COTAS PARA AFRODESCENDENTES ? UM RESGATE HISTÓRICO EM NOME DA IGUALDADE
Por Eliana Freire do Nascimento | 28/05/2011 | DireitoCOTAS PARA AFRODESCENDENTES ? UM RESGATE HISTÓRICO EM NOME DA IGUALDADE
Eliana Freire do Nascimento
O debate teórico acerca da implantação de programas de cotas para afro-descendentes gera muita polêmica, tendo em vista que não envolve apenas uma questão de cor da pele, mas uma problemática que se arrasta ao longo dos séculos no Brasil e que traz repercussões nefastas na sociedade.
O aspecto central desse debate cinge-se basicamente no próprio conceito de igualdade material, onde a finalidade do sistema político-legal é promover a igualdade entre seus membros e não submetê-los a critérios universais de igualdade formal. Identifica-se aqui uma diferença essencial entre valor ou princípio, último do sistema legal, a igualdade e o meio pelo qual ele é atingido.
Tratar da igualdade racial remete a reflexão da não-discriminação, pois quando a universalidade não atinge o seu mister há manifesta contribuição para promoção da desigualdade e aqui surge a necessidade de implementar a discriminação positiva, no intuito de promover essa igualdade. Nesse sentido, encontra-se respaldo no texto constitucional, em que as ações afirmativas são consideradas legítimas, pois a mesma determina a promoção e proteção de grupos considerados vulneráveis, motivo pelo qual ainda que não haja expressamente comandos para políticas afirmativas, em momento algum contradizem o espírito da constituição.
Portanto, há que se aduzir que a ação afirmativa é produto direto do processo de democratização que o Brasil vem sofrendo ao longo dos últimos anos e, nesse contexto, devem ser considerados aspectos histórico-culturais brasileiros, conseqüentes de um processo de colonização calcado na exploração, na escravidão e latifúndios, o que gerou o desenvolvimento desigual da sociedade, em detrimento especial aos afro-descendentes.
A Carta Magna determina no "caput" do artigo 5.º da Constituição Federal de 1988,
todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...].
Com tal normativo o legislador constitucional regulamentou o princípio da igualdade ou isonomia, como direito fundamental, segundo o qual todos os indivíduos são iguais perante a lei, sendo vedadas discriminações de qualquer natureza.
Nesse aspecto, a igualdade possui duas espécies, em que a primeira, chamada de igualdade formal ou igualdade de condições, caracteriza-se por garantir a isonomia entre os seres humanos perante a lei, ou seja, todos os indivíduos devem ser tratados de maneira uniforme. A segunda espécie, por sua vez, chamada de igualdade material ou igualdade substancial caracteriza-se fundamentalmente em dispensar tratamento desigual aos desiguais, na medida de suas desigualdades, visando ensejar oportunidades isonômicas aos indivíduos, considerando as particularidades e as diferenças dos sujeitos.
Com o olhar voltado para o passado, é nítido que as ações afirmativas tem como principal finalidade saldar uma dívida histórica de séculos de opressão e falta de acesso aos meios de cidadania, almejando uma verdadeira igualdade material entre os indivíduos, a fim de compensar as dessemelhanças.
A intervenção estatal mediante a implementação de ações afirmativas, a fim de promover a inclusão de indivíduos historicamente excluídos dos meios de acesso à cidadania, como ocorre com a população afro-descendente no Brasil, é de suma importância, tendo em vista não haver outros meios de tais grupos desenvolverem-se por si.
Diante dessa realidade, o Estado Brasileiro, no intuito de cumprir as suas finalidades constitucionais, propõe-se, sobretudo, a eliminar de qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, com a criação de novas oportunidades aos mais desfavorecidos. Dentre estas medidas, respaldada, também na Convenção Internacional contra Discriminação Racial, é que o Brasil propõe políticas para que sejam suprimidas tantas desigualdades proporcionadas pelo racismo.
Elemento concreto da atuação do Estado para tentar erradicar o racismo no Brasil é que se apresenta como medida de inserção social de indivíduos marginalizados, a criação das cotas raciais para ingresso nas Universidades, com intuito de que se torne concreto e efetivo o princípio da igualdade, que se resume na igualdade de oportunidade para todos, na medida de suas desigualdades.
Por que, então, estabelecer cotas raciais para instituições de ensino superior?
Para responder essa questão é necessário conceituar o termo "cota" como sendo uma maneira de ser estabelecer uma ação afirmativa, dentre muitas possibilidades. E a "Ação afirmativa" significa gênero, donde a cota é espécie, podendo ser conceituada como toda política voltada para o alinhamento social, no sentido de extirpar as desigualdades sociais causadas ao longo da história das sociedades e está calcada na certeza de que a justiça social demanda que a igualdade seja substancial, devendo ser, portanto, legítima.
Nesse contexto, é sumamente relevante que as mudanças sofridas pela sociedade brasileira abriram um novo caminho para a educação, como uma possibilidade de maior qualificação profissional e novas oportunidades de trabalho no mercado, gerando, conseqüentemente, ascensão social.
A educação, e em especial a educação em nível superior, tem-se mostrado cada vez mais necessária e atuante no processo de inclusão social. Esta afirmativa pode ser facilmente constatada nas pesquisas realizadas sobre os indicadores sociais da população brasileira, as quais demonstram a melhor inserção em todos os campos da cidadania dos indivíduos com maior grau de estudo e cultura.
Com efeito, o ensino universitário brasileiro poderia ser visto como um meio de acesso à cidadania e para outros como propulsor de inclusão social, e ainda como responsável pela manutenção de altos níveis de exclusão social daqueles que não conseguem alcançá-la.
Efetivamente, no contexto atual da sociedade brasileira o ensino superior busca efetiva inclusão dos menos favorecidos, seja na sua inserção do mercado de trabalho seja pelo acréscimo cultural proporcionado pela vivência acadêmica.
Com essa nova realidade, o próprio sistema ressente-se de uma reforma urgente e necessária no ensino brasileiro, para adequá-lo ao seu verdadeiro papel, ser democratizado para que todos indistintamente possam ascender e servir ao país, sem qualquer tipo de preconceito, relevando-se apenas as habilidades e competências dos indivíduos.
Com esse pensamento, penso, que políticas públicas devem ser reforçadas, no sentido de inserir camadas marginalizadas da população no ensino superior. Mas quem compõe esta camada populacional?
Inúmeras são as pesquisas afetas à aferição de padrões discriminatórios que constatam um número muito maior de negros e pardos em trabalhos desvalorizados pela sociedade, onde se verifica o maior número de analfabetos, e um maior número de indivíduos relacionados ao crime. Some-se a isso, o fato de que para estas camadas menos favorecidas é que se estrutura um ensino público de baixa qualidade. Percebe-se, aqui, o cerne da nossa problemática.
Com efeito, proporcionar e garantir a democratização da educação superior e a respectiva inserção social de camadas marginalizadas da população de negros, pardos e indígenas, que tivessem cursado integralmente o Ensino Médio em escolas públicas em instituições de ensino superior é que deve ser o maior objetivo do Estado em suas políticas públicas.
Nesse contexto, é que vejo essa tentativa de estabelecimento do sistema de reserva de cotas raciais nas universidades como uma forma de tentar minimizar tantas injustiças cometidas ao longo das décadas em face de indivíduos afro-descendentes, embora saibamos que a raça brasileira deveria ser simplesmente mestiça.
Com efeito, os debates acerca desse tema justificam-se essencialmente pelo fato de políticas que visam incluir determinadas categorias de indivíduos em estratos sociais antes de restrito acesso, acaba por gerar uma diferenciação, que deve estar pautada nos objetivos da nação, que impõe obrigações fundamentais, consagradas constitucionalmente, em que o verdadeiro escopo é tão somente a igualdade material, ou seja, igualdade de oportunidades para todos, indistintamente.
O sistema de cotas nada mais é que democratizar o acesso à educação em nível superior, gerando consequentemente o exercício da cidadania para as camadas menos favorecidas, com possibilidade de minimizar as desigualdades estruturais da sociedade. Ademais, as instituições de ensino superior devem ser um instrumento de modernização do pensamento, das instituições e das estruturas sociais. Cabe-lhe exercer um papel de racionalidade crítica e criadora, constituir-se num momento de reflexão sobre a direção e sentido do processo de desenvolvimento do país.
Aspecto que merece ênfase é o fato de que a reserva de cotas discrimina positivamente para que sejam minimizados os efeitos da discriminação negativa consagrada ao longo de várias e várias décadas, e em tendo o Estado Brasileiro, especialmente, o dever de igualar materialmente seus cidadãos, o sistema de cotas atende emergencialmente esse mister.
Por outro lado, deve-se enfatizar o fato de que essa discriminação positiva não deve ser "ad perpetum", mas com duração temporal suficiente no sentido de proporcionar igualdade de oportunidades a todos, indistintamente, pois de outro modo, estaria consagrando uma discriminação negativa.
Com o testemunho da história é possível depreender que a marginalização dos afro-descendentes deixou imensuráveis prejuízos, tendo em vista que lhes foram tolhidas oportunidades para investir na própria educação, inviabilizando, desta forma, a possibilidade de ascensão social capaz de mudar a própria realidade.
Nessa esteira de raciocínio, o sistema de reserva de cotas não deve ser considerado o único programa a ser adotado, mas proporcionar outras políticas, inclusive de auto-reconhecimento da condição de negro, o que timidamente já se percebe em alguns fatos sociais, tais como propagandas, novelas, filmes brasileiros, onde indivíduos negros desempenham papéis que outrora eram destinados somente a brancos, o que dá um caráter afirmativo importante.
Diante deste contexto, a adoção de medidas interventivas por parte do Estado, objetivando erradicar ou, pelo menos, abrandar o lastimável panorama de desigualdades em que o país se encontra, mostra-se cada vez mais necessária e urgente. A promoção da educação como instrumento de ascensão social pode proporcionar o desenvolvimento econômico e cultural.
Entenda-se, ainda, que as instituições de ensino superior devem se pautar não somente nesses fatores, mas conduzir suas políticas no sentido de incentivar a meritocracia, ou seja, ainda que os afro-descendentes tenham ingressado no ensino superior por conta de políticas inclusivas do Estado, para permanecer devem ser incentivados a ter méritos e não apenas "coitados sociais" - como alguns pensam -, mas indivíduos que tem conhecimento de conteúdos fundamentais e capacidade de desenvolvimento intelectual.
O desafio só pode ser enfrentado com autonomia das universidades e estudos de acompanhamento dos selecionados em processos regulares ou em ações afirmativas formulados para corresponder a seus objetivos e propósitos maiores. É notório que a educação superior pode e deve ser encarada pelos governantes brasileiros como uma forma de extinção da opressão e de redução da pobreza, na medida em que aqueles que conseguem ter acesso a ela têm oportunidade de chegar mais facilmente ao topo da pirâmide social. Assim, a verdadeira função social do ensino superior somente será alcançada por meio da real e efetiva igualdade nas oportunidades de acesso, a qual garantirá verdadeiramente a consagração do princípio da isonomia.
Portanto, embora com avanços quanto à criação de políticas públicas visando discriminar positivamente para igualar materialmente, ainda não se chegou ao topo no Brasil, pois ainda são gritantes os fatos sociais em que a discriminação reina quase absoluta. Contudo, tais ações mostram-se perfeitamente válidas, pois ainda que com deficiências, as políticas públicas voltadas para ações afirmativas estão direcionadas para o desejo de compensar os séculos de injustiças, a fim de conquistar a cidadania e a justiça social.
Conclui-se, desta forma, que a intervenção do Estado nas relações sociais a fim de atenuar as diferenças mostra-se uma medida eficiente no processo de inclusão social, objetivando à melhoria das condições socioeconômicas de uma parte da população que permanece apartada da sociedade. Tais medidas não ferem o princípio da igualdade, uma vez que proporcionam a efetiva isonomia material entre os indivíduos.
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