Crítica de Rawls ao utilitarismo de Mill

Por Germano Brandes | 10/05/2016 | Filosofia

A crítica de Rawls ao Utilitarismo de Mill em favor da Justiça

 

A Justiça sempre ocupou um lugar central na história da Filosofia, como pedra angular de todo o edifício da ética. Com efeito, na antiguidade a Justiça anima e centraliza o sistema das virtudes, tanto na Grécia como no mundo cristão.

Na modernidade, com o surgimento das teorias contratuais do Estado, a Justiça é o princípio ordenador da vida política, nesta perspectiva em nossos dias, a teoria da Justiça mais famosa é a de J. Rawls, construída para interpretar situações existenciais diferentes. Num sentido muito geral, entende-se que a teoria de J. Rawls é apropriada aos problemas sociais do primeiro mundo, onde as estruturas políticas consolidadas respeitam os postulados básicos da Justiça mínima.

 

O tema central das obras de J. Rawls é a Justiça. Para evitar equívocos conceituais, convém afirmar, que a justiça não é tomada por J. Rawls nem em sentido aristotélico e nem propriamente no sentido kantiano; isto é, para ele a justiça não é uma virtude e nem um direito, mas sim um princípio fundador de uma sociedade bem ordenada.

A ética-política de J. Rawls é uma tentativa de solução de um conflito básico de ordem social: a disputa dos bens primários produzidos por uma comunidade política. Como os bens são quantitativamente limitados e sem medida o apetite de cada cidadão, torna-se necessária a intervenção de um princípio que ordene a distribuição, no seio da comunidade política.

Portanto, a partir da idéia de conflito social poder-se concentrar a ética-política de J. Rawls em três tempos: (a) reconhecimento do conflito entre os bens disponíveis escassos e o desejo ilimitado de posse por parte dos indivíduos; (b) intervenção da teoria da justiça instaurando a sociedade bem ordenada (justa); (c) a consolidação da comunidade política onde prevalece a cooperação, o senso da justiça e as virtudes da cidadania.

Segundo Rawls(2000) o ponto essencial é que, em matéria de justiça política, nenhuma concepção moral geral pode fornecer um fundamento publicamente reconhecido para a concepção da justiça no quadro de um Estado democrático moderno. O mesmo distanciamento observa-se em relação à filosofia, à política e à religião, o autor evita o quanto possível as questões filosóficas, morais e políticas sujeitas a controvérsias. Os motivos desta reserva ligam-se à convicção de que estas doutrinas tratam de concepções globais questionáveis e que, por isso, não podem fornecer uma base comum e aplicável para uma concepção política da justiça num Estado democrático.

Uma segunda observação refere-se à ocasião do aparecimento da Teoria da Justiça. Trabalho do gênero ético-político, é o tratado mais comentado nos últimos trinta anos no mundo anglo-saxônico. A ele reportam-se os estudiosos da filosofia política, do direito, da psicologia, da economia, da sociologia, religião e moral. A obra atrai também, pelo constante recurso aos meios recentes de argumentação, como a teoria dos jogos e a teoria da decisão.

Certamente o motivo mais forte do sucesso de J. Rawls é que sua tese representa um contra-modelo do utilitarismo que por mais de um século dominou, sem ser molestado por teorias rivais o pensamento ético-político anglo-saxônico. J. Rawls, lançou uma obra realmente alternativa em qualidade e profundidade:

Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros. (RAWLS, 2000, p.04)

 

Portanto, J. Rawls começa o trabalho colocando com clareza sua posição original, frontalmente contraria ao Utilitarismo.

O que é uma sociedade justa?

 

Já no primeiro parágrafo J. Rawls anuncia a tese principal do tratado: “a justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é para os sistemas de pensamento” (RAWLS, 2000, p. 03). Portanto, a justiça como equidade ( Justice as fairness) deverá ocupar-se com problemas da vida social que só se resolvem adequadamente pela instauração de princípios que: (a) fundam uma nova ordem política; (b) determinam uma justa repartição dos bens (RAWLS, 2000). Assim, Rawls procura simplesmente princípios de justiça destinados a servir de regras para uma sociedade bem ordenada  na qual se supõe que cada cidadão age com justiça e contribui para a manutenção das instituições justas. Esta é a função prática da justiça como equidade, que deve ser o imperativo categórico da sociedade política. Mesmo a liberdade, tão fundamental na filosofia política moderna, cai sob o império da justiça à qual cabe estabelecer-lhe os limites do exercício.

Portanto, para J. Rawls os princípios da justiça não são o resultado de uma investigação teórica, mas “são objeto de um contrato original”. Pelos princípios que resultam deste acordo, segundo Rawls(2000) os homens devem decidir previamente as regras pelas quais vão arbitrar suas reivindicações mútuas e a carta fundadora da sociedade; enfim, o grupo social deve decidir, uma vez por todas aquilo que, em seu convívio, deve ser considerado justo ou injusto.

Dois são os princípios de justiça da sociedade bem ordenada. J. Rawls os apresenta em duas redações, uma provisória e outra definitiva. De acordo com a última redação tem-se:

Primeiro Princípio

1. Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos.

Segundo Princípio

2. As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo:

(a) tragam o maior benefício possível para os menos favorecidos, obedecendo às restrições do princípio da poupança justa, e

(b) sejam vinculados a cargos e posições abertos a todos em condições de igualidade eqüitativa de oportunidades. (RAWLS, 2000, p. 333)

O primeiro é o princípio da liberdade e dos direitos humanos fundamentais. Garante os direitos de participação política, de opinião, de reunião, de consciência, de religião etc. Este é de fato o imperativo categórico da filosofia política de J. Rawls e o fundamento do Estado de direito e da democracia constitucional. Por este princípio, a teoria de J. Rawls choca-se frontalmente com toda a tradição utilitarista que admite sacrificar os direitos básicos para obter maiores utilidades materiais. Por exemplo, se a escravidão fosse a condição de ampliar substancialmente as utilidades globais, o Utilitarismo a aceitaria.

O segundo princípio, em sentido geral, estabelece a regra do primado da justiça sobre o postulado Utilitarista da eficácia e da maximização das utilidades e vantagens materiais. Concretamente, o segundo princípio refere-se aos interesses materiais, à repartição equitativa dos bens primários, dos encargos, dos deveres e das vantagens sociais. Aqui trava-se o debate com as teses igualitaristas dos marxistas ortodoxas contra as quais J. Rawls afirma as desigualdades sociais que, intoleráveis no seio do primeiro princípio, não podem ser negadas na ordem social, econômica e cultural regida pelo segundo princípio. São aceitáveis desde que beneficiem os mais desfavorecidos na escala social. De acordo com Rawls(2000) é preciso que a sociedade bem ordenada maximize a condição mínima: uma vez aceito o princípio da diferença, deduz-se que o mínimo (social vital) deve ser fixado num nível que maximize as expectativas do grupo menos favorecido.

Para Rawls(2000) a segunda parte do segundo princípio é chamada o princípio da diferença. Este princípio admite a desigualdade inerentes aos cargos públicos e nas vantagens contanto que se respeite uma condição: que todos os cidadãos tenham igual oportunidade de acesso a estes postos. Os critérios de acesso serão os da aptidão, formação e competência publicamente comprovadas. Dito negativamente, ninguém pode ser excluído por razões circunstanciais de cor, sexo, idade, convicção política e condição econômica.

Segundo Rawls(2000) o primeiro princípio é absolutamente prioritário e sempre inegociável. A liberdade nunca pode ser negociada por ofertas materiais e sociais de que fala o segundo princípio. As limitações da liberdade são determinadas somente pela própria liberdade para ordenar a coexistência livre. Entre os dois princípios vigora uma ordem lexicográfica.

Enquanto o primeiro princípio recebeu aceitação irrestrita, é muito difícil defender o segundo princípio de modo convincente. Quais são as pessoas e grupos que devem ser classificados como menos favorecidos? Como fazer esta triagem numa sociedade desenvolvida economicamente e de ampla tradição democrática? O problema agrava-se quando se pensa numa sociedade subdesenvolvida: nesta situação, quais são as pessoas e grupos que podem ser excluídos do quadro dos “menos favorecidos”? Por onde, então, começar a Justiça como eqüidade? J. Rawls nunca respondeu satisfatoriamente a estas objeções.

Coloquemos agora outra pergunta: porque são escolhidos estes princípios e não outros? Quem os escolhe e em que condições?

Rawls(2000) responde com uma famosa ficção. Imagina uma situação hipotética na qual os “membros fundadores” da sociedade bem ordenada se encontram em situação ideal que ele chama de posição original (original position). Nesta situação cada um dos participantes é inteiramente livre, consciente e isento de influência de pessoas e grupos.

Ademais, a ficção supõe que os participantes ignoram todas as diferenças que existem entre eles; são por assim dizer, encobertos por um “véu de ignorância” (veil of ignorance) a respeito da condição social própria e dos companheiros; ficam, deste modo, esquecidos e colocados entre parênteses o status social de cada um, os dotes naturais, a idéia de bem-estar individual e social que possam obter na nova sociedade. Esta é uma situação de incerteza. Como devem proceder os participantes da posição original para esclarecer os princípios da Justiça? “Que estratégia adotarão? J. Rawls sugere a estratégia do MAXIMIM. É a estratégia do jogador que, nas apostas, organiza as alternativas a partir do pior resultado possível, isto é, maximiza a alternativa mínima. J. Ralws sugere esta estratégia aos participantes da posição original que deverão escolher, dentre várias teorias, os princípios da Justiça social. É a opção conservadora de quem não quer correr riscos. Na posição original; segundo Rawls (2000) a pessoa que escolhe possui uma concepção de bem que a leva a preocupar-se muito pouco, se é que se preocupa, com os ganhos que poderia ter acima do rendimento mínimo que efetivamente pode estar certo de obter se seguir a regra do MAXIMIM. Não vale a pena correr riscos para obter maiores benefícios. É nesta posição original de total isenção e de plena liberdade que o acordo da sociedade bem ordenada deve ser firmado: é o contrato social da era contemporânea. Um contrato mínimo, conservador mas com chance de receber o apoio geral da sociedade.

Uma vez escolhidos os dois princípios, tem-se um quadro teórico e abstrato pois ainda permanecem desencarnados e sem efeito prático as noções de liberdade, equidade, Justiça e de atendimento “aos menos favorecidos”. J. Ralws dedica toda a segunda parte de sua obra aos esforços de “ilustrar o conteúdo dos princípios da justiça” e mostrar como podem ser postos em prática.

De acordo com Rawls(2000)  saídos da posição original e levantando “o véu da ignorância”, os signatários dos dois princípios da justiça encontram-se no mundo real, com suas imperfeições e numa sociedade injusta. Para concretizar a nova teoria de sociedade justa, será necessário convocar uma assembléia constituinte com a função de elaborar uma constituição baseada nos dois princípios da justiça. Nesta etapa serão estabelecidos objetivamente os direitos e as liberdades. Serão também definidas as leis da organização social, econômica e da igualdade de oportunidades.

Uma das mais sérias e repetidas objeção à teoria da Justiça como eqüidade: de onde tiram os participantes do contrato social os dois princípios de Justiça? Deveria a sociedade começar de novo, sem nenhuma ligação com a experiência histórica das gerações passadas? Seria o novo contrato social a-histórico?

A posição original e o levantamento do véu da ignorância, pelo menos aparentemente, rompem com a experiência de uma comunidade. Em escritos posteriores, J. Rawls explica que os princípios da Justiça como equidade não são atemporais e abruptamente introduzidos na vida de uma democracia constitucional. Pelo contrário, eles se originam no conceito ordinário de justiça. A experiência histórica de liberdade e democracia criam nas pessoas, nos grupos e na sociedade o senso da justiça que se traduz em sentenças sapienciais, “as nossas convicções ponderadas” (our copnsidered judgements) que serão convertidas em princípios da nova sociedade.

Assim, Rawls ao enfatizar em seus princípios a Justiça Social contrapõe-se ao Utilitarismo:

Tentei elaborar uma teoria que nos possibilitasse entender e avaliar esses sentimentos acerca da primazia da justiça. A justiça como eqüidade é o resultado; articula essas opiniões e embasa a sua tendência geral. E embora obviamente não seja uma teoria plenamente satisfatória, ela oferece, julgo eu, uma alternativa para a visão utilitarista, que por muito tempo dominou nossa filosofia moral. Tentei apresentar a teoria da justiça como uma doutrina sistemática viável, de modo que a idéia de maximizar o bem não se impusesse por falta de outra alternativa. (Rawls, 2000, p.653-4)