CONSUMISMO E CORPO EM ÉTICA: UM DIÁLOGO ENTRE CORPO E SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

Por Williani Almeida Carvalho | 22/11/2010 | Filosofia

CONSUMISMO E CORPO EM ÉTICA: UM DIÁLOGO ENTRE CORPO E SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
Williani de A. Carvalho
INTRODUÇÃO
Ao tentarmos analisar a sociedade sob a égide das catástrofes por vezes tão ventiladas na mídia atual, nos colocamos a pensar sobre os mais variados fatores que contribuem para tais ocorrências. Não nos cabe aqui discutir se as mesmas pertencem apenas a uma categoria de análise seja ela do campo simbólico, utópico ou do jurídico, mas entendendo a sociedade como um organismo vivo, dinâmico, a percepção que dela se faz não foge a tal regra.
Diante das tantas manifestações de congruências e incongruências vivenciadas na sociedade contemporânea, cabe-nos perguntar: de onde surgem essas catástrofes? Quais os fatores que as determina? Essas questões não são fáceis de serem respondidas uma vez que são fruto de situações as mais variadas, que concorrem para uma série de ocorrências que transformam a sociedade num "problema" que precisa necessariamente de uma resposta.
O ser humano nunca deixa de dar uma resposta às questões que ele mesmo formula em decorrência de sua realidade, em decorrência do seu estar no mundo. Isso instiga-nos a esperança. Vivemos num universo de redes intricadas que determina a concepção de ser humano e de mundo, a percepção a respeito de nossa realidade individual e determina nosso fazer. Nesse sentido, não podemos pensar acerca da liberdade plena: temos autonomia dentro de limites estabelecidos socialmente, somos criadores e criaturas de nosso universo social.
Quando compreendemos essa realidade, percebemos nossas limitações e o sentimento de interdependência que existe entre nós, a natureza e a sociedade na qual estamos inseridos. Analisar os símbolos culturais aos quais recorremos em nosso processo de interação, em nosso processo de compartilhar sentidos e significados permite-nos analisar os processos sociais que daí decorre a fim de que compreendamos as transformações que se agregam à cultura e à estrutura social.
Ao percebermos o corpo como objeto de uma construção social, suas representações nas relações sociais remete-nos a um universo por vezes incontido e, ao mesmo tempo, dinâmico, na medida em que o nosso corpo revela-se como um construto vinculado ao campo da imagem, do desejo, da gestualidade, do prazer, da liberdade, da repressão, dos hábitos, enfim, são tantas as possibilidades de descrição das culturas visíveis do corpo, as maneiras desse corpo se articular, ora em luta constante por instaurar novos hábitos, ora querendo preservar os velhos hábitos de sempre.
É sobre esse corpo em ética, envolto num emaranhado de construções ideológicas, culturais e simbólicas que o presente trabalho tenta compreender o papel do mesmo numa sociedade marcadamente pragmática, pautada numa lógica de resultados concretos e imediatos como na questão do aprimoramento das potencialidades do indivíduo, que interfere nas relações sociais e de consumo. Partindo desse princípio, não seria precipitado dizer que parte das catástrofes sociais e ambientais ocorridas na sociedade contemporânea tem como principal viés o consumismo, entendido aqui como fato social das exigências da sociedade de resultados, ou seja, quanto mais a sociedade está inserida numa cultura imediatista, mais ela incentiva a busca por gastos desnecessários e esses gastos e/ou desgastes desnecessários influenciam, numa fase aguda, a conseqüências graves no que diz respeito ao sistema funcional da sociedade.
As conseqüências são as mais variadas e vão desde o crescimento e banalização da violência, pois em muitos dos casos, as pessoas cometem crimes como o furto, por exemplo, não por necessidade, mas sim, por vontade de ter um produto e não ter condições de adquiri-lo. Por vezes, as pessoas consomem drogas, porque na sociedade da "produção imediata e de resultados", é a alternativa que encontram para buscarem outro sentido de vida.
Estamos vivendo sob a síndrome da poluição, da extinção, da escassez, da miséria, da fome, das grandes catástrofes, que de naturais não têm nada, mas são em última instância, resultado do aniquilamento da vida pelo ser humano em todas as suas manifestações.
O ser humano contemporâneo, mais do que o "ser humano das conquistas", precisa, urgentemente, transformar-se no "ser das re-conquistas", no sentido de resgatar o profundo respeito e valor que é devido à natureza e ao outro enquanto sujeito social. Não obstante, a vida é uma realidade complexa. E a vida se manifesta não só no ser humano quando nasce, mas revela-se, sobretudo, na nossa relação com o meio e é por si mesma dinâmica, é abertura, relação e partilha.
1. A SOCIEDADE QUE TEMOS E QUE PRETENDEMOS SER
Muitas foram as teorias e as ciências que ao longo dos tempos tentaram explicar a complexa rede da existência humana. Sob essa perspectiva, o corpo aparece como base primária e como elemento de reflexão e leitura dos processos socioculturais que englobam e configuram a sua existência na contemporaneidade. Corpo e sociedade estão de tal modo entrelaçados no mundo contemporâneo que é possível pensar, em conjunto, as formas que assume na sociedade.
A dinâmica de tal enfoque sobre o corpo se traduz num diálogo entre as diversas áreas do conhecimento, as quais se desdobram no trato interdisciplinar, como na Antropologia, Sociologia, Comunicação, Biologia, Psicanálise, Direito, etc. Mas, o que é interessante notar é que o corpo não se constitui propriedade de uma só ciência, como se tentou encerrá-lo às Ciências Biológicas por algum tempo, mas é objeto de compreensão de diferentes disciplinas. O que devemos considerar é que quando paramos para pensar o corpo, adentramos a um universo que pode ser imaginado por diversos fatores que o colocam em cena, como as roupas que o escondem e o esculpem, as doenças que o maltratam e o condenam, as emoções e sensações que dele emanam e que dele transcendem, enfim, são tantas as possibilidades de pesquisar as apreensões das realidades corporais que tornaria impossível encerrá-las a um determinado campo de análise.
A partir do final do século XIX e início do século XX, o corpo passou a ser considerado pela ciência como uma construção social e não mais pertencente apenas ao campo das ciências biológicas. A ciência sociológica surge nesse período como forma de responder aos problemas que começam a surgir na sociedade no período de transição entre o século XVIII e século XIX. O fato principal é a consolidação do capitalismo marcado a princípio com a revolução industrial, o que ocasionou uma série de mudanças na estrutura social e que trouxe transformações nas concepções filosóficas de ser humano e de mundo. A partir desse momento na história da sociedade, surgem várias correntes filosóficas e sociológicas que tentam explicar as transformações ocorridas nessa esfera e suas conseqüências para a vida do dia-a-dia.
Os estudos antropológicos de Marcel Mauss (1950) representam um contributivo para que compreendamos essa dimensão social do corpo de forma mais abrangente, ou seja, o corpo como sujeito de modelos e leis definidas de acordo com requisitos locais, temporais grupais e sociais.
Mauss, ao postular sobre as técnicas corporais, admite que as mesmas são objeto de uma construção social em que moldamos o nosso corpo de forma que a nossa peça no "quebra-cabeças" social se encaixe perfeitamente (MAUSS, 1974). Assim, todo grupo social produz e reproduz uma forma aceita de corpos e de seus usos, bem como sua representação social.
Quando estabelecemos uma relação do corpo em ética, pretendemos entendê-lo não a partir de um juízo de valor, mas sim, a partir do que entendemos sobre ética para que assim possamos compreender o que temos e o que somos enquanto sociedade e o que pretendemos ser, num devir que traz como exigência uma análise e uma postura do que vivenciamos nos dias atuais que nos permite ser "seres éticos".
Lévi-Strauss destaca na introdução de "Sociologia e Antropologia" (1974) de Mauss, a importância que esse autor confere à maneira de se interpretar a relação indivíduo-sociedade relacionando o fisiológico ao social. Com o estudo das "técnicas corporais", Mauss rompeu com o determinismo biológico do século XIX.
Mauss, particularmente no capítulo denominado "As técnicas corporais", defende que cada sociedade produz através dos gestos mais naturais, normas coletivas nas quais muitos valores se encarnam nos usos mais concretos do corpo. Indica-nos, também, que a produção das técnicas corporais eficazes e tradicionais de uma sociedade, permite-nos entender certas especificidades de uma cultura. (MAUSS, 1974, p. 211)
Através dessa análise, podemos observar que uma série de atos são repassados à pessoa pela educação, pela sociedade e pelo papel que ela ocupa nessa mesma sociedade. O corpo e sua simbologia, conforme defende Mauss, "é o instrumento primeiro e o mais natural objeto técnico do ser humano onde são inscritas as tradições de todo sistema da sociedade". (MAUSS, 1974, p. 217)
Nesse sentido, o que temos e o que somos é uma moral que é construída a partir dessas interrelações culturais que determinam o que somos e o que temos em relação à interação indivíduo-sociedade. Por outro lado, temos uma palavra que se confunde ao mesmo tempo com a moral, mas que exige em seu sentido mais profundo, uma atitude mais prática do que uma palavra ou conceito propriamente dito. Normalmente, tendemos a confundir moral com ética, mas ao analisarmos de forma concisa esses dois elementos, percebemos o quanto diferenciam entre si no que concerne à vida em sua instância mais natural.
A sociedade que somos desenvolve uma moral acerca do corpo, isto é, estabelece valores, um conjunto de regras ou normas de conduta próprias de um grupo social ou um indivíduo. Conhecer como uma pessoa comporta-se em relação às coisas é conhecer a sua formação moral. Em nossa maneira de encarar a vida, a moral está presente. Um ator social destituído de qualquer padrão moral não existe: é o padrão moral que determina a sociabilidade das pessoas.
Por outro lado, temos como suporte para questionarmos a moral construída e pré-estabelecida a partir da noção de "corpo individual e social", a ética, que consiste na reflexão acerca dos valores comumente aceitáveis na vida em sociedade. Ela faz uma reflexão sobre os fundamentos da vida moral e permite que sejamos indivíduos mais conscientes de nossa ação com relação aos outros indivíduos e ao meio ambiente no qual estamos inseridos.
A proposição de "um corpo em ética" parte do pressuposto de que apesar de haver certo "determinismo cultural" no que diz respeito às nossas atitudes frente às questões que surgem na relação indivíduo-sociedade, é possível que sejamos capazes de questionar as intenções e os efeitos quando assumimos nossa condição humana de forma consciente, sempre tendo em consideração que essa condição é permeada com uma relação dialética que é pautada sob necessidades e liberdade, limites e potencialidades, o que nos permite tornarmo-nos seres responsáveis pelas nossas atitudes no que diz respeito não só às intenções das nossas ações, mas também pelas suas consequências. Segundo Sung, "A consciência ética que surge desse conjunto é diferente de uma simples assimilação de valores e normas vigentes da sociedade". (SUNG, 2007, p. 22)
Partindo dessa análise, entendemos que o ser humano é um ser inacabado, e como tal, tem na consciência ética a maneira mais vital de descobrir se os valores morais da sociedade ou os dele mesmo encobrem algum interesse particular não confessável ou inconsciente que rompe com os princípios essenciais para se viver em sociedade.
1.1 A SOCIEDADE QUE SOMOS NA CONTEMPORANEIDADE
Nos nossos dias, o que vivenciamos e temos na sociedade é sem dúvida, uma sociedade pragmática, que busca na relação indivíduo-resultado a busca pela satisfação do corpo em todas as suas instâncias. O pragmatismo é um sistema e um método filosófico defendido por William James, filósofo e psicólogo norte-americano (1842-1910) que tem como principal pressuposto metodológico o conhecimento concebido como profundo modificador da realidade, ou seja, a construção da verdade deve corresponder à construção da realidade. Conhecimento e ação tornam-se elementos equivalentes. Na moral pragmatista, "bem" é aquilo que propicia resultados concretos como bem-estar, harmonia e aprimoramento das potencialidades do indivíduo. Esses três elementos se tornariam plausíveis em relação ao tipo de sociedade que pretendemos, porém em uma sociedade como a nossa, regida pelo mercado, os resultados são definidos por esse mercado, um exemplo disso é o que diz respeito ao processo de construção do conhecimento, onde o bom aprendizado é aquele que propicia ao estudante se inserir eficientemente no mercado de trabalho e, consequentemente, tornar-se um "consumidor" em potencial.
Hoje o que temos é uma sociedade que vive entre os limiares do consumismo e o que somos encontra-se em estreita relação de dependência com as condições materiais de nossa existência. Quando essas condições não nos são favoráveis recorremos aos mais insólitos meios de sobrevivência. No campo do conhecimento, buscamos o mesmo enquanto base de instrução científica e mercadológica, mas perdemos a dimensão do que Morin (2003) defende como "o conhecimento pertinente", ou seja, aquele que não se restringe apenas ao acesso às informações, mas um conhecimento que é aprendido por meio da organização e da articulação. Saberes isolados não são funcionais e geram sujeitos alienados, isso traz consequências para a vida em sociedade, uma delas, é a busca de fatores que acabam por prejudicar não somente o indivíduo, mas a vida enquanto sistema social organizado e dinâmico.
Segundo Parsons, (1902-1979) toda ação humana é resultado de interação, é a relação entre o ator social e o ambiente que o cerca que se constitui numa resposta diante de um determinado estímulo exterior. A ação social é sempre orientada e motivada pelos significados, pelos sentidos que o ator social descobre em sua interação com o ambiente, elaborando, inserindo signos e símbolos. (LALLEMENT, 2004).
O corpo como ator social vive hoje entre a equalização do problema da "interiorização da exterioridade" e da "exteriorização da interioridade", que segundo Bourdieu (1930-2002), é o grande dilema da sociedade atual. O que podemos entender sobre isso é que existe um sentimento de ambivalência, em que o indivíduo é habitado por dois sentimentos opostos, ou seja, ele oscila entre absorver o que a sociedade impõe como aceitável em termos de vivência ao seu comportamento ("interiorização da exterioridade") e vive no dilema de "colocar pra fora" os supostos "valores" que aprende e apreende como sendo adequados ao meio no qual se insere (exteriorização da interioridade").
Em muitos dos casos, o que somos hoje em sociedade é resultado de uma relação de liquidez, vivemos numa sociedade líquida, onde a ética perdeu seu sentido máximo e onde os juízos de valores não nos ajudam a traduzir adequadamente a realidade. Dessa maneira, reproduzimos em nossas ações as indeterminações da linguagem do consumismo sem ao menos questionarmos se essa linguagem é plausível ou não. O que temos como resultado disso? As catástrofes em seus mais variados âmbitos, a pior delas, seria o processo de acomodação do ser humano ao que nos é imposto pelo sistema capitalista de produção.
Temos como reflexo de tal situação a sensação de que estamos à mercê do desabrigo da compreensão dessa realidade que nos cerca. Estamos em casa, sem efetivamente, nos sentirmos em casa, reflexo de toda uma realidade marcadamente globalizada, excludente e ambivalente.




CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo que podemos constatar até agora é que o sentimento de ambivalência que existe na construção sociocultural do corpo na atualidade, leva-nos a buscar nos princípios da ética, como uma busca de não conformidade aos padrões pré-estabelecidos como naturais e aceitáveis. Isso nos permite desenvolver a consciência de que ao lado da autonomia individual do corpo e da iniciativa, cabe-nos desenvolver, ao mesmo tempo, a ética como noção de responsabilidade pessoal e de participação social efetiva.
Quando assim nos dispomos a compreender a condição ética que aí se impõe, percebemos a realidade que nos cerca de forma mais dinâmica e esclarecedora. Apesar de vivermos num universo de ambivalência, que em muitos dos casos, não nos permite entender de forma evidente a nossa realidade, podemos perceber que nesse espaço de ambivalência podemos encontrar o espaço da liberdade, no sentido do "devir" (tornar-se) que é sempre possível, pois os caminhos não se encontram fechados, sempre há novas possibilidades de mudança quando colocamos o corpo individual e o social a favor da compreensão ética da realidade que nos cerca.
Nesse sentido, o mundo das possibilidades tende a ser o mundo de habilidades necessárias para enfrentarmos essa condição de vida em sociedade que vivemos na atualidade. Quanto mais tornamo-nos sujeitos éticos, mais norteamos nossas vidas não somente por princípios, mas principalmente, pela análise consciente e reflexiva do contexto e dos efeitos que podem causar nossas ações a nós mesmos, ao outro e ao mundo do qual fazemos parte.










REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, Pierre. O desencantamento do mundo: estruturas econômicas e estruturas temporais. São Paulo: Perspectiva, 1979.
LALLEMENT, Michel. História das ideias sociológicas: de Parsons aos contemporâneos. Petrópolis: Vozes, 2004.
LE BRETON, David. A Sociologia do corpo. 2ª ed. Trad. Sonia M. S. Fuhrmann. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
LÉVI-SATRAUSS C. Introdução à obra de Marcel Mauss, in MAUSS, Marcel. MAUSS, Marcel. As técnicas corporais: a noção de pessoa. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: EDUSP, 1974.
MAUSS, Marcel. As técnicas corporais: a noção de pessoa. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: EDUSP, 1974.
MORIN, Edgar. Os sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. 3ª. ed. . São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2001.
NERY, Maria Clara Ramos. Sociologia contemporânea. Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2007.
PARSONS, Talcott. El sistema social. Madrid: Revista Del Occidente, 1996.
SUNG, Jung Mo. Conversando sobre ética e sociedade. 14ª ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2007.
VILLAÇA, Nízia. A edição do corpo. Barueri. São Paulo: Estação das Letras Editora, 2007.