Criticidade de Bronckart à Hipótese de Desenvolvimento de Vygotsky

Por José Maurício SDS | 19/04/2023 | Educação

Criticidade de Bronckart à Hipótese de Desenvolvimento de Vygotsky[1] 

A pressuposição Vygotskiana de que o desenvolvimento da inteligência prática e o pensamento verbal é independente até o surgimento da fala na criança pode ser questionado. Essa afirmação é uma das problematizações elencadas por Bronckart (1997) ao considerar que tanto as primeiras capacidades cognitivas da criança, isto é, a fase pré-linguística do pensamento, como as primeiras capacidades comunicativas, ou seja, a fase pré-intelectual da linguagem, são construídas simultaneamente. Por intermédio da interação com o meio constrói-se pela mediação das intervenções sociais. Nesse contexto, o adulto tem papel preponderante no desenvolvimento da criança com relação a fala e porções de atividade executadas por ela. Partindo-se dessas considerações, este ensaio busca discutir três críticas levantadas por Bronckart sobre a hipótese do desenvolvimento de Vygotsky.

Ao revisitar o psicólogo bielorrusso, Bronckart (1997) analisa o interacionismo a partir de um ponto de vista da psicologia do desenvolvimento, tentado preencher espaços deixados pelas teorias comportamentais e inatistas. Assim, a interatividade do sujeito com o meio, modificado pela ação desse sujeito, é colocada no centro das críticas levantadas com relação à separação do pensamento e da linguagem defendidas por Vygotsky (2004).

No entanto, observa-se que os questionamentos apresentados a partir de um ponto de vista que insere nas discussões relações assimétricas e simétricas. Além disso, a problematização que envolve a parcialidade do paralelismo entre os estágios filogenético e ontogenético com a distinção entre essas raízes genéticas, é apontada a partir das cinco teses defendidas nas críticas.

A primeira crítica parte do fato de que Vygotsky (2004) adere que a primeira fase do desenvolvimento humano ocorre com o desenvolvimento do pensamento e da linguagem filogeneticamente, de forma distinta e independente de início. Com isso, observa-se que há uma separação entre estágios com duas raízes disjuntas. A essa disjunção estão linkadas o estágio pré-verbal da inteligência e o estágio pré-intelectual da linguagem.

Dessa forma, compreende-se que essa afirmação atesta que as capacidades das crianças de 15 meses para a resolução de problemas cognitivos, sem a recorrência da linguagem, estão na defesa da primeira raiz. Quanto à segunda raiz, observa-se que são os parceiros sociais que regulam o desenvolvimento sucessivamente da interação a partir das produções vocais. Some-se a isso as mímicas e gestos, que, seriam incomuns ao desenvolvimento do pensamento.

Contudo, de que forma se verifica falha nas afirmações a que Bronckart visualiza em Vygotsky? A resposta está no paralelismo parcial, defendido por Vygotsky (2004), ao qual a criança segue antes da aparição da linguagem, observando-se duas formas de desenvolvimento. A primeira, procedural, intencional com o mundo sem a mediação da linguagem e pelas mediações sociais no que há de físico. E a segunda, procedural, intencional com a mediação da linguagem e pelos instrumentos semióticos com o mundo social a partir dos parceiros sociais.  

No primeiro caso, a criança constrói capacidades de representação de objetos e das ações. No segundo, a criança constrói a capacidade de comunicação. Assim, compreende-se que a aparição da linguagem na criança, só seria possível com a fusão dessas duas raízes para se construir a emergência de uma capacidade de produção sonora. E com isso, o reconhecimento pelos que a cercam enquanto signos de uma língua natural.

Que outra crítica pode ser observada nas palavras de Bronckart, mesmo sabendo que ele bebeu na fonte do interacionismo de Vygotsky (2004)  para construir seu projeto conhecido como ISD, sobre as teses do bielorrusso, e até mesmo de Piaget? Uma resposta plausível estaria na contrariedade e insatisfatoriedade das proposições que englobam o papel da mediação instrumental inseridas no esquema basilar e epistemológico a que se refere o desenvolvimento da psicologia genética interacionista social, segunda crítica.

 Portanto, estaria ligado à incerteza na análise relacionados aos processos desenvolvidos na linha pré-verbal do desenvolvimento intelectual na conformidade do bielorrusso. Mas, de que forma se pode contestar a sua tese? A resposta pode estar na exposição de três problemas que envolve questões inseridas na filogênese, ontogênese e nas relações de interação social.

Dessa forma, entende-se que a primeira delas estaria ligado ao resultado da aparição e da interiorização da linguagem. Essa provoca a evolução que é decisória na transformação humana; a segunda estaria na iniciação do que era somente natural enquanto desenvolvimento, em analogia ao que se tem nas espécies animais, para se tornar sócio-histórico; e por último, a organização do funcionamento psicológico do indivíduo, construída pelas significações elaboradas por um grupo social ao longo da história. Nesse caso, um exemplo seria as significações cristalizadas pela língua natural em suas unidades e estruturas.

A contestação estaria ligada, dessa forma, a necessidade de aperfeiçoamento da proposta, uma vez que:

  1. A possibilidade de inteligência pré-verbal ser mecanizada, realiza-se a partir de ações originadas de um sentido subjetivo, o que pressupõe a falta de uma definição precisa das estruturas de ação, incorrendo na contradição.
  2. A tese central contradiz-se quando se aproxima, em definitivo, da posição piagetiana, a que ele pretende se opor com relação aos agrupamentos dos deslocamentos, à permanência do objeto e quanto ao período sensório-motor.
  3. A interação construída pela criança estabelece-se, em sua maior parte, com objetos como estatuto de instrumentos que são moldados pelos usos sociais. Dessa forma, não se pode generalizar a ponto de se sustentar uma comparação feita entre a inteligência dos artrópodes ou de chimpanzés, por exemplo, e a das crianças. Essa problemática remete à descrição da inteligência pré-verbal da criança implicada nos estágios que ela passa ao tratar os objetos do mundo em seus aspectos puramente físicos.
  4. Dada uma abstração ao estatuto de instrumento social, não se pode esquecer que em seu desenvolvimento ontogenético humano (criança), na primeira etapa, como no mundo animal, é observado que existem duas raízes disjuntas. Lembremos dos estágios pré-verbal da inteligência e pré-intelectual da linguagem.

Ao abordarmos a raiz genética da linguagem pré-intelectual, pode-se constatar que, do mesmo modo, ela se caracteriza pelo desenvolvimento de ajustamentos construídos por meio de ações. No entanto, observando-se as palavras de Bronckart (1997), verifica-se que tais ações são imediatamente socializadas e semiotizadas, agora com interações mediadas por signos.

Vemos, então, o surgimento de problemas, tais quais os supra abordados, com relação à linguagem em seu funcionamento na interação com o ambiente. Ela passa a ser objeto reduzido e após sua interiorização, encontra-se em forma de pensamentos. Em Vygotsky (2004), o pensamento da criança se dá de forma inicial em um todo confuso e inteiro. O próprio autor informa que o pensamento encontra na linguagem sua expressividade pela palavra de forma isolada, desmembrando logo depois.

Outra crítica é levada em consideração, a terceira: há a interiorização da linguagem como estrutura autônoma, ou seria, na afirmação de Vygotsky, a ação mediada pelos signos? Um possível resposta estaria no esclarecimento das relações colocadas entre ações e linguagens a partir de suas estruturas. É nesse sentido que pode se evocar uma estrutura da linguagem que ultrapasse questões do signo e de palavras organizadas, como bem mostrou Bronckart (1997).

Talvez, o sucesso das ideias de Vygotsky (2004) leve essa “chamada” pelo fato de ele não ter conseguido a obtenção de uma definição de unidades psicológicas objetiváveis, isto é, analisáveis do ponto de vista de suas propriedades específicas da atividade humana. É exatamente na ausência dessas unidades que se encontram dificuldades e contradições conforme se encontra nas palavras de Bronckart. E que solução poderia ser dada a esse posicionamento contrário e duvidoso levantado por ele, observando-se que há aceitação de uma orientação geral para o desenvolvimento nas ideias de Vygotsky (2004).

Em outras palavras, há o aceite do papel decisório nas significações socio-semióticas em que se constrói o pensamento. É nesse contexto que a apresentação da ação e o discurso são entendidos como unidades de análise da psicologia, iniciando-se pela ação significante e o evento. Ambas vistas por Bronckart (1997) sob um ordenamento de ação e de estruturas práticas de linguagem e da ordem do discurso. Por isso, observa-se a necessidade de uma análise efetiva dos processos na construção do pensamento no desenvolvimento humano, de forma não idiossincrática.

É dessa forma que as propostas de Vygotsky (2004) são reexaminadas por Bronckart com relação a ações, discurso e racionalização partindo-se de uma hipótese de desenvolvimento humano em que o psicólogo bielorrusso defende a impossibilidade e esterilidade de se ensinar os conceitos diretamente. Portanto, nessas três visões críticas, direciona-se a Vygotsky (2004) a ausência de uma verdadeira conceitualização praxiológica, sobretudo levando em consideração a disjunção em estágios pré-verbal da inteligência e pré-intelectual da linguagem partindo-se de um paralelismo filogenético parcial.

Assim, a crítica se fundamenta no fato de que se enfatiza o papel decisivo da atividade de linguagem, na construção das próprias ações e dos conhecimentos declarativos no desenvolvimento da inteligência prática e da linguagem na criança dadas separadamente. Além dos que, o fato de que só haja uma convergência de ambos após 15/18 meses de vida. Finalmente, compreende-se suas críticas devido a sua crença de que a criança é imediatamente imersa em um mundo de pré-construídos sociais mediatizados pelas suas relações com o meio ambiente e construção de suas primeiras imagens mentais.

REFERÊNCIAS 

BRONCART, Jean-Paul. Ação, discurso e racionalização: a hipótese de desenvolvimento de Vygotsky revisitada In: BRONCART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano.  Campinas: Mercado de Letras, 2006. p. 59-91. 

VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. In: VYGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 521 p. Título original: Michliênie Rietch. p. 395-485.                                                                                                     

 

[1] José Maurício Santos da Silva, doutorando em Linguística (Universidade Federal do Ceará - UFC). jphmss69@gmail.com. Fortaleza-CE, nov. 2022.

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