CUIDAR DO SER: ''Devolver ao ser humano o corpo que lhe falta e a palavra perdida''
Por Rosiete Costa de Sousa | 06/07/2009 | EducaçãoRosiete Costa de Sousa Se observarmos o mundo ao nosso redor, o que vemos?Sem muito esforço, podemos ver um forte desequilíbrio nas relações: do ser humano com o meio ambiente, do ser humano com as pessoas com quem convive e, sobretudo, do ser humano consigo mesmo.Não é preciso ir longe para observarmos este desequilíbrio: é em nós mesmos, na nossa própria casa, no nosso ambiente de trabalho que mais o vemos, porque mais o sentimos. Diante desta observação, que questão estaria colocada como a mais urgente?Para mim, não há dúvidas, é a questão do Ser.E como lidar com esta questão?Como cuidar do Ser?Quem cuida?Esta é uma tarefa apenas para terapeutas?É tarefa também para os profissionais da educação?O que estamos fazendo?O que podemos ainda fazer?Sabe-se que a escola é um dos espaços de formação do ser humano, portanto, não deve estar, na sua centralidade, a tarefa de cuidar do ser?Aqui, estamos nos referindo ao cuidado "como atitude de solicitude, de atenção e de dedicação pelo outro, e de preocupação e inquietação por ele", de acordo com Heidegger (apud BOFF, 2000: 14). Cuidar do Ser do outro, no entanto, passa por, antes, cuidar do seu próprio Ser.Como, então, cuidar do Ser?Primeiro, tirando-o do esquecimento.Para Restrepo, "um dos efeitos mais perversos da ditadura da razão instrumental-analítica foi operar uma espécie de lobotomia no ser humano.Isto o fez insensível à dor dos outros, surdo às mensagens do universo e de todas as coisas, e indiferente frente à sacralidade do mistério do mundo.Estrangulou-sea capacidade de enternecimento, de encantamento e de reverência diante da profundidade da vida e de sua complexidade." (idem:17) O nosso ser, então, caiu no esquecimento.Perdemo-nos de nós mesmos.Neste sentido, a escola, lugar de construção de conhecimento, precisa estar, ao mesmo tempo, a serviço da construção do auto-conhecimento, da descoberta do Ser, da formação do ser humano integrado.Como?Pela escuta sensível.Mas o que vem a ser a escuta sensível?Escuta do corpo e da palavra de cada um... Para Barbier, "trata-se de um 'escutar/ver' que toma de empréstimo muito amplamente a abordagem rogeriana em Ciências Humanas, mas pende para o lado da atitude meditativa no sentido oriental do termo" (2004: 94). Ele acrescenta: "A escuta sensível apóia-se na empatia, no saber sentir o universo afetivo, imaginário e cognitivo do outro para 'compreender do interior' as atitudes e os comportamentos, o sistema de idéias, de valores, de símbolos e de mitos" (idem). E, isso nós teremos que aprender! Não sabemos escutar.Num mundo onde as pessoas estão durante todo o tempo correndo, sempre muito ocupadas em "vencer na vida", em alcançar uma carreira de sucesso, em provar para os outros que é capaz; cheias de medos: medo de ser ridículo, medo de ser roubado, de perder o lugar para o outro, vendo-o (o outro) como uma ameaça, é mesmo muito difícil encontrar espaço para aprender o silêncio, para a aprendizagem da escuta.E é, como afirma Barbier, "no silêncio, que não recusa os benefícios da reformulação, que a escuta sensível permite ao sujeito desembaraçar-se de seus 'entulhos' interiores" (ibidem: 98). Discutindo a escuta sensível como um dispositivo em etnopesquisa, Macedo diz tratar-se "de uma fecunda fronteira em pesquisa educacional, que aponta para o resgate do ator e do autor pedagógico, da atriz e autora pedagógica, que o professor precisa incorporar urgentemente, na sua prática de sujeito do processo e das finalidades educacionais".Macedo nos adverte, ainda, de que escutar sensivelmente "é um tipo de ética imbricada no processo de conhecer, uma auto-ética, uma ética comunitária, das quais a pesquisa nunca deve se desindexalizar se quiser praticar a ausculta do Ser do homem em prática" (2000: 200). Nesta perspectiva, escutar sensivelmente é um caminho para o Ser. Cada pessoa carrega em seu corpo a memória de tudo o que viveu, é o que nos mostra Leloup, em O Corpo e seus Símbolos: uma antropologia essencial.E, de acordo com Paulo Freire, "a palavra humana imita a palavra divina: é criadora" (1987:20).Nesse sentido, cada ser humano precisa "aprender a dizer a sua palavra".Ainda, em Freire, a palavra é entendida como palavra e ação."Ela diz e transforma.É significação produzida pela práxis, palavra cuja discursividade flui da historicidade"(idem). Assim, palavra, para ele, "não é o termo que assinala arbitrariamente um pensamento que, por sua vez, discorre separado da existência"(ibidem). Podemos, aqui, afirmar que, enquanto, nas nossas escolas, ficarmos produzindo pensamentos descolados da existência, insistirmos na tarefa de dar instrução, informar, num movimento que vai sempre de fora para dentro, dando conta apenas de trabalhar conteúdos que não têm qualquer sentido para as pessoas envolvidas no processo educativo, com vistas apenas ao "crescimento cognitivo", estaremos privando o ser humano de Ser, negando-lhe o seu desenvolvimento integral.Estaremos, dessa forma, contribuindo para o seu adoecimento, uma vez que a pessoa não crescerá de modo integrado. Quero, agora, contar um pouco da minha experiência pessoal para exemplificar o que, até aqui, tenho dito: Com a participação decisiva da escola, considero, desenvolvi-me intelectualmente, dada a prioridade, quase absoluta, que esta teve na minha vida.Era considerada uma aluna muito inteligente, muito capaz.Tirava as melhores notas.Quando prestava algum concurso, era aprovada e, quase sempre, ficava na primeira colocação.Na verdade, gostava muito desta "minha qualidade".Ela me dava poder e o meu prazer estava vinculado a ela, a esta máscara social, a esta imagem construída a partir da minha intelectualidade.Apeguei-me, certamente, a ela.Seria capaz, também, de desenvolver tratados sobre relacionamento humano, sobre afetividade.Só que, enquanto experiência vivida, nesta dimensão do meu Ser, via os anos se passarem e não evoluía.Tudo, neste campo, era muito idealizado. Histórias de desilusões se repetiam. Estava bloqueada, travada para relacionamentos íntimos nos quais eu precisaria, provavelmente, apenas Ser. Em relação ao lazer, os bloqueios também eram (ainda são!?) enormes. Pouco me dava o direito de ter lazer, de ter prazer. Um enorme medo de errar não me deixava construir relações autênticas, inclusive, comigo mesma.Os meus relacionamentos se limitavam às pessoas da minha família e a colegas de trabalho. E, nestes, vi o quanto eu ocupava um lugar mitificado, onde o erro, de fato, não tinha espaço. Quando vinha a cometê-lo, sentia-me tão culpada que, sem que eu tivesse consciência, ia me torturando, tirando de mim a possibilidade de Ser, de ser feliz. Experimentei, então, muitas frustrações. Até que, ao alcançado um grau altíssimo de estresse, orientada por um amigo, colega de trabalho, fui procurar a ajuda de um profissional e comecei, aí, uma caminhada em busca da minha cura, em busca de mim, do Ser, através da psicoterapia, um espaço de escuta do meu corpo e da minha palavra.Já na primeira ou segunda seção pode ser diagnosticada uma distância, uma separação entre o mental e o cardíaco em mim. Pouco tinha consciência do meu corpo. Não conseguia dar nome ao que sentia. Fui me deparando com as minhas incoerências, com a arbitrariedade do meu pensamento, um pensar descolado da minha experiência existencial... do sentido encarnado. Acabei por fazer um quadro de depressão. O meu corpo foi tomado por um cansaço e uma tristeza imensuráveis. O luto foi profundo. Em tratamento, psicológico e psiquiátrico, fiz contato com a raiva (antes, não admitia senti-la). Nesse processo, senti muita raiva também da escola, desta escola como ela tem se estruturado, da escola que participara da minha formação, da escola onde eu participo da formação de outras pessoas.E esta escola ia, cada vez mais, perdendo o sentido para mim. Ela estava longe de cumprir o papel de formar o ser humano na sua integralidade, não cumprira este papel comigo!(Não que eu a considere, sozinha, a responsável pela constituição do ser humano integrado. Mas, para mim, a sua co-responsabilidade é inquestionável.). Via, sentia... que toda a teoria da educação construída com o enfoque no desenvolvimento multidimensional do ser humano pouco, mas muito pouco mesmo, estava se refletindo na prática, assim como toda a teoria que eu acumulara, minhas idéias, meus pensamentos não se refletiam na vida vivida por mim.Como as minhas pernas não tiveram um desenvolvimento proporcional ao meu "crescimento intelectual", não conseguiram sustentar aquilo que, por este, foi construído.A sensação era a de que não estava ficando pedra sobre pedra desta construção. Tudo parecia ter sido desconstruído. Estava experimentando uma espécie de vazio de sentido.Possivelmente, também o desapego. Desde o momento em que me decidira a fazer terapia, vejo-me passar por um processo de reeducação, no qual estou tendo a oportunidade de compreender que "só o que passou por uma emoção ou nos evocou um sentimento profundo é que deixa marcas indeléveis na alma e permanece indefinitivamente" (BOFF, 2000: 12).Ocorre que nem todas as pessoas farão terapia.. Não se trata, aqui, de culpar professores, os que fazem a educação escolar (é como professora, também, que faço esta reflexão!), nem tampouco de afirmar que os psicoterapeutas em geral cuidam do ser humano, considerando todas as suas dimensões.Todos fomos, e ainda estamos sendo formados dentro de uma lógica que fragmenta, que não está interessada nem um pouco em cuidar do Ser na sua integralidade.Podemos, mesmo, dizer que, de alguma forma, somos todos vítimas desta lógica que separa.Mas dada a nossa condição de seres que metamorfoseiam sempre, somos também co-responsáveis pela transformação de nós mesmos e do mundo.O que estamos defendendo é uma maior atenção ao ser-sendo de cada um, inclusive e, talvez, principalmente, ao nosso próprio ser-sendo, de modo a irmos construindo um mundocom mais alegria, sem tantas doenças, sem tanto desequilíbrio, com mais qualidade de vida, portanto.. Nesta perspectiva, certamente, o olhar atento para o Ser não poderá ser unidimensional: as dimensões do corpo, da sociedade (história, cultura), da natureza, das idéias, imagens e emoções (dimensões simbólicas do Ser descritas por Byington), precisam ser igualmente observadas, olhadas, escutadas. Estou convencida de que as escolas deveriam se constituir também de "observatórios".Observatório no sentido dado pelos antigos chineses: "um lugar para observar e escutar o Sentido que a Vida poderia assumir num momento dado numa história particular" (LELOUP, 1996: 142). Este é um espaço que rompe com o modelo que produz alunos, e também professores (claro!), "quase que exclusivamente racionais", escreve Byington, "com uma imensa quantidade de conceitos e palavras na cabeça, mas quase que sem corpo, sem sociedade, sem natureza, sem imagens e sem emoções"(1996: 17).Em se fazendo esta experiência de observatório, professores seriam convidados a construiriam uma espécie de desapego do poder sobre o saber, como sugere Byington, "para construí-lo democrática e amorosamente junto com seus alunos" (idem; 129). Vale trazer aqui, como exemplo, a experiência do ObservatórioEtnopedagógico, que contava com a participação de coordenadores pedagógicos, professores e gestores escolares.Havia espaço para que estes profissionais fossem experimentando falar daquilo que mais tinha sentido para eles/elas, daquilo com o que se sentiam implicados, fazendo contato com as suas histórias de vida, profissional e pessoal, de modo que eram lembradas, escritas, contadas por cada um. Nas minhas reflexões, fico pensando no quanto esta era uma tarefa difícil para mim, pois a sensação que tinha era a de que tinha perdido a memória.Tentava encontrá-la na mente...Lá parecia que ela não estava.Estava indiferente à minha própria história, ao meu próprio corpo.Hoje, tenho a consciência de que fizera um movimento que em muito me distanciara das minhas raízes.Pergunto-me: Como, sem fazer o movimento de volta, posso ajudar o mundo a ser melhor, a cuidar do Ser?É preciso, então, ir em busca da palavra perdida. Perdida na "existencialidade interna" (termo utilizado por René Barbier).Devolver-me o corpo que me falta. A proposta do Observatório Etnopedagógico[1], era mesmo muito interessante, diria tratar-se de uma forma de tirar o Ser do esquecimento.Os participantes se encontravam duas vezes no mês e cada um ia podendo fazer sua experiência formativa, de modo pessoal e coletivo, observando, olhando, escutando sensivelmente às suas próprias histórias...Ali, dimensões como a afetiva, a espiritual, a corporal, a cultural e histórica estavam claramente presentes: o abraço, a emoção (choros, risos...), cantigas, meditação, histórias vividas, as mais diversas modalidades de textos...Tudo isto foi sendo construído, no processo.Não estava pronto a priori.O projeto definia o Observatório Etnopedagógico da seguinte forma: "O OEP é uma proposta instituinte de reconfiguração do trabalho pedagógico nos espaços institucionais/organizacionais a partir de inspirações etnográficas, da pesquisa-ação-formação e da intercrítica como dispositivos para pensar a reestruturação curricular das/nas escolas e a formação continuada em serviço de Pedagogos(as), Coordenadores(as) Pedagógicos(as), Supervisores(as), Orientadores(as) e Gestores(as) Pedagógicos. O OEP se constituirá num novo espaço comunitário/escolar/institucional, num "entre-lugar", entre o instituído e o instituinte, um espaço de produção de outros sentidos, de um novo ethos pedagógico escolar/institucional inspirado na condição de implicação, de experiência, de compreensão, de interpretação, descoberta e constituição de saberes e conhecimentos pertinentes e intencionais na busca de resoluções das questões levantadas e dos objetivos propostos." Não seria, então, o observatório um espaço a ser criado nas escolas para possibilitar que o Ser aí se expresse?O Ser que pelas nossas práticas pedagógicas tem sido esquecido e, no seu lugar, estamos colocando um amontoado de conteúdos curriculares, muitas vezes sem qualquer sentido para a vida das pessoas que estão envolvidas nos processos formativos.Teríamos coragem de relativizar o conhecimento que acumulamos, para deixar fluir os conteúdos das histórias e memórias trazidas no corpo de cada um? "Vai para o teu próprio fundo e lá age!Com efeito, todas as obras que aí executas, vivem!"(Mestre Eckhart apud LELOUP, 2002: 126). "Aprender a dizer a sua palavra (grifo meu) é toda a pedagogia, e também toda a antropologia", diz Paulo Freire, e acrescenta: "A 'hominização' opera-se no momento em que a consciência ganha a dimensão da transcendentalidade.Nesse instante, liberada do meio envolvente, desapega-se dele, enfrenta-o, num comportamento que a constitui como consciência do mundo". Para ele: é nesse comportamento que "as coisas são objetivadas, isto é, significadas e expressadas: o homem as diz" (1987: 18-9). De que outra forma poderíamos "sentir o universo afetivo, imaginário e cognitivo do outro" (repetindo o que diz Barbier ao falar de escuta sensível), senão deixando-o fluir do interior de cada um? Lembrando o sentido original do termo educar (do latim educare/educere): colocar para fora, conduzir para fora (ORLANDO, 2002), perguntamo-nos: não seria este o nosso papel enquanto educadores, o de conduzir para fora? Por que insistirmos em colocar para dentro (ou melhor, tentar colocar) aquilo que não encontra sentido no Ser? Presos como estamos aos conteúdos programáticos, é mesmo muito difícil deixar fluir.Há muito medo.Medo de não ser entendido... medo de parecer ridículo... medo de não saber lidar com o que virá... medo de fazer besteira...Temos mesmo muito medo!Precisamos assumi-lo, não deixando que ele nos paralise. É preciso abrir-se para este desconhecido a fim de que, em muito, ele possa se fazer conhecido.Se não experimentarmos reconhecer no nosso próprio corpo o medo, o apego e também abertura, não construiremos as mudanças que se fazem necessárias e não seremos capazes de cuidar do Ser.Continuaremos presos às lógicas hegemônicas, às normas ditadas por um poder que nos é externo, que não está em nós integrado.Estamos cansados, exauridos de servir a esta ordem, porque sabemos que: "Em primeiro lugar, perante as condições do sistema-mundo ocidental não existe globalização genuína; aquilo a que chamamos globalização é sempre a globalização bem sucedida de determinado localismo. Por outras palavras, não existe condição global para a qual não consigamos encontrar uma raiz local, uma imersão cultural específica. Na realidade, não consigo pensar uma entidade sem tal enraizamento local [...] A segunda implicação é que a globalização pressupõe a localização. De fato, vivemos tanto num mundo de localização como num mundo de globalização. Portanto, em termos analíticos, seria igualmente correto se a presente situação e os nossos tópicos de investigação se definissem em termos de localização, em vez de globalização. O motivo por que é preferido o último termo é, basicamente, o fato de o discurso científico hegemônico tender a privilegiar a história do mundo na versão dos vencedores" [SANTOS apud Azevedo, 2001: XVI]. Saber que "o discurso científico hegemônico tende a privilegiar a história do mundo na versão dos vencedores" exige de nós, no mínimo, uma atitude que busque desconstruir muito do que aprendemos dela porque não tem nada a ver com a gente. Então, o que podemos como professores fazer nas nossas escolas?Criar espaço para o Ser-sendo...para o seu ser-sendo...para o ser-sendo de seus alunos...Farão isto apenas os que, pela sua experiência e reflexão, despertarem para esta realidade, os que resistirem à ordem dada, os que forem construindo a sua autonomia. Preocupados com os seres que estão formando, desejosos de que tenham mais qualidade de vida, os professores conseguem, nas suas práticas, encontrar espaço para o Ser, ser que é... sendo. Fico ainda pensando no quão é necessário, é fundamental que as escolas trabalhem com as histórias dos alunos, com suas raízes culturais, com suas memórias de modo que estes alunos possam ter consciência do seu enraizamento.Nesta experiência de terapia que estou vivenciando, pude de uma forma sentida, vivida, refletir também sobre as minhas raízes culturais.Quando o que acontece é um crescimento desproporcional das dimensões do Ser, faz-se necessário trilhar um caminho de volta. Quando conheci um pouco do trabalho de Antonio Nóbrega, artista pernambucano, fiquei encantada com a sua expressão.É fácil observar o quanto ele consegue integrar, neste trabalho, suas raízes.Neste momento parei para refletir sobre as minhas raízes, e era incômodo notar como eu tinha me distanciado delas.Fiz um movimento que ia me tornando um ser cada vez mais mental.E eu, desde muito cedo, fui me distanciando daquilo que constituía a cultura do meu povo (falo, aqui, da cultura dos meus pais, que também foram se distanciando, dos meus avós, dos nossos antepassados), na medida em que os seus saberes iam sendo substituídos por outros e não integrados.Pouco conheço desta cultura.Belas cantigas de roda que não aprendi a cantar, brincadeiras que não experimentei, as mais diversas expressões que desconheço. A escola ocupou um lugar muito grande na minha vida.O saber escolar representava poder E, a partir desta reflexão, fui naturalmente voltando.Primeiro, voltei a cuidar da minha casa, lavar roupas, cuidar do jardim, arrumar o meu quarto, cozinhar.Estas passaram a ser as atividades que mais me davam prazer e, há muito tempo, eu não as realizava.Este movimento foi me trazendo a memória da minha infância: a vida na roça, os banhos e as roupas lavadas na fonte, no riacho, os trabalhos na roça e em casa que a gente fazia, as visitas à casa das tias com a minha dedicação para cuidar de suas casas, as brincadeiras também com minha irmã e minhas primas.E eu era uma aluna tão calada, envergonhada.A minha cultura era desvalorizada na escola, então experimentava a sua negação, eu me sentia um livro em branco sendo preenchido por ela (pela escola).E valorizava muito o conteúdo desta. Neste processo de "volta para casa", não estava conseguindo nem pensar em fazer algo que exigisse de mim qualquer atividade mental.O meu corpo firmemente resistia.Diria estar sendo este texto o meu primeiro trabalho, dos últimos dois anos, que precisando de um maior exercício mental, eu não tenha encontrado fortes resistências do meu corpo.Também eu só o escrevi porque foi dele (do meu corpo) que os pensamentos, as idéias foram vindo.Não seria possível de outra forma.Por isso, esta característica autobiográfica. Acredito ser a nossa experiência existencial, as nossas reflexões sobre ela, o que de fato nos permite construir uma intervenção no mundo que possa ir tornando-o melhor, possibilitando que a gente vá melhorando a qualidade de vida. O corpo traduz a nossa presença concreta no mundo. A nossa existência e potencialidade se circunscrevem no nosso corpo. Com ele amamos, sonhamos, produzimos, sentimos, percebemos, nos constituímos como sujeitos. O que é importante para nós, educadores e educadoras, é o respeito por este corpo, o nosso e o do outro, dos nossos alunos, das nossas alunas, nossos colegas, nossas colegas, nossos companheiros e companheiras de existência. Corpos que carregam histórias e memórias, marcas que anunciam e denunciam, que falam... (TRINDADE) Educadores e educadoras podemos e precisamos contribuir para "devolver ao ser humano o corpo que lhe falta e a palavra perdida: Cuidar do Ser" (Leloup, 1996: 143).Este parece ser o apelo que a humanidade faz. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, Janete M. Lins de.A educação como política pública – 2. ed. ampl. – Campinas, SP: Autores Associados, 2001. – (Coleção polêmicas do nosso tempo; vol. 56). BARBIER, R.A Pesquisa-Ação. Tradução de Lucie Didio.Brasília: Líber Livro Editora, 2004. BYINGTON, Carlos Amadeu. Pedagogia Simbólica: a construção amorosa do conhecimento de ser – Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1996. BOFF, Leonardo.Princípio de Compaixão e Cuidado.Em elaboração com Werner Muller; tradução de Carlos Almeida Pereira. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. FREIRE, Paulo.Pedagogia do Oprimido.17ª. ed.Rio de janeiro: Paz e terra, 1987. LELOUP, Jean-Ives.Cuidar do Ser: Fílon e os terapeutas de Alexandria.Tradução de Regina Fittipaldi, Ephraim F. Alves, Lúcia Endlich Orth, Jaime Clasen. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1996. – (Coleção psicologia transpessoal). ________________.A arte da Atenção: para viver cada instante em sua plenitude.Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira – Campinas: Verus, 2002. MACEDO, Roberto Sidnei.A Etnopesquisa Crítica e Multirreferencial nas Ciências Humanas e na Educação. – Salvador, EDUFBA, 2000. ORLANDO, Simone M. G. O estudo da Folkcomunicação na graduação em jornalismo/ publicidade: fomentando reflexões para o exercício da cidadania. Em:http://reposcom.portcom.intercom.org.br/dspace/bitstream/1904/19140/1/2002_NP17ORLANDO.pdf [1] Representa a constituição de um fórum de pesquisa-ação-formação na área de currículo e formação continuada dos Pedagogos e Coordenadores Pedagógicos em serviço, coordenado por Cláudio Orlando(Pedagogo, Mestre em Educação, quando estudou: "O que querem os professores ante a formação continuada: itinerância, produção de sentidos e autorias nas narrativas docentes.",membro do FORMACCE – Grupo de Pesquisa em Currículo e Formação Docente da FACED/UFBA.
Este artigo traz uma reflexão sobre o papel dos profissionais da
educação frente à tarefa de cuidar do Ser, questiona-lhes o lugar de
formadores do ser humano. Faz uma rápida discussão sobre o sentido de
cuidar. Traz uma definição do termo palavra, formulado por Freire, para
enfatizar a importância de devolver ao ser humano a palavra perdida.
Discute a importância da escuta que possibilita saber sentir o universo
afetivo, imaginário e cognitivo, escuta do corpo e da palavra, para o
crescimento multidimensional. A autora utiliza da sua experiência
pessoal para exemplificar as suas formulações. Traz a idéia de
"observatório" como possibilidade de construção de um espaço para Ser.
Criticando uma prática pedagógica que fragmenta, assinala a necessidade
da integração das dimensões do ser. Critica o amontoado de conteúdos
que acaba por ocupar o lugar do Ser, levando-o ao esquecimento. Aponta
para a necessidade de uma abertura que permita a expressão do Ser.
Discute ainda a importância do trabalho da escola com as raízes
culturais dos alunos. Conclui com uma discussão a cerca da sua
experiência e do lugar que o seu corpo ocupou na construção deste
trabalho.