CRISE DA IDENTIDADE E PERCEPÇÃO NA PÓS-MODERNIDADE: QUERO SER JOHN MALKOVICH

Por Douglas Pupim | 24/06/2016 | Sociedade

CRISE DA IDENTIDADE E PERCEPÇÃO NA PÓS-MODERNIDADE: QUERO SER JOHN MALKOVICH.

 

Douglas Pupim[1]

Maria Olimpia Gouvêa[2]

 

RESUMO

 

O presente artigo objetiva estabelecer um paralelo entre as concepções de pós-modernidade e os conceitos filosóficos acerca da percepção humana do ponto de vista da fenomenologia de Pierce. O enfoque é a crise nos referenciais representativos culturais que fomentam mudanças nos valores, na sexualidade, no consumo e em todas as formas de expressão da sociedade. É considerada nesse estudo a fragmentação da identidade individual, suas origens, além da consequente individualização do sentir. Para tanto, é utiliza-se o estudo de caso referente ao filme “Quero ser John Malkovich” que contextualiza com essas questões.

Palavras Chave: Percepção. Identidade. Consumo. Sociedade. Pós-modernidade.

ABSTRACT

 

This article aims to establish a parallel between the conceptions of postmodernity and philosophical concepts about human perception point of view of Pierce. The focus is the crisis in representative cultural references that encourage changes in values, sexuality, consumption and all forms of expression of society. It is considered in this study the fragmentation of individual identity, its origins, in addition to the consequent individualization of feeling. Therefore, it is used the case study of the film "Being John Malkovich" that contextualizes these issues.

 

INTRODUÇÃO

 

O período posterior à queda do muro de Berlim retratado por muitos como pós-modernidade, ao lado do avanço descomunal da tecnologia na comunicação, nas artes e na genética, corresponde às mudanças paradigmáticas no modo de se pensar a sociedade e suas relações. Representa uma ruptura, uma constatação da impossibilidade da razão humana em conceber um modelo de mundo totalizante e estável.

A dissolução dos referenciais de realidade ocasionou na crise da representação nas artes, nas linguagens e na ética de toda sociedade ocidental. Os padrões estéticos figurativos, que se mantiveram constantes até o pós-guerra, romperam para possibilidades de discursos infinitos. Surge agora, frente a desilusão ideológica totalitária, a valorização da “entropia” pela constatação da incerteza ou imprevisibilidade.

A modernidade, intervalo histórico entre a revolução francesa e o iníco do século XX, caracteriza-se pela confiança na ciência, bem como a razão, como mentores do progresso humano. Estes princípios deixaram de ser referências intelectuais, sociais e artísticas a partir do momento que a realidade mostrou um resultado decepcionante: os valores da modernidade. Quando nos damos conta do fracasso dos ideais ilumistas é que se inicia a era da pós-modernidade.

              Para o sociólogo polonês Zygmunt, Bauman (2000), o que vivemos nem pode ser denominado como “pós” modernidade, pois nada da sociedade moderna foi superado ainda, existindo, entretanto, uma continuação da modernidade que condensa apenas alguns pontos diferentes, mantendo seu núcleo capitalista intocável. A principal mudança observada se dá pela sua incapacidade de tomar forma fixa. É o que Bauman chama de modernidade líquida resultado da ideologia pós-modernista.

              A modernidade atual é “leve”, “líquida”, “fluida” e muito mais ágil que a modernidade “sólida” que superou. Vivemos numa sociedade de relações efêmeras, em que o poder está desterritorializado e que o espaço e o tempo não compõem mais uma dicotomia única. O tempo pode ser superado pela velocidade, enquanto o espaço pode ser suplantado pelas tecnologias que permitem interagir instantaneamente com o mundo todo. O que predomina nas relações pessoais são as “conexões”, termo usado pelo autor para descrever as relações frágeis. São conexões porque representam uma união que pode se desconectar facilmente, uma vez que o indivíduo flui sem certezas ou projetos de longo prazo, moldando-se de acordo com as necessidades atuais.

 O sujeito líquido não tem mais referenciais de ação: toda a autoridade de referência é colocada em si e é sua responsabilidade construir ou escolher normas a serem seguidas. Como consequência ele se volta para o acúmulo de estímulos e sensações, perpetuando a doutrina hedonista que os sujeitos pós-modernos foram condicionados a praticar, direcionando-os cada vez mais ao egocentrismo e fortalecendo a noção do indivíduo isolado. Esta individualização a que se refere Bauman indica “a corrosão e a lenta desintegração da cidadania”.

Nesse contexto imediativo, as imagens publicitárias ecoam nos canais de comunicação e perpetuam conceitos irrisórios como o da felicidade plena, produzindo um espetáculo midiático inebriante de discursos bem definidos, que contrasta com a fragmentação da vida real. A busca de prazer para superar o tédio e as angústias do cotidiano esbarra nas limitações do próprio corpo e culmina no consumo desenfreado de bens e serviços a fim de atingir a autossatisfação e consequentemente a felicidade. Isso gera relações cada vez mais vazias e unilaterais, uma vez que o indivíduo desliza entre espaços escolhendo as melhores opções, que lhe ofereçam melhores vantagens nessa aglutinação de sensações. É como se toda relação representasse uma espécie de consumo.

A IDENTIDADE NO PÓS-MODERNO

 

Possuir uma identidade no contexto social significa compartilhar ideias e ideais com um determinado grupo. Os velhos modelos identitários, que serviram de alicerce ao mundo durante muito tempo, estão em declínio e fazem surgir múltiplas identidades que apropriam-se do sujeito moderno, cada vez mais fragmentado.  O homem não possui mais identificação fixa. Isto ocorre porque um tipo de mudança estrutural está submetendo as sociedades à desintegração de panoramas culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade. O que antes era uma definição sólida, afirmativa e localizadora do indivíduo, assume agora diferentes aspectos em momentos diferentes.

Nessa concepção sociológica, a identidade é a imagem que preenche o espaço entre o "interior" e o "exterior" - entre o pessoal e o público. A partir de seu desenvolvimento, o pós-modernismo condena o homem à constante revisão de tudo o que é perene e lento, inclusive a autorreflexão. Para argumentar:

[...] Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo. [...] (HALL, 2002, p.9).

Para melhor entendimento do desenvolvimento identitário, Hall classifica três concepções muito distintas e subsequentes de identidade: sujeito do iluminismo, sujeito sociólogo e sujeito pós-moderno. O sujeito do iluminismo era centrado, dotado da capacidade de razão, de consciência e ação. Isso significa que a identidade de uma pessoa correspondia ao seu núcleo. O sujeito sociológico corresponde à consciência da relação com as outras pessoas relevantes para ele. Refletia a crescente complexidade do mundo moderno. Nesse caso a identidade é formada de uma interação entre o eu e a sociedade.

Por sua vez, o sujeito pós-moderno não tem uma identidade permanente. Nesse caso a identidade torna-se uma “celebração móvel” formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais intencionamos ser representados nos sistemas culturais aos quais pertencemos. Vemos que até mesmo a identidade nacional, construída no sentido de produzir uma sensação de pertencimento, não estabelece mais laços intrasponíveis. As pessoas assumem diferentes identidades em diferentes momentos. Nossa identificação está sendo continuamente deslocada, pois vivemos em constante conflito entre identidades contraditórias, levando-nos de lá para cá.

O CORPO É UM SENSOR

 

               O corpo apresenta sua importância à medida que representa uma imagem dentro da realidade do espetáculo. Para vários autores como Baudrillard (1997) e Debord (1996), a cultura pós-moderna é aquela em que se confunde o espetáculo com a realidade, fomentando subjetividades cada vez mais incapazes de fazer tal distinção. Dessa forma, o corpo como “ferramenta” capaz de articular um sujeito ávido por reconhecimento, reflete o vazio do viver contemporaneamente, ao passo que se torna mais conveniente a aparência padronizada que os próprios valores.

Tudo o que conhecemos do mundo chega até nós através do corpo e seus cinco sentidos.  Os estímulos internos e externos se propagam através de células nervosas que vibram devido aos impulsos, uma série de disparos que variam conforme o ritmo de chegada. Os órgãos sensoriais são responsáveis por decompor o que é recebido, permitindo que o cérebro construa um modelo representativo interno. Alguns sentidos, entretanto, possuem maior influência nesse processo. Segundo Santaella, para argumentar:

[...] Devido a razões de especialização evolutiva, 75% da percepção humana, no estágio atual da evolução, é visual. Os outros 20% são relativos à percepção sonora e os outros 5% restantes aos outros sentidos [...] (2011, p. 1).

Olhos e ouvidos são, portanto, órgãos sensoriais com conexões diretas ao cérebro, em oposição aos outros sentidos que são mais viscerais. Sendo assim, visão e audição constituem mais do que canais de transmissão de informações. São codificadores e decodificadores das informações recebidas. Como consequência inúmeros sistemas de signos visuais (a escrita, por exemplo) e sonoros (música) foram criados pela humanidade, bem como extensões desses sentidos (telescópios, microscópios, radares, etc.) que acentuaram essa dominância.

No processo perceptivo, entretanto, surge a dúvida referente ao papel da memória. Há a hipótese empiricista em que a projeção das memórias e o associacionismo são empregados para atribuir significado às informações sensoriais. Carece de explicação, porém, como certa experiência imanente tem acesso ao passado que a envolve. Fato é que os receptores classificam com mais facilidade os estímulos que de alguma forma foram armazenamos, como um nome, um rosto familiar, uma voz conhecida. Essa “bagagem” memorial condiciona os sentidos, não como uma galeria de imagens ou impressões completas em si próprias, mas como uma atmosfera, um horizonte interferindo diretamente na percepção. Segundo o psiquiatra ALVARENGA, para argumentar:

“Percepção é a capacidade de associar informações sensoriais à memória e à cognição de modo a formar conceitos sobre o mundo e sobre nós mesmos e orientar o nosso comportamento” (2010).

Para Charles Sanders Peirce, que buscou revelar em sua teoria geral das representações as formas como o indivíduo dá significado a tudo que o cerca, a concepção semiótica consiste numa tríade: Primeiridade (aspectos sensoriais e pré-reflexivos como cor, forma, volume, som, textura etc.), Secundidade (factual e manifestante, entra na relação com o outro inserido no tempo e no espaço) e Terceiridade (potencial e previsão, conexão entre qualidade e fato). Segundo PIGNATARI, para ilustrar e esclarecer a divisão dos estados perceptivos:

“Estou caminhando por uma via de um grande centro urbano, sem que nenhuma ideia me ocupe a mente de modo particular e nenhum estímulo exterior enrijeçam a minha atenção: em estado aberto de percepção cândida, digamos. Ou seja, em estado de primariedade. Por um acidente qualquer – um raio de sol refletido num vidro de um edifício – minha atenção isola o referido edifício do conjunto urbano, arrancando-me da indeterminada situação perceptiva do estado anterior, ancorando-me no aqui-e-agora da secundidade. Em seguida, constato que essa construção é um “arranha-céu de vidro”, que se insere no sistema criado por Mies van der Rohe, nos anos 20; que Mies, por seu lado, nada mais fez do que desenvolver as possibilidades construtivas do aço e do vidro, coisa que Paxton já havia feito no seu famoso “palace made o’windows” (Thackeray), o Palácio de Cristal, de Londres, em 1851 etc. etc. Este estado de consciência corresponde à terceiridade.” (2004 p. 46).

Os cinco sentidos coexistem e interagem entre si, sendo indissociável a contribuição de um ou outro para a configuração total da percepção. Apenas experiências particulares podem sobressair determinada qualidade sensorial, destacando-a no campo perceptivo. O sentir nasce essencialmente de um estado pré-reflexivo. Não corresponde a um registro passivo, nem a um significado imponente. O sentir é a coexistência com algo, é a acepção desse algo a fim de torná-lo nosso, antes mesmo de qualquer reflexão ou iniciativa. Consiste numa atividade anônima, com final imprevisível.

O sujeito é uma subjetividade encarnada e o fenômeno da sua experiência é inseparável do mundo. Integramos duas visões distintas de espaço: como espaço podemos compreender o mundo real, um gigantesco recipiente que comporta as características objetivas; mas existe também a concepção de espaço subjetivo, caracterizado pela transcendência do sujeito unificado, onde ele  concretiza suas experiências. O corpo é uma potência e o mundo é um convite à ação. O vir a ser da objetividade depende da orientação espacial, que ancora em seu direcionamento o mundo das emoções, dos sonhos, dos mitos e da loucura, bem como o mundo da reflexão.

ESTUDO DE CASO: QUERO SER JOHN MALKOVICH

 

Taxado muitas vezes como bizarro ou sem sentido, o enredo do filme “Quero Ser John Malkovich” é uma parábola contemporânea e só pode ser analisado se entendido como tal. Com direção do então estreante no cinema Spike Jonze, o longa possui um argumento simples e ao mesmo tempo mirabolante, fruto da mente criativa do aclamado roteirista de Hollywood Charlie Kaufman. “Um filme deve ter a personalidade de quem o dirige”, era o que afirmava veementemente os “Nouvelle Vaguista”, franceses nos anos 50. Eles viam o diretor como o verdadeiro “autor” dos filmes, sendo sua responsabilidade o sucesso ou fracasso destes. Essa concepção que recebeu o nome de “teoria do autor” até faz sentido em muitos casos, mas alguns roteiristas, principalmente Kaufman, representam um ponto de interrogação nessa suposição, que não faz justiça aos demais membros da equipe de um filme.

Sobre o filme: imagine você folheando o jornal, tentando se concentrar nas notícias em meio às suas próprias inquietações, quando de repente se depara com o seguinte anúncio: “Sempre quis ser outra pessoa? Agora você pode. Visite J.M. Inc.”; muitos provavelmente iniciariam uma incursão pelas suas frustrações e anseios para finalmente concluírem que esse talvez seja um desejo recorrente. Basta dar uma busca no Yahoo pelo termo “quero ser outra pessoa” para ter uma ideia, através da quantidade de páginas com questionamentos extremamente pessimistas, sobre o quão corriqueira é esta ideia.

Mas como seria ser outra pessoa? É essa possibilidade que o filme cogita, e a partir dela muitas outras questões emergem. O enredo é sobre um titeriteiro (manipulador de marionetes) desempregado, chamado Craig Schwartz, que após experimentar várias desilusões artísticas decide procurar um emprego nos classificados. Ele se depara com um anúncio atípico, que curiosamente se encaixa perfeitamente no seu perfil, pois solicita homens de dedos ágeis e baixa estatura para vaga de arquivista. A empresa, que ocupa o andar sete e meio de um prédio comercial, obriga os funcionários a andar curvados, já que o teto fica mais ou menos um metro e meio do chão. Admitido na entrevista, Craig ocupa seu tempo entre o trabalho, a paixão não correspondida que nutre pela executiva da empresa Maxine, o casamento estranho que divide com sua esposa Lotte e os inúmeros animais que ela cuida e conserva no apartamento, além do seu hobby de manipular bonecos.

Certo dia por acidente, Schwartz descobre atrás dos armários uma porta que guarda um túnel pequeno e escuro, que mais adiante se revela uma passagem, um canal direto para a mente do famoso ator John Malkovich. Por 15 minutos o titereiro pode sentir o que sente Malkovich: ver o que ele vê, ouvir o que ele ouve, enfim, provar todas as sensações de estar na pele de um ator de Hollywood. Passado esse tempo ele é expelido para uma estrada nos arredores da cidade. Sua esposa, pra quem ele revela o fato, também experimenta e fica extremamente comovida.

Craig imediatamente conta sua experiência para Maxine, que tem a ideia de comercializá-la. Com um anúncio no jornal (aquele que citei três parágrafos acima) eles atraem inúmeros desapontados com a própria existência que anseiam por trocar de identidade. Posteriormente, durante um jantar na casa do Dr. Lester, o chefe de Craig, que alega ter 105 anos, Lotte descobre por acaso uma sala que parece ter alguma relação com o misterioso canal: as paredes estavam todas preenchidas com fotos e registros sobre a vida de John Malkovich. Paralelamente surge um triângulo amoroso improvável: Maxine se apaixona por Lotte enquanto ela está na consciência de John Malkovich.

O ápice do delírio sucede quando o próprio Malkovich (que no filme interpreta a ele mesmo) descobre o empreendimento que oferece visitas à sua mente e resolve experimentar também, exigindo posteriormente que aquilo tenha um fim. Para poder se relacionar com Maxine, Craig aprende a controlar as ações de Malkovich, tornando o corpo do ator uma marionete e permanecendo permanentemente em sua consciência.

Lotte, que fora presa por seu marido numa jaula, consegue escapar com a ajuda de seu chimpanzé. Ela vai até a casa de Dr. Lester que revela a ela todo mistério: Dr. Lester é apenas um corpo receptor utilizado para acomodar uma consciência que se apresenta como Capitão Mertin. Ele alega ter descoberto há 90 anos um portal que levava a um corpo recipiente, e que dessa forma ele poderia viver eternamente pulando de recipiente em recipiente. Também apresenta a ela outras inúmeras pessoas idosas que se reuniam em sua casa para dividirem com ele o próximo recipiente, que só pode ser preenchido quando atingir a maturidade de 44 anos: John Malkovich. Enquanto isso Schwartz, no corpo de Malkovich, se casa com Maxine e usa a visibilidade do ator para lançar sua carreira de titereiro.

Passados oito meses, se aproxima a data do quadragésimo quarto aniversário de Malkovich, que a essa altura já é um titereiro consagrado e aguarda um filho com sua esposa. Dr. Lester e seu grupo, na tentativa de expelir Craig de seu recipiente, sequestram Maxine. Já na empresa onde é mantida refém, Maxine utiliza o portal para fugir de Lotte que a ameaça com uma arma por ter sido abandonada. As duas iniciam uma corrida por memórias do subconsciente do ator, já que a consciência era toda dominada por Craig. Este por sua vez aceita deixar o corpo e cede lugar ao grupo de Lester. Por fim Maxine revela que a criança sendo gerada dentro de si foi concebida enquanto Lotte estava em Malkovich, e elas tornam-se um casal. Só resta a Schwartz contemplar impotente sua amada pelos olhos da filha, próximo corpo recipiente de Dr. Lester.

O filme é estado unidense e classificado no gênero fantasia, foi lançado em 1999, possui 112 minutos de duração e inclui no elenco, além do próprio John Malkovich, os atores John Cusack como Craig Schwartz, Cameron Diaz como Lotte e Catherine Keener como Maxine.

O CORPO É UMA PRISÃO

 

Com base nessa estrutura podemos concluir que a experiência perceptiva dos personagens que por 15 minutos ingressam em Malkovich limita-se à primeiridade, vivenciando passivamente os aspectos sensoriais da percepção do ator. Quem determina então os outros níveis?

A terceiridade é determinada pela consciência de cada um, já que consiste em reflexões e projeções. O mistério está na secundidade: em meio ao conjunto infinito de signos que nos é exposto a todo o momento, quem direciona a atenção e isola os estímulos mais pertinentes? Essa função recorre sempre à consciência dominante. Independente da quantidade de visitantes em sua mente, Malkovich podia controlar suas ações e direcionar sua atenção, exceto quando Craig utiliza suas habilidades de titereiro para dominar por completo o corpo receptor.

 “Ser” John Malkovich consiste em receber todos os estímulos e sentir tudo que sente o ator. Ser é sentir. Eu sou você quando sinto o que você sente. É o complemento do cogito cartesiano, sucessão que fora sugerida por Kierkegaard: de “penso, logo existo” para “sinto, logo sou”. Eu só posso “ser” através do corpo, da matéria que me compõe. O pensamento é o que dá a dimensão da minha existência. O filme nos apresenta a noção de dualidade dissociativa entre corpo e cognição, como proposto por Descartes e interpelado posteriormente por inumeros teóricos, onde ambos coexistem e relacionam-se sem a presença de um vínculo intransigente. Nesse contexto, como classificar a percepção de um corpo com múltiplas consciências? A hipótese mais provável é que cada uma das consciências produz uma percepção própria a partir dos mesmos estímulos.

Além da perca da identidade que aprisiona o sujeito na sua condição de carne e osso tal qual ele veio a esse mundo, os próprios sentidos são limitadores da percepção quando não conseguem estender sua compreensão à complexidade de tudo que é externo. Segundo BLAKE (1790, p.13): “Como você poderia saber que cada pássaro que corta a estrada dos ares é um imenso mundo de deleite, bloqueado por seus cinco sentidos?” Se por um lado o corpo representa a porta de entrada de todas as informações que assimilamos, por outro é um instrumento incapaz de compreender o mundo em toda sua complexidade. Segundo BLAKE, (1790, p.24): “Se as portas da percepção fossem abertas, tudo apareceria ao homem tal como é, infinito.”

Segue abaixo um trecho da música My Body Is A Cage, que sintetiza um pouco dessa limitação:

“Meu corpo é uma prisão

Que me impede de dançar com aquele que amo

Mas minha mente segura a chave

Meu corpo é uma prisão

Que me impede de dançar com aquele que amo

Mas minha mente segura a chave

Estou aqui sobre o palco

De medo e de dúvidas internas.

É uma peça horrível,

Mas eles aplaudirão de qualquer maneira

Meu corpo é uma jaula

Que me impede de dançar com aquele que amo

Mas minha mente segura a chave

Fique perto de mim

Minha mente possui a chave

Estou vivendo em uma época,

Que chama a escuridão de luz

E apesar de minha língua estar morta,

Suas formas ainda preenchem a minha cabeça

Estou vivendo em uma época

Cujo nome não sei

E apesar do medo me manter em movimento,

Meu coração bate bem devagar”

(Arcade Fire. “My body is a cage” Neon Bible.)

A existência, tanto da criança em desenvolvimento quanto do adulto em seu estado pré-reflexivo, caracteriza-se pelo diálogo com o mundo. Sendo assim, os outros e a cultura tornam-se parte da nossa imagem corporal, que é compreendida antes de quaisquer reflexões. O corpo é primordialmente nossa identidade, nossa expressão para o outro. Os conflitos e incertezas da pós-modernidade refletem, portanto, em nossa forma de agir e expressar.

IDENTIDADE MEDIADA

 

               Com exceção de Maxine, todos os personagens querem estar na mente de John Malkovich. É o espírito coletivo que vislumbra, a partir das novas tecnologias digitais do final do século XX, uma possibilidade de transferir-se para outras identidades, através de mediações como perfis e avatares em comunidades virtuais.

A marionete é um símbolo fundamental no universo semiótico do filme. Representa o alter ego, o corpo autômato preso pelas cordas de seu mentor. A cena inicial mostra Schwartz manipulando um boneco de aparência similar a sua, numa performance na qual, ao perceber que estava sendo manipulado, se revolta e dilacera sua imagem no espelho, dando início a uma coreografia agressiva e destrutiva dentro do ambiente em miniatura que se encontra. Obviamente simboliza muito mais que um show de marionetes. É a negação da identidade, o desespero diante da impossibilidade de agir, a constatação da falta de sentido em sua própria representação.

Liberto de qualquer herança identitária, o homem contemporâneo não tem mais modelos de ação. Sem nenhum intermédio tornamo-nos prisioneiros num cosmos hostil. A saída são as mediações que nos possibilitam moldar valores e concepções explorando outras personalidades.  Numa outra cena Craig simula com as marionetes um diálogo que ele gostaria de ter tido com Maxine: “Craig, porque você gosta tanto de marionetes?” “Maxine, não tenho certeza, talvez seja a ideia de ser outra pessoa por um instante. Estar em outra pele, pensar e mover-se diferentemente, sentir de outra maneira”.

CONCLUSÃO

A crise de identidade, que culmina na inabilidade de agir, isola o indivíduo em seus próprios devaneios, criando uma realidade alternativa embasada em seu auto-juízo.

Dentro desse horizonte, os relacionamentos são cada vez mais unilaterais. Craig não sente o menor remorso em trancafiar sua esposa numa gaiola para conquistar Maxine. Lotte por sua vez também se mostra perdidamente apaixonada por Maxine, e o casamento deles instantaneamente não significa mais nada. Os indivíduos simplesmente escorrem, fluem maleáveis até tomarem uma nova forma condizente com as relações que se apresentam a eles no momento. Acredito que, finalmente, cada personagem possui uma simbologia mais ou menos explícita que revela bastante sobre nossa sociedade e as relações pós-modernas:

Craig: O titeriteiro é pura representação, fora isso não é nada. “Como é triste ser alguém. Você não sabe a sorte que tem de ser um macaco, pois consciência é uma maldição terrível. Eu penso, eu sinto, eu sofro”. É o principal arquétipo da ideologia pós-modernista, pois anseia e depende das mediações para ser, sentir e conceber sua própria identidade.

Lotte: Simboliza a incerteza, a crise de referencial, típicos também da pós-modernidade. Lotte não compreende suas próprias angústias, e ao experimentar a mediação através do corpo de Malkovich se torna ainda mais confusa.

Maxine: mulher linda, confiante, o símbolo utilizado pelo autor para nos dizer que nem todos são insatisfeitos com suas existências, já que apenas ela não quer entrar em Malkovich. Por outro lado flui entre as demais pessoas num ímpeto egocêntrico a fim de encontrar sua autossatisfação, ignorando escrúpulos e pessoas.

Dr. Lester: símbolo que representa o gnosticismo da obra, o desejo de reencarnar e preservar a memória, a aversão à morte.

Macaco: Uma cena que não pode ser ignorada nesta análise é a fuga de Lotte da jaula com a ajuda de seu chipanzé. O autor dá a entender que o macaco trazia consigo, de alguma forma, uma memória que não era sua, uma espécie de consciente coletivo que lhe possibilitou, através do aprendizado de outro macaco, desatar o nó que atava as mãos de sua amiga. É apenas mais uma hipótese metafísica, por vezes cômica, abordada por essa obra icônica.

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SITE: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevis-zygmunt-bauman/

SITE: http://www.angelfire.com/sk/holgonsi/hall1.html

SITE: http://docplayer.com.br/66643-A-questao-do-ser-em-quero-ser-john-malkovich.html

SITE: http://cinegnose.blogspot.com.br/2012/09/o-corpo-e-uma-prisao-em-quero-ser-john.html

SITE: http://www.galenoalvarenga.com.br/publicacoes-livros-online/homem-animal-de-duas-cabecas/um-pouco-acerca-da-percepcao

LIVRO: Maria Lúcia Santaella Braga: Percepção: fenomenologia, ecologia, semiótica, 2011.

LIVRO: Zygmunt Bauman: Modernidade Líquida, 2000.

FILME: Spike Jonze: Quero ser John Malkovich, 2000.

LIVRO: William Blake: Matrimônio do Céu e do Inferno, 1790.

[1] Douglas Henrique Pupim. RA: 84363. UNIFEV – Centro Universitário de Votuporanga. E-mail: douglas.pupim88@gmail.com

[2] Maria Olimpia Camargo Gouvêa. RA: 84974. UNIFEV – Centro Universitário de Votuporanga. E-mail: magouveaa@gmail.com