Constituição: uma luta entre questões jurídicas e políticas

Por Iman Said Kozman Ferreira El-Kems | 16/06/2017 | Direito

  1. Introdução

Com o tema abordado buscamos uma análise crítica dos conceitos de constituição para Lassale, Hesse e Canotilho. Estes possuem suas diferenças e peculiaridades no seu entendimento por constituição.

Lassale, colega de Karl Marx., da muita importância das relações de poder existente na sociedade como reflexo na constituição, enquanto Hesse se opõe e faz uma crítica à Lassale, por considerar somente esses fatores como essenciais para a constituição e a sua desvalorização da constituição jurídica. Canotilho por sua vez defende uma teoria de constituição, primeiramente, garantidora dos direitos fundamentais e auto-suficiente por si só, através do seu texto normativo e mais tarde refuta esse ideal para a substituição de uma constituição com maior participação popular.

Existem diversas teorias constitucionais e uma que está em formação é a da Constituição contemporânea. Todas essas teorias tem por intenção a adaptação das necessidades da sociedade que se encontram em constante mutação, pois um modelo de constituição utilizado hoje pode não ser ideal para gerações futuras ou até mesmo para outro país que possui realidades diferentes.

O Direito Constitucional é o ramo que propicia o estudo da organização do estado, seus limites de atuação e a sua estruturação política. Aqui buscamos elucidar tais formas e conceitos estudados por esse ramo.

  1. Conceitos da constituição

Compreende-se como Constituição a organização jurídica fundamental de um estado, podendo ser de caráter jurídico, escrito ou costumeiro, que tem por objetivo a delimitação do poder político em prol da proteção dos seus cidadãos. Esta possui supremacia no âmbito jurídico, formada por normas e princípios que ordenam e coordenam o restante do ordenamento.

A constituição para Hans Kelsen ocupa o ápice do ordenamento jurídico, não devendo nunca ser posta no mesmo patamar que uma lei ordinária, possuindo sempre supremacia em relação as demais, logo uma lei só terá validade se essa for compatível com a Constituição, fato que confere unidade ao sistema

Uma constituição pode ser originada através de uma imposição pelo governo, cujas leis serão formuladas sem participação do povo, somente de acordo com a vontade dos detentores do poder, sendo essa constituição considerada como outorgada, o que não retira da constituição a sua validade pela forma ditatorial que foi criada, ou pode ser promulgada quando ela é formulada a partir da vontade do povo, que elege uma Assembléia Constituinte que irá criar leis constitucionais de acordo com os anseios da sociedade.

O Poder Constituinte serve para garantir as reformas constitucionais através do Poder Constituinte Derivado, ou pode servir para a criação de uma nova constituição no caso da necessidade de revogação da constituição atual, por meio do Poder Constituinte Originário.

 É necessário a presença de estabilidade na constituição para a sua maior eficácia na sociedade, o que garante segurança jurídica. Esta é alcançada através da sua rigidez, porém para garantir com que esteja de acordo com a sociedade às vezes se vê a necessidade de uma mudança no texto constitucional, a existência de princípios diminui esse problema, porém nem sempre se consegue evitar a utilização do Poder Derivado.

Nos capítulos seguintes abordaremos o conceito de constituição de acordo com pensadores que foram de maior destaque no decorrer da história.

  1. Ferdinand Lassale

Lassale faz uma nítida divisão da constituição em duas: constituição real e constituição jurídica. De acordo com o seu conceito de constituição, esta é nada mais do que a soma dos fatores reais de poder, sendo esses fatores representados pelo poder dominante presente na sociedade, como o poderio militar, social, intelectual e econômico.

A concomitância e a sintonia da constituição real com a constituição jurídica, ou constituição real e pedaço de papel, comumente utilizado por Lassale parar denominar constituição jurídica, se vê a efetivação de um fator jurídico, a existência de uma lei, ou seja, o seu não cumprimento tem por consequência uma punição.

É necessário transpor na constituição escrita os fatores reais de poder, pois no momento em que um entra em conflito com o outro é inevitável a expiração da jurídica em detrimento da real, até que está esteja de acordo com a realidade social.

No seu livro O Que é uma Constituição (1993), Lassale assinala:

 “Assim, pois, todos os países possuem ou possuíram sempre, e em todos os momentos da sua história uma Constituição real e verdadeira. A diferença nos tempos modernos — e isto não deve ficar esquecido, pois tem muitíssima importância — não são as Constituições reais e efetivas, mas sim as Constituições escritas nas folhas de papel.”

Deste modo entendemos que a constituição é estruturada por uma necessidade existente no país, quer ela seja escrita ou não. A inexistência de uma constituição escrita não significa a ausência de uma constituição, pois não existe nação sem a presença de fatores reais de poder, o que nos leva a possuir uma constituição real e efetiva no país.

Toda a sua obra se baseia em uma valorização exacerbada dos fatores reais de poder e a sua dominação em cima da constituição, tirando a supremacia da constituição jurídica e a transformando em uma questão meramente política.

 

  1. Konrad Hesse

O conceito de Constituição para Hesse sempre vai contra o conceito de Lassale. Enquanto para Lassale existe uma diferença entre a Constituição jurídica e a Constituição real, esse primeiro sempre sendo dominado e direcionado pela real, através do condicionamento da Constituição jurídica pelas relações de poder dominante existente na sociedade já explanado aqui, Hesse afirma que tal conceito estabelece muita instabilidade e insegurança na sociedade. Desse modo, a crítica que Hesse faz a Lassale tem como base a descaracterização da normatização da constituição e a sua transformação numa simples relação de poder, se tornando altamente mutável.

Konrad Hesse (1991, p.11) estabelece sua critica à Lassale no seu livro A Força Normativa da Constituição:

“Essa negação do direito constitucional importa na negação do seu valor enquanto ciência jurídica. Como toda ciência jurídica, o Direito Constitucional é ciência normativa... Assim, o Direito Constitucional não estaria a serviço de uma ordem estatal justa, cumprindo-lhe tão-somente a miserável função – indigna de qualquer ciência- de justificar as relações de poder dominantes.”

      A Constituição não deve ser vista como uma dominação entre a parte jurídica e a parte político-social, não deve ser vista somente como uma questão jurídica ou política, e sim analisada a partir do reconhecimento de uma ligação existente entre eles e o seu mútuo condicionamento. A existência de um isolamento, de uma soberania entre uma e outra, acaba por acarretar um positivismo jurídico ou em um positivismo sociológico (Hesse, 1991). No caso do extremo do positivismo jurídico se tem como consequência a não existência de uma realidade social e no positivismo sociológico se verifica a falta da normatividade, ambos contribuindo para a ineficácia da Constituição.

      Portanto é necessário encontrar um meio termo entre a normatização e as relações fáticas. Hesse ressalta que a vigência da norma constitucional é adquirida por meio da sua pretensão de eficácia, o qual deve ser associado com os fatores históricos, políticos e sociais de sua realização. Desse modo a constituição torna-se simultaneamente determinada pela realidade social e um regulador da mesma.

      Ao contrário de Lassale, Hesse procura enfatizar a importância e a autonomia da Constituição jurídica. Essa adquire sua força normativa no momento em que a constituição possui pretensão de eficácia. Contudo a força normativa só há de existir se a constituição estiver de acordo racionalmente com as forças dominantes do seu tempo, pois desse modo haverá uma vontade interna dos indivíduos do cumprimento dessas, garantindo a constituição sua força ativa, eficiência e vigência. Essa vontade interna é denominada por Hesse(1991, p.12) como vontade da constituição, onde ele ressalta:

“Essa vontade de Constituição origina-se de três vertentes diversas. Baseia-se na compreensão da necessidade e do valor de urna ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme. Reside, igualmente na compreensão de que essa ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada

pelos fatos (e que, por isso, necessita de estar em constante processo de legitimação). Assenta-se também na consciência de que, ao contrário do que se dá com uma lei do pensamento, essa ordem não logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana. Essa ordem adquire e mantém sua vigência através de atos de vontade.” 

Consequentemente a força normativa de uma constituição será de maior eficiência quanto mais ela corresponder com a realidade na qual está inserida. Porém como a sociedade está em constante mutação, é necessário levar em consideração a mudança da realidade e a estagnação da constituição jurídica. A existência de revisões constitucionais frequentes auxiliam para que haja uma insegurança, sendo que a estabilidade é uma condição fundamental para a sua eficácia. A existência de princípios fundamentais e de mudança na interpretação da constituição de acordo com a sua realidade social contribuem para que haja um acompanhamento tanto no conteúdo da constituição quando nas relações existentes na sociedade.

      Compreende-se dessa forma, que a Constituição necessita estar de acordo com a realidade que está inserida, o que não a torna dependente exclusivamente desta, simplesmente há um condicionamento recíproco de ambos, que irá garantir a sua legitimação e atuação na sociedade. 

  1. J.J Gomes Canotilho

José Joaquim Gomes Canotilho, um dos maiores influenciadores do constitucionalismo brasileiro, contribuições essas que se encontram vigente até hoje no Brasil na constituição de 88, defendeu inicialmente a constituição dirigente como ideal. Esta tese de constituição dirigente defende que os direitos fundamentais dos cidadãos devem estar presentes no texto normativo da constituição para a sua garantia e efetivação obrigatória.

Entende-se como constituição dirigente uma lei fundamental, superior as demais leis ordinárias, que visa a coordenação do Estado, os seus fins e suas tarefas. O passado, presente e o futuro de uma determinada comunidade, através das constituições dirigentes, estão presentes no texto constitucional. Desse modo, o legislador se encontra vinculado à constituição, devendo sempre atuar visando à concretização por via legislativa das imposições constitucionais, delimitando o seu poder, havendo a supremacia da constituição.

A Constituição brasileira, ao ser dirigente, preserva o Estado Democrático de Direito, sendo este composto pelo respeito aos direitos fundamentais e a democracia. Esta existência da normatização constitucional dos direitos fundamentais consiste na obrigação de responsabilidade que o Poder Público passa a possuir de garantir esses direitos aos indivíduos presentes na sociedade.

Houve uma necessidade de implantação do Estado de Direito a partir da segunda guerra mundial, para que se pudesse evitar ações contra os direitos fundamentais na alegação de estar obedecendo a constituição vigente no seu país de origem, como aconteceu no caso dos alemães tentarem justificar os crimes hediondos cometidos que iam contra todos os direitos fundamentais e naturais do ser humano.

O Brasil por ser um país em que o Estado nunca se empenhou, efetivamente, em cumprir com as promessas de reduzir as desigualdades, fazer justiça social e de executar os direitos fundamentais sociais, possui a necessidade da concretização desses através da sua implementação no texto constitucional.

Entretanto, Canotilho passa a defender a ideia de uma constituição dirigida e proclama a morte da constituição dirigente. Os críticos do dirigismo constitucional sustentam que esta não seria uma forma democrática de direito, sendo necessária a participação da população para a determinação do futuro da sociedade.

“Em sentido parecido Habermas sustenta uma concepção procedimentalista que deveria ser assuma pelo constitucionalismo. A Constituição, para tanto, teria a sua função remetida ao exercício do controle da formação da vontade popular, com o dever de fiscalizar se as decisões tomadas guardariam respeito aos procedimentos previamente estabelecidos para a participação democrática da cidadania. Em outras palavras: garantir ao cidadão um processo liso nas decisões que envolvem o futuro do Estado. Essa perspectiva ficou conhecida na Teoria da Constituição como um modelo procedimental. A Constituição teria como tarefa primordial estabelecer a regras que deveriam ser observadas para que fosse proporcionando a todos a possibilidade de participação na formação da vontade democrática”

Canotilho passa a criticar a constituição dirigente pois ressalta que o dirigismo constitucional não pode ser considerado como normativismo constitucional revolucionário, as transformações sociais dependem da emancipação revolucionária dos indivíduos nela inserido. Não basta possuir na constituição transformações sociais e esperar que essa por si só ocorra, pois esse tipo de ação não depende somente do direito, é necessário o apoio da sociedade civil para a concretização de mudanças tão bruscas.

A constituição brasileira de 88 não possui cunho normativo revolucionário, essa critica feita por canotilho da constituição dirigente foi direcionada para a constituição de Portugal, que no seu texto constitucional possuía caráter revolucionário, prevendo a sua transformação para o socialismo. 

  1. Constituição Contemporânea

Em meio a tantas mudanças por quais passa a sociedade atual e diante de tantas mudanças sociais, o fenômeno jurídico também passou por uma renovação em alguns sentidos. Com essas mudanças, o positivismo começou a torna-se insuficiente para atender todas as demandas da sociedade e fez-se necessária a modificação do direito constitucional vigente para algo mais adequado à nova realidade, surgindo então a ideia de um constitucionalismo contemporâneo que já traz mudanças que procuram preencher as expectativas e as cobranças que se faz ao sistema normativo atual.

As doutrinas do constitucionalismo contemporâneo prega a ideia de uma nova visão de constituição que está sendo formada, de que novos valores estão sendo criados e que o emprego da constituição está se adequando a uma nova realidade. Chama-se esse momento de Neoconstitucionalismo, sendo que essa nova expressão está associada a uma fase do constitucionalismo contemporâneo, segundo o qual a ideia de neo implica em uma noção de novo, de uma mudança nos valores pregados pela constituição atual em relação a constituição que a antecede.

De acordo com o Neoconstitucionalismo, o sistema jurídico contemporâneo passou por mudanças tanto de cunho metodológico-formal como de cunho material. Essa tese, defendida por Ana Paula de Barcellos[1], distingui os três pontos, de acordo com o critério metodológico-formal, que marcam a passagem no direito constitucional que o aconteceu para o direito constitucional contemporâneo:

(i) A normatividade da constituição; (ii) A superioridade da Constituição sobre o restante da ordem  jurídica; (iii) A centralidade da Carta nos sistemas jurídicos, por força de fato de que os demais ramos do Direito devem ser compreendidos e interpretados  a partir do que dispõe a constituição.

[...]

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