CRIME OU CULTURA: O INFANTICÍDIO NAS ALDEIAS INDÍGENAS.
Por Natálya Amanda Pontes Coelho Campos | 26/08/2017 | DireitoCRIME OU CULTURA: O INFANTICÍDIO NAS ALDEIAS INDÍGENAS.[1]
Aline da Silva[2]
Natálya Amanda P. C. Campos
Professor José Claudio Cabral Marques[3]
Sumário: 1. Introdução; 2 O infanticídio indígena no Brasil: herança cultural; 3 O direito à cultura e não interferência dentro das tribos indígenas; 4 Implicações constitucionais no infanticídio indígena. Conclusão. Referencial bibliográfico.
RESUMO
O tema em comento aborda sobre o infanticídio indígena, cultura ainda preserva por algumas tribos indígenas e que vem causando discussões acaloradas dentro do mundo jurídico. O grande embate deste tipo de discussão encontra-se no fato de a cultura e a vida se chocarem, nos fazendo analisar o que de fato deve prevalecer. Parece um absurdo o questionamento sobre a cultura e a vida, pois no mundo atual a vida é o direito fundamental mais importante. No entanto, devemos perceber que o índio e a cultura enraizada nas tribos têm um diferencial dentro do nosso mundo jurídico e, por isso, não deve ser analisada sob a ótica apenas da constitucionalidade ou não, de ser um crime ou não, deve ser algo mais profundo e cuidadoso. Por se tratar de uma cultura diferente, o modo de ver deve ir além das nossas convicções e partir para uma análise sem pré-conceitos. E, é esse o objetivo do trabalho, uma discussão saudável sobre um tema bastante controverso.
PALAVRAS-CHAVES: Tribo; Cultura; Infanticídio Indígena; Constitucionalidade.
1 INTRODUÇÃO
Como se tem conhecimento, as tribos indígenas estão presentes em nosso país desde os primórdios. Algumas dessas comunidades se exilaram no interior do país, vivendo isoladas do mundo como o conhecemos, conservando, ainda, a sua cultura e suas crenças milenares. Este âmbito cultural onde se encontram envolvidos os índios, fez com que fosse necessário criar um meio legal para a proteção dessa cultura ainda fortemente presente dentro do solo brasileiro, feita pelo Estatuto do Índio e protegida fortemente pela FUNAI.
Um desses costumes indígenas que ainda hoje é protegido por ser exatamente isso – um costume –, é o denominado infanticídio indígena, que ainda é um tema pouco discutido, mas que carrega dentro de si uma vasta problematização entre o direito à vida e o direito a cultura de determinadas comunidades indígenas, um choque entre garantias constitucionais.
O tema eleito justifica-se pela natureza da problemática envolvida, uma vez que o infanticídio indígena vem sendo aceito dentro do nosso ordenamento jurídico, não encontrando muitos obstáculos. O certo é que, é necessário fazer uma observação mais complexa em torno deste tema como forma de assegurar que nenhuma garantia constitucional seja afetada e para que se busque ponderar os dois direitos fundamentais.
Por ser um tema polêmico e bastante abrangente quanto as áreas de estudo, é importante analisar o histórico da legislação indígena, como forma de nortear o projeto e analisar a culpabilidade e a capacidade civil que gira em torno dos indígenas responsáveis pelo infanticídio.
Além disso esse projeto é essencial para se compreender o infanticídio indígena como costume enraizado dentro da cultura das tribos, que carregam dentro de si um vasto panorama cultural, que entra em choque com a garantia constitucional do direito à vida, bem como com os diversos estatutos assinados pelo Brasil e também com o nosso Código Penal.
O infanticídio indígena nos traz diversos pontos que devem ser trabalhados e estudados de forma que, antes de se lançar em defesa da cultura indígena e do direito à vida, fazer uma análise profunda e técnica das propostas doutrinárias abordando seus principais conceitos e argumentos, de forma a amplificar os nossos conhecimentos nesta área.
2 O INFANTICÍDIO INDÍGENA NO BRASIL: HERANÇA CULTURAL
O Brasil é um país onde se percebe a existência de diversas culturas, uma herança de vários povos que por aqui passaram e que, por aqui, ainda vivem. É o caso da cultura indígena, um povo que vive no Brasil desde os primórdios e que, por isso, em muito contribuíram para a formação cultural do povo brasileiro. Algumas dessas tribos vivem em completo isolamento e mantêm dentro do seu interior práticas que vieram de seus antepassados e que ainda fazem parte de práticas e rituais indígenas, como é o caso do chamado “infanticídio indígena”.
Para entendermos melhor o assunto, devemos entender o que é o infanticídio indígena dentro das tribos. De acordo com a reportagem publicada pelo Fantástico, seria o “assassinato de bebês que nascem com algum problema grave de saúde”. De acordo com a reportagem, as índias, após irem até a floresta onde vão dar à luz, observam se o bebê por ela gerado tem alguma malformação, alguma deficiência. Se tiver, ela volta da floresta sozinha. Não há testemunhas.
E apesar de, para muitos, parecer algo cruel e que não deveria de forma nenhuma ser aceito pelo ordenamento jurídico, é uma prova de amor para com o bebê, a cultura enraizada dentro das tribos faz com que os índios aceitem que um bebê naquela condição seria amaldiçoado, portanto, a mãe ou qualquer outro parente, comete o assassinato com a intenção de não ver aquele mesmo bebê sofrer.
Os autores do artigo Bioética, cultura e infanticídio em comunidades indígenas brasileiras: o caso suruahá, Saulo Feitosa, Carla Tardivo e Samuel Carvalho (2006), observam que há três motivações principais para a prática do infanticídio, nas palavras dos autores:
As razões são diversas, mas, para fins práticos, podem ser agrupadas em torno de três critérios gerais: a incapacidade da mãe em dedicar atenção e os cuidados necessários a mais um filho; o fato do recém-nascido estar apto ou não a sobreviver naquele ambiente físico e sociocultural onde nasceu; e a preferência por um sexo (2006, p.05).
Na verdade, a decisão de praticar o infanticídio indígena é do grupo social em que a mãe esta inserida e, não necessariamente, uma escolha que parte dela mesma. Há uma necessidade cultural de se conceber crianças saudáveis dentro daquilo que é socialmente aceitável e, caso não aconteça o que é socialmente imposto a decisão que deve ser tomada, de acordo com a cultura indígena, é matar aquela criança indesejada.
Para alguns povos indígenas, segundo Feitosa, Tardivo e Carvalho (2006), o que deve ser observado é a qualidade de vida que aquela criança terá se continuar viva, não pode haver uma dependência. Segundo Valéria Trigueiro Adinolfi, “para entender o processo que leva à prática do infanticídio e morte intencional de crianças é a construção social do conceito de vida e sua relação com a vida plena, integral, com qualidade. ”
Observamos que essa cultura enraizada dentro das tribos indígenas não é algo cometido porque há maldade dos índios em relação as crianças. Na verdade, há um sofrimento por trás dessa prática. O que é feito é uma forma de proteção em relação ao futuro que aquela criança que, é dependente de alguma forma, terá. É como se os mais fracos não tivessem condições de possuir uma vida digna, plena, fazendo com que seja necessário os pais ou parentes mais próximos os defenderem daquele futuro incerto. Segundo Adinolfi:
Para as mães e pais que têm seus filhos mortos, esse não é um ato pacífico – ainda que seja perpetrado por eles mesmo. É, sim, uma circunstância de intenso sofrimento, e não fruto de crueldade ou descaso para com as crianças.
O certo é que não se pode querer comparar a cultura indígena com a cultura dos “povos brancos”, uma vez que não se pode colocar uma verdade absoluta e dizer o que é certo e errado dentro de uma cultura que é diferente da nossa. Wanessa Wieser e Sérgio Tibiriçá, discorrem sobre isso e afirmam que se trata de “relativismo cultural”, uma corrente que foi defendida por Franz Boas, o qual defende que “o bem e o mal são elementos definidos em cada cultura, inexistindo então as verdades universais, não havendo como se comparar uma sociedade com a outra”.
Os direitos indígenas foram reconhecidos e estabelecidos pela CF/88, nos artigos 215, 231 e 232, os quais vão garantir o pleno exercício da cultura, bem como o reconhecimento cultural das tribos indígenas. É fundamental que a Constituição Federal busque a proteção da pluralidade cultural presente dentro do Brasil, principalmente a indígena, a qual merece e necessita de uma proteção maior, uma vez constatada a fragilidade desse povo e a importância de enaltecer dentro do estado brasileiro essa cultura milenar.
3 UM OLHAR LEGAL SOBRE O INFANTÍCIO INDÍGENA: DIREITOS HUMANOS, TRATADOS INTERNACIONAIS E CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Primeiramente devemos constatar a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, de 2005, e seu papel dentro das questões de direitos humanos. De acordo com Adinolfi, essa declaração deixa claro a:
“[...] existência de direitos humanos de validade universal, acima das normas culturais locais, e que, portanto, estabelecem um parâmetro a partir do qual validar ou não uma tradição, prática ou costume”.
Isso quer dizer que, mesmo que haja uma cultura dentro de determinada sociedade, os atos que forem praticados por essa determinada sociedade em nome da cultura devem estar de acordo com os direitos humanos. Os direitos humanos, portanto, são um parâmetro que deve ser observado para a prática de qualquer tipo de ritual cultural. Dessa forma, qualquer ato que viole os direitos humanos não deverá ser aceito, mesmo que se justifique ir contra determinada cultura de um povo.
Então podemos concluir diante disso que, para a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, a prática de infanticídio indígena praticados por determinadas tribos, mesmo que seja considerado uma pratica cultural milenar, não pode ser tolerado porque ela fere gravemente os direitos humanos se tornando, portanto, uma prática cultural inaceitável.
Não podemos deixar de abordar aqui a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos. Para tanto, vamos transcrever aqui o seu art. 1º, o qual aborda que “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Portanto, os direitos humanos não são de um grupo específico, são para todos, sem que haja qualquer tipo de distinção.
Porém, de acordo com Wieser e Amaral, há muitos antropólogos que, guiados pelo relativismo cultural, afirmam que esses direitos humanos vão variar de povo para povo. Ainda de acordo com eles, ao seguir essa linha de pensamento, “o Estado se mantém numa política não intervencionista permitindo a violação dos direitos humanos pela preservação da cultura”. Porém, coma Declaração de Viena, a ideia de relativismo cultural foi rejeitada, devendo todos os povos obedeceram e se guiarem pelos mesmos direitos. Wieser e Amaral discorrem:
O Direito à diversidade cultural é um direito legítimo, mas limitado, não podendo ser usado para justificar qualquer violação aos direitos humanos. Como se pode ver, por exemplo, nenhum Estado poderá evocar de suas tradições culturais para justificar a pratica da escravidão ou tortura. Da mesma forma, não poderia o direito a diversidade cultural ser forma de legitimação a violação a vida. Portanto qualquer tentativa de justificar as praticas de infanticídio não possuem respaldo em nenhuma legislação internacional.
Há alguns projetos de lei importantes tramitando dentro da Câmara dos Deputados, que vão tratar exatamente sobre o infanticídio indígena. Talvez a proposta de lei mais conhecida seja a Lei Muwaji. Fernando Santos Granero discorre sobre a lei:
A versão original da Lei Muwaji [...] procura penalizar todos aqueles que cometem infanticídio e outras práticas indígenas nocivas, como abuso sexual e maus-tratos a crianças, bem como aqueles que deixam de informar às autoridades esses crimes ou que não tomam as medidas apropriadas, uma vez cientes desses crimes (Afonso 2007). Ela também propõe que crianças com risco de infanticídio ou outras práticas danosas sejam retiradas de suas famílias e aldeias, colocadas em abrigos administrados por agências governamentais ou não governamentais e entregues para adoção por famílias indígenas ou não indígenas. Por fim, estabelece que as práticas indígenas nocivas sejam erradicadas por meio do diálogo e da educação em direitos humanos.
De acordo com Granero, os autores da lei a legitimam citando a Constituição Federal, no seu artigo 227, o qual protege os direitos da criança e do adolescente; utilizam o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 7º e, por fim, a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1990, em seu artigo 6º.
Wieser e Amaral discorrem sobre a lei e afirmam que, esse projeto de lei vem sendo veementemente contestado pelos antropólogos. De acordo com eles, a antropóloga Rita Segado afirma que seria uma redundância, em vista de que a prática do infanticídio já é considerada crime no Brasil e que, aprovar a lei seria uma forma de intervenção dentro das aldeias indígenas. Da mesma forma pensa Saulo Feitosa, também citado por Wieser e Amaral, ao afirmar que seria necessário para o caso específico uma conscientização, não criar uma lei para criminalizar algo que já se encontra tipificado dentro das leis brasileiras.
O certo é que, diante de todos os argumentos utilizado dentro deste estudo, observamos que o que realmente se faz necessário é uma conscientização, informando dentro das comunidades indígenas as diversas alternativas que podem ser encontradas para solucionar os problemas das crianças que nascem com algum tipo de deficiência e o que melhor pode ser feito para que não ocorra a consequência mais grave: a morte da criança indígena.
4 IMPLICAÇÕES CONSTITUCIONAIS DENTRO DO INFANTÍCIDIO INDÍGENA
Apesar de todos os argumentos utilizados nos tópicos anteriores que fundamentam a discussão sobre o infanticídio indígena, os quais mostraram as ideias contra e a favor dessa prática, este capítulo em questão dará ênfase a discussão sobre a colisão entre duas garantias fundamentais: direito à cultura e direito à vida.
Notadamente percebemos que tal discussão parece improvável uma vez que temos o direito à vida como direito fundamental e imprescindível dentro de qualquer sociedade. Porém, como já foi analisado anteriormente, estamos falando sobre um povo e uma cultura que se diferencia da nossa, considerada cultura do “homem branco”.
A questão principal aqui e a qual vai nortear o nosso estudo é a característica principal desta pratica: a cultura dos povos indígenas. Se a Constituição Federal declara que devemos respeitar as diferentes culturas e as manifestações culturais provenientes delas, será mesmo que o Estado deve tomar partido e interferir dentro das tribos para evitar o assassinato de bebês indígenas – que ocorrem por motivos culturais, é importante destacar e, assim, proteger o direito à vida, o qual também está expresso dentro da Constituição?
Responder à pergunta anterior é o verdadeiro dilema da problemática envolvendo o infanticídio indígena. O que se sabe é que nenhum direito fundamental é maior que o outro, porém, quando dois se chocam há a necessidade de se ponderar e entender qual deles deve prevalecer dentro do Estado.
Por motivos culturais, a concepção de bem e mal na cultura indígena é completamente diferente da cultura do “homem branco”. Podemos perceber claramente essa diferença no fato de que, para eles, o infanticídio é um ato de amor, tão dolorido que alguns chegam a se suicidar após o ato. Não é algo prazeroso ou feito por pura maldade, há todo um aspecto cultural envolvido dentro dessa prática, sendo a intenção principal a de proteção das crianças de um futuro com possíveis problemas.
Apesar da Constituição Federal proteger e reconhecer o Brasil multicultural, impondo o direito à cultura como direito fundamental e que deve ser respeitado por todos, o que vemos nessa pratica é uma cultura da morte. A cultura tem sua importância e seu valor e, claramente, ela não é menos importante que qualquer outro direito fundamental. O certo é que, quando a cultura entra em choque com a vida, esta realmente não pode prevalecer dentro de uma sociedade.
Os direitos fundamentais não são direitos absolutos, por isso há de se falar em ponderação quando comumente eles entram em rota de colisão. Nas palavras de Marmelstein (2008, p. 35), “as normas constitucionais são potencialmente contraditórias, já que refletem uma diversidade ideológica típica de qualquer Estado democrático de Direito”. E, é exatamente essa potencialidade contraditória que faz com que, por vezes, os direitos fundamentais colidam entre si, sendo necessário para isso, como nenhum direito fundamental é absoluto, que se faça a ponderação. Daniel Sarmento (2006) discorre sobre a questão:
Apesar da relevância ímpar que desempenham nas ordens jurídicas democráticas, os direitos fundamentais não são absolutos. A necessidade de proteção de outros bens jurídicos diversos, também revestidos de envergadura constitucional, pode justificar restrições aos direitos fundamentais (2006, p. 293).
De acordo com Robert Alexy (2011) quando ocorre a colisão entre direitos fundamentais, os quais são também considerados princípios, um desses direitos deve ceder me face do outro. Mas, para Alexy, esse princípio que vai ceder em face do outro não será considerado inválido para ele, o que ocorre é “que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições”.
Alexy afirma que os direitos fundamentais possuem pesos, sendo que cada um deles possuem pesos diferentes. Aqueles que possuem um peso maior vai ter precedência. De acordo com Alexy “o conflito deve, ao contrário, ser resolvido por meio de um sopessamento entre os interesses conflitantes” e, esse sopessamento busca observar qual dos princípios, dentro do caso concreto, tem um maior peso.