ficavam "apenas" caçando e pescando.
Numa segunda parte de seu relato Seu Joaci tratou da questão religiosa, disse-nos que uma grande herança dos exploradores foi a igreja católica, prossegue fazendo uso de vocativo "Olha quantas igrejas tem até hoje no Brasil e quanta perfeição!". Chama atenção para o fato de os jesuítas dominarem a arte de tratar da madeira, de modo que ela não perde sua qualidade com o tempo. Quando provocado pela professora Marise que questionou o papel do escravo e do negro, para os trabalhos com a madeira, ele persistiu no discurso anterior, o de que esse feito –toda a técnica e trabalho- era dos jesuítas.
Por fim, o oleiro fez críticas aos políticos que não incentivam a cultura das olarias e os perseguem com a justificativa de que queimar determinadas madeiras -ainda que seja com o objetivo de confeccionar objetos de cerâmica- é ilegal. Fez, ainda, uma denúncia de que muitos oleiros foram lesados e enganados por alguns políticos os quais ele cita nomes.
Ainda nesta olaria, alguns objetos confeccionados pelos trabalhadores locais chamaram atenção especial da Professora Marise que nos explicou sobre objetos, como o cuzcuzeiro, que são muito utilizados nos terreiros e, talvez, por isso, eles ainda existam. Vimos, na oportunidade, as muringas, que fazem parte dos enxovais dos caboclos e de Nanã; a talha, que faz parte dos enxovais do terreiro; as panelas, para as festas de Olubagé.Ratificou acreditar que muitos materiais de barro são perpetuados por conta dos terreiros, já que sem esses materiais não há enxovais - utensílios dos orixás.
Logo mais a frente vimos outra olaria, o oleiro que nos recebeu deu-nos a informação de que quem muito procura os utensílios de cerâmica –especialmente as quartinhas- feitos por eles, compram em quantidade para enfeites, e, que, sua última venda foi para clientes do estado do Rio de Janeiro.
Confusos quanto a localização do terreiro, encontramos um Alabê que nos informou por onde devíamos seguir. Chegando ao local fomos informados de que o terreiro estava de luto, o pai de santo, Seu Roque, havia falecido.
Seguimos então para outro terreiro, a caminho, pedimos informação a um rapaz que estava a caminhar pelas ruas, ele chama-se Cassiano, e também é um Alabê, este, entrou na van conosco e nos ensinou o caminho até o terreiro de Ogom Unzó Gunzo Luanda. Essa foi uma maravilhosa experiência, pude ouvir de quem faz parte dessa religião afro o que, de fato, ela é. Ali, entrei em confronto com aquilo que me dizia o senso comum -de formação cristianizada- e aquilo que estudei e agora via materializado.
Cometi neste lugar, minha primeira gafe na viagem. Pisei em uma cerâmica que fica exatamente no centro do terreiro, a mãe pequena (chama-se Rita, mas recebe a nomenclatura mãe pequena porque substitui a mãe grande que é sua irmã mais velha e responsável primeira pelo local) me explicou que eu pisei exatamente onde, simbolicamente, é o a força do terreiro.
Ainda neste lugar, observamos com clareza o que as aulas teóricas já nos haviam mostrado: o duplo pertencimento, em um canto do terreiro havia um altar com imagens do catolicismo, o que representa a dupla pertença dos fiéis. Algumas cadeiras diferenciadas me chamaram especial atenção, a explicação é a de que cada cadeira pertence a uma entidade. A mãe pequena apresentou-nos alguns bonecos que ficam dispostos em lugares específicos no terreiro, eles simbolizam: Oxóssi, Ogum, Oxalá, Iansã, Iemanjá, Angã, Logum e Xangô.
No fundo do terreiro havia alguns espaços fechados com grades. Quando estávamos indo em direção a esse espaço ao fundo, chegou a mãe grande, dona Vilma, que deu-nos algumas explicações. Por exemplo, que para fazer parte do terreiro passa-se primeiro por um processo de imersão, ou iniciação, como ela chamou, é um processo em que o indivíduo passa 21 dias no terreiro, separados, e dormem em folhas. A partir de então é que o indivíduo passa a ser iniciado na religião. Algumas dúvidas não foram tiradas por mãe grande, recordei-me do que foi dito durante as aulas, parafraseando a professora Marise que dizia que o segredo faz parte da cultura negra.
Fomos ao fundo, um dos espaços era enfeitado e colorido de azul –cor dos mares- e acima estava escrito Marujo Sete Ondas. Este marujo é uma força das águas, tem parentesco com Iemanjá. Obliquo à Casa do Marujo estava estendida num mastro uma bandeira branca que representa a paz, abaixo da bandeira estavam galhos verdes, que simbolizam prosperidade.
Havia também uma cabana –no meio do quintal- chamada Cabana do Caboclo, o caboclo Gentil das Matas, que tem a aparência e vestes de um índio. Causou-me certo estranhamento perceber que para ele eram ofertados bebidas alcoólicas, e, então, fiz o questionamento "Por que, para ele, ofertavam bebidas?" Responderam-me prontamente que àquele representava um humano e que se os seres humanos, consomem em festas bebidas, para ele deveriam ser oferecidos os mesmos prazeres.
Vimos alguns atabaques -instrumentos musicais- enfeitados, segundo a professora "é porque têm vida!". Mãe Vilma –mãe grande- contou-nos que ela é uma Babalorixá, dona da casa, que dá orientação material e espiritual, disse ainda, que esse terreiro passou da avó dela para a sua mãe e que depois da mãe ela havia assumido. É uma sucessão!
Foi-nos esclarecido também o que representa a figura do Exu -que tanto o senso comum atribui o título de diabo- ele simboliza o escravo, é um tanto desastrado, tem natureza humana e, por isso, é dúbio.
Recordar o que afirmou Muniz Sodré enquanto via o terreiro e assistia às explicações da Professora Marise, da mãe pequena e mãe grande, foi imediato, agora, ainda com mais certeza, poderia eu afirmar ratificando o que disse o estudioso "O terreiro é uma organização", há pessoas com as mais diversas funções antenadas com os ritos africanos.
Despedimo-nos e fomos em direção à Santo Antônio. Almoçamos e seguimos viagem para o município de Cachoeira, já era à tarde e chovia, mas não estávamos desanimados, ao contrário, estávamos ansiosos para continuarmos as visita aos terreiros. Durante o percurso fiquei pensando de modo mais persistente naquilo que dissemos durante as aulas: as pessoas difamam os terreiros a partir do que não entendem.
Em Cachoeira visitamos a Irmandade da Boa Morte, este espaço me pareceu muito mais um local de expor a história, um ambiente que funcionou como terreiro em seu aspecto religioso de que o terreiro visitado em Nazaré que estava em plena atividade religiosa.
Lá tivemos a oportunidade de ouvir Irmã Agda, Irmã Anália e, especialmente, Seu Valmir que narrou primeiro o objetivo da irmandade. Segundo ele, a irmandade sempre teve em vista interagir com a sociedade e há tempos atrás seu objetivo foi também "camuflar" sua religião, para não serem incomodados, já que as negras eram consideradas "diabólicas".
O povo Gêge foi quem deu origem a essa irmandade, esse foi o primeiro terreiro de candomblé organizado por mulheres, o espaço nasceu em Salvador e posteriormente migrou para Cachoeira, já existe há mais de 230 anos e inicialmente contava com 210 mulheres - hoje, infelizmente, conta com pouco mais de 20 mulheres.
As mulheres da irmandade se camuflavam como católicas, afirma seu Valmir, para não serem vistas como pagãs ou adoradoras de demônios. A comunidade é fruto do primeiro movimento feminista de mulheres negras da Bahia, que adota Nossa Senhora de Boa Morte e edifica uma igreja na Barroquinha, no fundo da Barroquinha nasce o primeiro terreiro de candomblé organizado por essas mulheres. Nasce aí também o sentimento de dupla pertença, agregam aí as religiões: católica e candomblé.
Seu Valmir afirma que para fazer parte da irmandade é preciso passar por um processo de iniciação e que o deve ser atingido primeiro é a humildade, esses iniciados são observados pela matriarca do terreiro e se não forem aceitos não farão parte da irmandade, mas, de algum modo, podem participar.
Conta-nos que no período escravocrata a juíza perpétua –a irmã mais sábia ocupava esse cargo- da Boa Morte comprava cartas de alforrias. Explica que há, e sempre houve, todo um complexo organizacional: uma escrivã, uma provedora, uma procuradora (que respondia pela irmandade perante a justiça) uma tesoureira, uma juíza perpétua, e outros cargos. Para esses cargos há uma eleição e quem os ocupa, ocupa com efeitos administrativos e espirituais.
Sobre as festas ele informa que são das maiores interações afro-religiosas da América Latina e conta que estão buscando reconhecimento como patrimônio imaterial da humanidade. Reforça que a irmandade é de cunho católico que celebra a Nossa Senhora da Boa Morte.
Hoje eles recebem estudantes de escolas diversas e turistas (inclusive estrangeiros) e contam a história de Cachoeira e a de Boa Morte. Quanto questionado sobre a dupla pertença religiosa, seu Valmir explica que as mulheres da casa são reconhecidas como mulheres de Candomblé veneradas de Maria e todas as atividades afro-religiosas elas fazem nos seus terreiros, em suas casas, a única coisa que as identificam como mulheres de santo são as vestimentas e a ceia –que se difere da católica- chamada mesa branca.
Seu Valmir encerra sua fala enunciando que hoje o que eles buscam não é mais a antiga carta de alforria, e sim, a carta de alforria social, da forma de vida, da qualidade de vida, diz que buscam a tolerância religiosa em combate ao preconceito e que tem como referencia as irmãs que combateram tudo que havia de desumano contra o negro na Bahia.
Despedimo-nos da Boa Morte, mas na saída observamos as canções afro entoadas pelas irmãs, turistas também as observavam.
Findamos o passeio em visita à Maçonaria, lá observamos que há muito em comum com os terreiros. Seu espaço guarda segredos e tudo é simbólico, aparentemente, também tem como objetivo camuflar aquilo que fazem e o que praticam, ah, não assumem a identidade de religião.
Considerações finais
A partir dos estudos orientados por professora Marise de Santana e do passeio guiado por ela, pudemos observar que o candomblé é discriminado por ter como origem a raça negra. O duplo pertencimento foi notado a partir dos símbolos católicos presentes nos terreiros, mas foi também possível perceber que embora os símbolos sejam os mesmos a forma de pensar sobre eles é diferente.
Existe um texto nos terreiros que tenta demonstrar um "processo de desafricanização", o terreiro de Boa Morte demonstrou isso quando afirmou que tem maior pertencimento católico, mas o discurso facilmente apreendido é o de que todo o simbólico é afro, e esse é o seu maior pertencimento, se orgulham disso, mas se engasgam por perceberem que ainda são reprimidos, de algum modo, isso fica claro na fala de Seu Valmir quando pede uma carta de alforria de tolerância religiosa.
Destaco a discussão de Sodré (2005) que trata da pretensão de uma verdade universal e concluo que apenas com investigação, alargamento do conhecimento, é possível certo afastamento do discurso que estamos dominados -discurso veiculado no espaço e tempo em que estamos inseridos- para então compreender a cultura negro-brasileira despidos de pudores e preconceitos que estão submetidos os ocidentais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994. 5. Ed.
SANTANA, Marise. Aulas da disciplina Cultura Negra- mestrado em Cultura e Desenvolvimento Regional, UNEB. Mensagens recebidas entre 17 de abril a 24 de julho de 2009.
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida - Por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro: DP & A, 2005. 3. Ed.