Contos & Histórias

Por Letícia Veloso | 02/09/2008 | Contos

CONTOS & HISTÓRIAS

Fronteiras
Liziarel mergulhara em lágrimas ao chegar no aeroporto de Moscou. Jamais esteve além das fronteiras do Egito. Lizia,como é chamada desde criança, pertencia a uma família que veio da Armênia. Seus avós e seu pai chegaram na região de Cairo há aproximadamente cinqüenta anos.Naquela época, final dos anos 50, o jovem casal Levon Barzam e Bertha Barzam passara por dificuldades financeiras. Estavam longe de casa, em meio a uma cultura diferente, sem mencionar o fato de não dominarem o idioma.

O jovem Nathaniel se adaptara rapidamente ao lugar,aos vinte anos iniciou sua aventura como mochileiro pelo continente africano. Conheceu países, culturas e etnias diversas. Numa dessas viagens esteve com Ayda, jovem moça de origem indiana nascida na África do Sul. Ayda era filha de comerciantes hindus, estava prometida em casamento a um jovem indiano estudante de medicina na Universidade de Oxford, Inglaterra.

Quando se encontraram pela primeira vez mal se falaram, a jovem de pele trigueira se impressionou com aquele rapaz de olhos expressivos. Não devia ser europeu, de fato também não seria árabe, turco ou de origem persa. Em tese, Nathaniel carrega elementos de dois mundos, a etnicidade armênia presente em seu sangue é demasiadamente européia para o oriente e não obstante, oriental para o Velho Mundo.A Armênia se localiza num espaço geográfico que liga o Oriente e o Ocidente.

Nathaniel é descendente de uma geração fruto da diáspora armênia, um período marcado pelo genocídio.No início do século 20, milhares de armênios foram massacrados pelo Império Otomano e também exterminados durante a Segunda Guerra Mundial pelo regime nazista.No século passado, inúmeras populações de armênios se refugiariam pelos cantos do planeta, por países como Inglaterra, França, EUA, Brasil, Argentina e tantos outros.

Neste caso específico,Nathaniel e sua família encontraram em terras egípcias a alternativa para uma vida melhor,já que seria impossível viver na pátria armênia desfalecida, usurpada e extremamente sofrida.Deixaram o passado,suas vidas, memórias e estimadas pessoas.Esta parece ser a sina desta família, seguir caminhos por esse mundo.Quando pôs os pés na estrada,Nathaniel soube desde o princípio que jamais viveria no Egito novamente.


Ayda intensificara a sua inspiração por percorrer outros caminhos.Teriam de fugir a fim de viver aquele amor.A jovem indiana temera a oposição de seus pais, seria amaldiçoada por não respeitar leis milenares. Entretanto, sabia que sem Nathaniel ao seu lado, uma parte de si morreria.Difícil, haver outro homem capaz de amá-la desta forma, talvez devesse seguir seu destino e, de fato o seguiu.Os jovens fugiram pela madrugada,Ayda deixara uma carta para a sua mãe. Nathaniel escrevera para o seus pais no Egito e os avisou que partiriam para as Américas.

Depois de uma viagem cansativa pelos mares, Nathaniel e Ayda chegaram em terra firme.Ficaram na região do Caribe,Ayda se emocionara com a beleza do lugar, o vento bagunçara seus cabelos,era o início de uma nova era,um ciclo se fechara e anunciava a chegada de novos tempos.

Em 1978, dois anos após a estada no continente americano, o casal já havia se estabelecido na República Dominicana. Ayda vendia artesanatos e Nathaniel dava aulas de inglês.O casal se preparava para a chegada do primeiro filho, Ayda tinha certeza de que seria uma menina, a qual se chamaria Liziarel.

Numa noite chuvosa de abril, eis que nasce uma bela pequena em terras americanas.Naquela noite,Ayda teve fortes convulsões e, após o parto não resistira, veio a falecer horas depois.Nathaniel se desesperara, vagou por três dias seguidos, ninguém teve notícias de seu paradeiro.

Um de seus amigos o reconhecera deitado em uma rua do lado haitiano da ilha.A pequena Liziarel estava sob cuidados das freiras do convento local.Nathaniel foi visitar o bebê e num momento de descontrole emocional abrira mão de sua filha,disse não ter quaisquer condições de assumir uma criança,estava emocionalmente debilitado.O destino da pequena Lizia havia sido traçado, Nathaniel a levara para o Egito a fim de ficar com os avós.Desde então,Lizia viveria em Cairo longe de seu pai.

Nathaniel passara os últimos trinta anos viajando pelo mundo,não se casou e nem teve filhos,dizia ter o coração fechado para sentimentalismo. Desde a juventude, sempre atraiu as atenções das mulheres,aos 50 anos estava em sua melhor forma física, os olhos misteriosos e o sorriso largo aindaprovocavam paixões por todos os cantos que passou.De fato,Nathaniel se envolvera com vários mulheres. Algumas delas aristocratas, plebéias, intelectuais, boêmias e liberais,todavia nenhuma fora capaz de despertar o amor que sentira no passado, jamais esquecera Ayda, aquela trigueira que o enfeitiçou desde o primeiro instante.

Por três décadas Lizia vivera com os avós, estudou letras e lecionava num grupo escolar próximo de casa.Na manhã de abril, dia de seu aniversário recebera uma inesperada carta de seu pai,Nathaniel queria revê-la depois de anos.Num primeiro instante Lizia recusara a se encontrar com o pai, não fosse o pedido de seus avós Levon e Bertha, a jovem não teria viajado para a Rússia, país no qual seu pai se encontrara por cinco anos.

Quando chegou à Moscou sentira ansiedade mesclada com mágoas e angústias do passado,Liziarel não perdoara o pai por tê-la rejeitado.Durante estes trinta anos, Nathaniel,hoje aos 57 anos,mandara poucas cartas e mal demonstrava qualquer afeição pela filha.

Lizia estaria diante de seu pai,o conhecia apenas por fotos, ouvira sua voz por telefone poucas vezes.Ao entrar naquele táxi com destino à casa deNathaniel,o coração pulsava intensamente,suas mãos estavam trêmulas e seus olhos lacrimejavam.Não sabia o que dizer, agir, talvez devesse lhe perguntar se ele a rejeitou por culpá-la da morte de sua mulher. Lizia pegou o lenço limpou os olhos, era preciso ter sanidade naquele momento delicado e extremamente decisivo.

Depois de vinte minutos de trajeto, a jovem finalmente encontra-se com Nathaniel. Surpreende-se com o cenário e,especialmente o aspecto físico de seu pai.Jamais imaginou encontrá-lo moribundo em uma cama, Nathaniel estava com tuberculose.Lizia tinha em sua mente a imagem de um homem desbravador, aventureiro, inteligente, sagaz.Entretanto, o Nathaniel do mundo real estava morrendo em um quarto escuro na periferia de Moscou.

Foram poucas as últimas palavras ditas pelo doente.Nathaniel pediu perdão a filha pela ausência e disse que sua mãe Ayda sempre soube que teria uma bela menina.Ao ouvir o perdão da filha, Nathaniel se despediu do mundo estava ansioso para encontrar sua amada Ayda nos jardins de outra dimensão. Embora nunca tivesse certeza de que haveria outra vida além desta.

Lizia sentiu um vazio na alma, queria ter dito tantas palavras, não conseguiu dizer que o amava. Debruçou seu rosto no peito de seu pai , mergulhou numa dor latente. Meia hora depois despediu-se do casal que lá estava, eram amigos de seu pai. Entrou num táxi de volta ao aeroporto,teve ciência de que seu pai necessitava de descanso.Nos últimos anos andara por todos os continentes,teve uma vida repleta de muitas aventuras. Depois da morte de Ayda, Nathaniel sentiu-se perdido e sem rumo.Todavia,cultivava saudades daquelas utopias de outrora, um tempo no qual a vontade de viver despertava paixões nos corações inquietantes de jovens aventureiros como ele.Fim de jornada para Nathaniel e início da grande viagem rumo ao labirinto desconhecido e não menos fabuloso.