CONTRABANDO DE MEDICAMENTOS – ART 273, CÓDIGO PENAL

Por NAYRA LIMA MARTINS | 02/09/2017 | Direito

CONTRABANDO DE MEDICAMENTOS – ART 273, CÓDIGO PENAL[1]

 

Gabriela Ferreira Sousa

Nayra Lima Martins

Maria do Socorro de Carvalho[2]

 

  1. DESCRIÇÃO DO CASO:

O caso relata sobre um tipo penal elencado no art. 273 do Código Penal, do seguinte modo:

 Art. 273 - Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais: (Alterado pela L. 9.677/98).

Pena - reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa.

§ 1º - Nas mesmas penas incorre quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado. (Alterado pela L.9.677/98)

§ -A - Incluem-se entre os produtos a que se refere este artigo os medicamentos, as matérias-primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico. (Acrescentado pela L.9.677/98)

§ -B - Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no § 1º em relação a produtos em qualquer das seguintes condições: (Acrescentado pela L.9.677/98)

I - sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente;

II - em desacordo com a fórmula constante do registro previsto no inciso anterior;

III - sem as características de identidade e qualidade admitidas para a sua comercialização;

IV - com redução de seu valor terapêutico ou de sua atividade;

V - de procedência ignorada;

VI - adquiridos de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente.

§ 2º - Se o crime é culposo: (Alterado pela L.9.677/98)

Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Esse tipo penal criminaliza a conduta de alterar qualquer produto com fins terapêuticos ou medicinais quando ocorre algum tipo de manipulação. Considerado como hediondo, penaliza o infrator com uma pena mínima de dez anos. Tal crime foi tipificado na necessidade de tentar evitar a falsificação de produtos medicinais, ou seja, pessoas com problemas graves estavam comprando remédios para amenizar ou/e se curar, porém, o que estavam pagando para levar eram remédios que de nada iriam adiantar. Mariana de Sousa, no seu artigo, ao citar Monteiro, explana a necessidade em que o legislador teve de tipificar tal conduta:

Em vários estudos já feitos sobre o tema abordado, nota-se a constante discussão no que tange a constitucionalidade da lei 9.695/98 que incluiu o artigo em tela no rol dos crimes hediondos. Indaga-se se a referida lei surgiu como uma forma de acalmar a sociedade que em 1998 sofria com o escândalo porque o governo descobriu 138 medicamentos falsificados sendo vendidos normalmente nas farmácias ou se deveria ser assim considerado por ser um ato repulsivo e brutal. (MONTEIRO, 2003, p. 16 e 70)

O caso colocado em questão demonstra duas infrações especificas desse tipo penal, a primeira o farmacêutico Guto é abordado pela sua cliente e pede que lhe forneça o condicionador importado Ausie, porém, como Guto sabia que era um produto que estava fazendo sucesso no mercado, viu a oportunidade de faturar mais. Resolveu diluir o material importado ao retirar metade do condicionador e adicionar para preencher o restante do compartimento com condicionador Neutrox, que é mais barato, podendo assim vender pelo mesmo preço de mercado o importado e consequentemente havendo mais lucro. Esse crime, como se sabe, e será explicado mais adiante, é um crime de perigo abstrato, possuindo como sujeito passivo a coletividade. Logo, o simples fato de Guto manipular o cosmético já implica na infração, mesmo que não venha ocorrer qualquer dano.

Na segunda infração temos um caso de adulteração de remédio, em que o farmacêutico, João Freitas, percebendo o aumento da demanda de Viagra, causada principalmente pelo crescente aumento de jovens com disfunção erétil devido ao uso de substâncias anabolizantes, com o intuito de lucrar mais, decidiu adulterar o Viagra, substituindo a substância por outra similar à que é usada na fabricação do remédio. Certo dia, André, um jovem malhador usuário de anabolizantes, adentra ao seu estabelecimento farmacêutico e chegando ao balcão entrega sua receita médica que prescrevia o uso do remédio. João, vendo ali uma oportunidade de lucro, lhe vende o remédio adulterado.

André ao chegar em casa, toma seu remédio e sai com sua namorada. Após um tempo percebe que nada mudou e que o remédio não surtiu efeito, resolvendo então esperar mais um pouco. Uma hora após tomar o remédio nada ocorre a não ser uma súbita cegueira, sua namorada, Juliana, entra em desespero e como não sabia dirigir não havia como levá-lo ao hospital e ele cego também não poderia.

Completamente desesperados, durante três horas a cegueira persistiu até que André começou a enxergar leves movimentos, melhorando gradativamente, conseguindo enxergar em perfeito estado somente após doze horas de muito transtorno. Portanto, André indignado por não ter conseguido nem o efeito esperado pelo remédio e ainda ter sofrido uma reação completamente inesperada pelo uso do “remédio’, resolve entrar com uma ação em desfavor de João.

 

  1. Descrição dos Personagens

- Guto – farmacêutico que adultera condicionador importado, adicionando outro condicionador para poder vender e lucrar mais.

- Cliente – Cliente de Guto que compra o condicionador adulterado.

- João Freitas – farmacêutico que adulterou e vendeu o remédio.

- André- comprador do viagra adulterado.

- Juliana- namorada de André.

2. IDENTIFICAÇÃO E ANÁLISE DO CASE

2.1. Descrição das possíveis decisões

                   Como já mencionado na descrição, há vários pensamentos a respeito das soluções em relação a este caso. Devido ao foco da análise, não é possível descrever e analisar todas as opiniões em relação ao assunto. Seguem algumas das mais relevantes opiniões a respeito do caso:

  • Analisar o caso descrevendo a discrepância de tal tipo penal com o Princípio da Proporcionalidade.
  • Decidir o caso mediante o Princípio da Legalidade.

 

  1. Argumentos

Classificação desse tipo penal

  1. Bem jurídico tutelado

Tutela-se a saúde pública (Capez, 2012, p.736).

  1. Sujeitos

Sujeito ativo: qualquer pessoa, delito comum. Mas Prado (p. 138), ressalta que “com frequência, é o comerciante o agente do delito em exame”. Além disso, ressalta esse doutrinador (p.138) “É oportuno gizar que o sujeito ativo do caput é diferente daquele do § 1°. Se forem os mesmos, isto é, se o falsificador e o importador, por exemplo, forem as mesmas pessoas, tratar-se-á de fato posterior impunível”.

Sujeito passivo: “coletividade, juntamente com as pessoas que, de qualquer forma, adquiriram o produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais falsificados, corrompidos, adulterados ou alterados”. (PRADO, 2010. p.138)

  1. Elementos objetiPvos

Analisando o crime, identificamos quatros elementos, que são: corromper, adulterar, falsificar e alterar. O primeiro quer dizer estragar, decompor ou até mesmo tornar podre; o segundo elemento significa deturpar, deformar; o terceiro seria o mesmo que reproduzir imitando; já o último seria o mesmo que mudar, modificar, transformar. Além disso, contam para a penalidade importar (fazer vir do exterior); vender (comercializar, alienar de forma onerosa); expor à venda (pôr a vista, exibir para a venda); tiver em depósito para vender (colocar em lugar seguro, conservar); distribuir (dar, repartir) ou entregar para consumo (repassar). (GRECO. 2012. p.257).

  1. Elementos Subjetivos

“O elemento subjetivo [...] no caput [...] é o dolo [...] Ordinariamente, o agente realiza a conduta com o fim de lucro. Não obstante, o tipo não requer nenhum especial elemento subjetivo.” (JESUS. 2013.p. 386).

“Na modalidade “ter em depósito” exige-se, além do dolo, um especial fim de agir, consistente na finalidade de vender o produto alterado etc.” (JESUS. 2013.p. 386).

  1. Consumação e tentativa

“Consuma-se o crime com a falsificação, corrupção, adulteração ou alteração do produto destinado a fins terapêuticos ou medicinas (caput); ou com a efetiva importação, venda, exposição à venda, depósito, distribuição ou entrega a consumo do produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado nas condições descritas no § 1ºB (§1º-A)” (BITENCOURT, 2004, p.244)

A tentativa, embora possível, e de difícil configuração, já que a mera manutenção em deposito configura o crime consumado. Somente na modalidade de importar e que se afigura mais provável a possibilidade do conatus. (Cunha. 2010.pg. 341)

  1. Forma culposa

Configura-se a modalidade culposa, quando conduta é resultado de desatenção do agente. (JESUS. 2013. p.387).

  1. Forma qualificada:

Se da conduta dolosa do agente, resulta lesão corporal de natureza grave, a pena privativa de liberdade é aumentada de metade; se resulta morte, é aplicada em dobro.  No caso de culpa, se do fato resulta lesão corporal, a pena aumenta-se de metade; se resulta morte, aplica-se a pena cominada ao homicídio culposo, aumentada de um terço (art. 285 c/c art. 258). (PRADO, 2010, p.143)

  1. Pena e ação penal

As penas que são cominas cumulativamente são reclusão de dez a quinze anos e multa. Na modalidade culposa, pena de detenção e um a três anos e multa.

Ação penal pública incondicionada. (Capez, 2012, p.736).

“Os delitos descritos no art. 273 [...] são de perigo abstrato. O legislador presume, de maneira absoluta, a ocorrência de perigo à coletividade em face da alteração ou da entrega a consumo [...] Não é necessário que o Juiz perquira a real superveniência de perigo para a consumação.” (JESUS, 2013, p. 387).

Trata da condição de crime formal, consumando-se com a conclusão da execução da ação/núcleo do caput. “[...] no § 1.° consumam-se com a efetiva venda, exposição à venda, guarda em depósito ou entrega a consumo da substância alterada.”.Trata da condição de crime formal, consumando-se com a conclusão da execução da ação/núcleo do § 1.°. (JESUS, 2013,p. 387).

  1. Decidir o caso mediante o Princípio da Legalidade

Frente ao caso proposto, aplica-se a lei, pois esse é o desejo do legislador ao criar esse tipo penal. Assim, o legislador objetiva reprimir essa prática que estava prejudicando a saúde de vários brasileiros e também as finanças públicas por falta de arrecadação devida com as vendas de produtos totalmente irregulares e sem a devida regularização.

Por isso, o Deputado Enio Bacci defendeu a necessidade de buscar, através de alguma forma, o ingresso dessas substâncias no rol dos Crimes Hediondos e, que agora, de fato os são. “Pois não se pode atentar contra a vida dos cidadãos impunemente e ainda receber benefícios da Lei”, disse o Deputado em sua justificativa para aprovação desse projeto. (OLIVEIRA, 2011, p.15).

A Constituição de 1988, no artigo 196, ratifica que: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Com o aumento dessas práticas criminosas e com a consequente ineficácia das leis que outrora eram aplicadas foi necessário uma pena mais dura para banir, de forma preventiva ou repressiva essas atitudes danosas.

  1. Decidir/mitigar o caso mediante o Princípio da Proporcionalidade

Para o caso em questão, a partir da atual redação Guto, o farmacêutico que adulterou o condicionador importado Ausie, através da adição um outro condicionador Neutrox; e João Freitas, farmacêutico que adulterou e vendeu o remédio Viagra para André, seriam por meio de um juízo de simples subsunção, isto é, adequação do caso concreto à norma legal em abstrato, imputados, pois preenchem todos os requisitos da tipicidade, assim como ilicitude da conduta. Como já discutido, o sujeito ativo do crime do artigo 273 do CP é qualquer pessoa que realizar o núcleo do tipo, ou seja, “falsificar significa reproduzir, através de imitação, ou contrafazer; corromper é estragar ou alterar; adulterar significa deformar ou deturpar; alterar é transformar ou modificar. O objeto é produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais”. (NUCCI, 2014, p.978).

Sendo, Guto e João Freitas, passíveis de serem condenados, pois tal crime afirma-se para a doutrina majoritária como crime formal e crime de perigo abstrato, assim, enquanto formal o delito não exige para sua consumação a materialização naturalística do resultado; por vez, como crime abstrato, o perigo às pessoas afirma-se de forma presumida.

Notório, portanto, que Guto e João Freitas como sujeitos ativos praticaram o dolo de perigo, pois exerceram a vontade livre e consciente de querer falsificar, corromper adulterar ou alterar, “bem como quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou de qualquer forma distribui ou entrega a consumo produtos falsificados, corrompidos, adulterados ou alterados”. Por sua vez, o farmacêutico João Freitas colocou em risco efetivo a vida de André, indo além da presunção.

Embora situado no campo da tipicidade, o caso deve ser mitigado, pois discussões acerca do artigo 273 do CP, centram-se na questão da proporção das penas previstas, levando em consideração o princípio da proporcionalidade. Desta forma, não se exclui a necessidade de punição a quem pratica o elemento subjetivo do caput, bem como do §1º. Assim sendo, a discussão principal gira em torno da inadequação entre o desvalor do injusto e a pena cominada. A questão da desproporcionalidade é destaque, pois por falta de técnica o legislador equiparou medicamentos, cosméticos e saneantes. Nesse sentido, afirma Prado (apud FRANCO, 1998, p. 05):

Não há como equiparar, na sua ofensibilidade à saúde pública, produtos destinados a fins terapêuticos ou medicinais a meros cosméticos, ou seja, a produtos que servem ao embelezamento ou à preservação da beleza ou a simples saneantes, produtos dirigidos à higienização ou à desinfecção ambiental. São tais produtos qualitativamente autônomos e não suportam uma igualdade conceitual, nem devem receber, por isso, o mesmo tratamento punitivo.

 Essa mesma crítica, é construída por outros doutrinadores, tais como Nucci (2014, p.979):

Noticiou-se uma onda de eventos, trazendo à tona alguns problemas relativos à falsificação e adulteração de remédios, em particular, no contexto das pílulas anticoncepcionais. Por conta disso, em função da explosiva carga da mídia, o Legislativo, mais uma vez, editou lei penal, alterando o tipo penal do art. 273, bem como sua faixa de penas. Para um delito de perigo abstrato, criou-se a impressionante cominação de 10 a 15 anos de reclusão, algo equivalente a um homicídio qualificado.  Há condutas tipificáveis nesse artigo, que são nitidamente pobres em ofensividade, razão pela qual jamais poderiam atingir tais reprimendas. 

A crítica majoritária gira, portanto, em torno da desproporcionalidade da pena, pois ao se colocar de forma equivalente falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de medicamentos, matérias-primas, insumos farmacêuticos, cosméticos, saneantes e os de uso em diagnóstico, não se gradua o perigo efetivo à saúde pública, principalmente, quando por patente equívoco do legislador se observa que tal delito (caput,§§ 1.°, l.°-A e l.°-B) foi transformado em hediondo através da Lei 9.695/98 ao incluí-lo no rol do art. 1.º da Lei  8.072/90.é hediondo.

Como se vê, portanto, há uma desproporção entre o elemento subjetivo praticado por Guto e João Freitas e a gravidade da pena possível, em clara transgressão do princípio constitucional da proporcionalidade. De forma sensata, aduz Nucci (2014), que há relevância jurídica em punir tais atitudes, embora seja absurda a penalidade inventada pelo legislador, não fazendo uso de critérios. Desta maneira, respeitando o princípio da proporcionalidade, deve-se optar, tal qual vem ocorrendo em muitos julgados a soluções alternativas, tais como absolvição, quando faltam provas; outros preferem a analogia in bonam partem, aplicando a pena do tráfico de drogas. Ou ainda, conforme Cunha (2010, p. 341) “Pensamos que a discussão pode ser resolvida mediante o seguinte raciocínio: se o cosmético (ou saneante) tiver fim terapêutico ou medicinal, a equiparação se justifica; se apenas visar o embelezamento (ou purificação do ambiente), não”.

Neste sentido, distinguem-se as possíveis penas atribuídas a Guto e João Freitas, já que o primeiro apenas adulterou o condicionador, enquanto o segundo, além de adulterar gerou um risco efetivo – enquanto produto medicinal – à saúde de André.

 

 

REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. Vol.: 4. São Paulo: Saraiva, 2004.

BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei 2848, de 7 de Dezembro de 1940. Vade Mecum compacto, Ed. 11. São Paulo: Saraiva, 2014.

 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. 

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. 15.ed. São Paulo: Saraiva, 2011

CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal: Parte Especial. 3.ª ed. rev. atual. ampl. - Vol. 3 – Editora: Revista dos Tribunais. São Paulo: 2010.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, v IV. Rj: Impetus, 2012.

JESUS, Damásio de. Direito penal: parte especial: dos crimes contra a propriedade imaterial a dos crimes contra a paz pública. 21. ed. V. 3. São Paulo: Saraiva, 2013.

OLIVIERA, Glenda Carvalho Rocha de. Falsificação de medicamentos no Brasil. Brasília, 2011.

NUCCI, Guilherme de Sousa. Código Penal Comentado. 14ª edição revista, atualizada e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte Especial, vol. III. 6ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, Ltda, 2010.

 

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[1] Case apresentado à disciplina Direito Penal Especial II, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB.

[2] Professora Especialista, orientadora.