Constituição Federal De 1988 e a Redemocratização
Por Nourmirio Bittencourt Tesseroli Filho | 14/10/2008 | DireitoCONSTITUIÇÃO "CIDADÃ" DE 1988 e a Redemocratização
Nourmirio Bittencourt Tesseroli Filho
Introdução
Certa feita, na Sessão da Assembléia Nacional Constituinte, bradou o saudoso
Ulysses Guimarães:
"Esta Constituição terá cheiro de amanhã, não de mofo".
Fato triste, porém, é que alguns dias após o quarto aniversário da aludida
Constituição, o helicóptero que transportava Ulysses Guimarães sofreu uma queda
após sair de Angra dos Reis, litoral do Rio de Janeiro. Não obstante o corpo do
deputado Ulysses não tenha sido encontrado, seu passamento foi oficialmente
reconhecido.
Ulysses desapareceu em 12 de outubro de 1992, mas a sua sonhada cria, batizada
por ele de Constituição Cidadã, ainda vive - assegurando a todos os brasileiros
direitos e garantias fundamentais ignorados durante duas décadas de regime
militar.
20 (vinte) e poucos anos...
Há 20 (vinte) anos o Brasil foi apresentado à Constituição Federal de 1988,
apelidada pelo "Senhor Diretas" de Constituição Cidadã, tendo em conta a ampla
participação do povo durante a sua confecção.
Na Sessão da Assembléia Nacional Constituinte, em 27 de julho de 1988,
discursou Ulysses Guimarães, à época deputado federal: "Repito: essa será a Constituição
cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros, vítimas da pior
das discriminações: a miséria".
E ele tinha razão. Embora muitos brasileiros ainda estejam na completa miséria,
"segregados nos guetos da perseguição social", não se pode negar que a Carta de
88 foi a que apresentou maior legitimidade popular.
Dentre diversas características, a CF/88 contempla vários deveres para o Estado
- obrigações passíveis, em princípio, de serem exigidas pela população. E esse
é um dos motivos da Carta Magna ter recebido o apelido de "Cidadã" pelo
Presidente da Assembléia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães,
conhecido como "Senhor Diretas" ou "O Grande Timoneiro", figura ilustre da
política brasileira.
Com o término do período de ditadura militar, José Sarney, sucessor de Tancredo
Neves, encaminhou ao Congresso Nacional uma proposta de emenda à Constituição
de 1969, que resultou na EC n.º 26, de 27 de novembro de 1985. Tal emenda
convocou a supracitada Assembléia Nacional Constituinte, composta pelos
próprios deputados federais e senadores da época, ao mesmo tempo, congressistas
e constituintes - muitos deles vítimas dos abusos e arbitrariedades cometidos
durante o regime militar ditatorial.
A mencionada Constituinte, instalada no dia 1º de fevereiro de 1987, veio a
concluir seus trabalhos tão-somente em 05 de outubro de 1988, com a
promulgação, sob a proteção divina, da atual Carta Republicana.
"Declaro promulgado o documento da liberdade, da democracia e da justiça social
do Brasil", bradou Ulysses Guimarães, símbolo das "Diretas".
Mudanças...
Já se passaram mais de 20 (vinte) anos da promulgação da liberal e democrática
Carta Cidadã. De lá pra cá muitas alterações ocorreram, desfigurando boa parte
do trabalho laborioso do constituinte originário de 1988.
O texto original foi modificado 56 (cinqüenta e seis) vezes - trabalho
realizado pelo poder constituinte derivado reformador, com capacidade de
alterar o ordenamento constitucional vigente, por meio de um procedimento
específico, fixado pelo poder constituinte originário.
De se notar que Ulysses Guimarães tinha como certa a ocorrência de futuras
emendas. Ao apresentar a nova Carta ao povo brasileiro, afirmou:
"Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita, seria irreformável. Ela
própria, com humildade e realismo, admite ser emendada até por maioria mais
acessível, dentro de cinco anos. Não é a Constituição perfeita, mas será útil e
pioneira e desbravadora. Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados.
É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será
redentor o que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria".
De fato, não se revela uma Constituição perfeita, entretanto, como bem disse
Ulysses, tem "cheiro de amanhã". Não há dúvida que trouxe esperança ao povo
brasileiro, que ambicionava, diuturnamente, a erradicação da repressão militar
e o fim da perseguição política e das prisões ilegais.
Registre-se, a sociedade reivindicava por mudanças estruturais no país e foi
atendida. Após a eleição de Tancredo Neves para a presidência da República pelo
Colégio Eleitoral, a história brasileira tomou outro rumo.
Tancredo Neves, ex-governador de Minas Gerais e grande amigo de Ulysses, no
entanto, faleceu antes mesmo de ser empossado. Sendo assim, coube a José
Sarney, seu sucessor, convocar a Constituinte, composta por 559 congressistas,
que iniciara seus trabalhos em 1º de fevereiro de 1987, findando-os em 05 de
outubro de 1988, data da promulgação da hodierna Carta, fortemente influenciada
pela Constituição portuguesa de 1976.
Do sonho à realidade...
Tancredo Neves e Ulysses Silveira Guimarães sonhavam com uma nova Constituição,
objetivando romper os comandos estabelecidos pelo regime militar. Infelizmente,
ambos morreram sem visualizar seus sonhos realizados.
Ulysses ainda pôde saborear a conquista, mas por um curtíssimo tempo – período
não suficiente para ver a recuperação, como cidadãos, de milhares de
brasileiros.
No dia 05.10.2008, a liberal Constituição Cidadã completou 20 anos de
existência, porém o povo, o maior beneficiado com a sua promulgação, pouco a
exaltou, talvez porque inúmeros brasileiros ainda continuem vítimas da pior das
discriminações: a miséria.
Os cidadãos, em massa, não obstante pouco eufóricos com relação ao vigésimo
aniversário da Carta Política de 1988, foram às urnas, visando a eleger seus
candidatos, concorrentes a cargos públicos nos Poderes Legislativo e Executivo,
na seara municipal.
Coincidentemente, a Constituição atual comemorou seu vigésimo aniversário no
primeiro domingo de outubro, data eleita pelo legislador constituinte
originário para a realização de distintas eleições no âmbito do território
brasileiro.
Felizmente para o povo, a vigente Carta consagra o sufrágio universal,
assegurando a todos os nacionais, no gozo de seus direitos políticos, o direito
de votar – independentemente da satisfação de condição econômica, profissional,
intelectual etc.
Nesse contexto, é importante lembrar que a "democracia é o governo do povo,
pelo povo e para o povo", conforme dizia Abraham Lincoln. E consoante
estabelece o parágrafo único, do art. 1º, da atual Carta de 88, "todo poder
emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente".
Os direitos políticos...
Os direitos políticos "garantem a participação do povo no poder de dominação
política por meio das diversas modalidades de direito de sufrágio: direito de
voto nas eleições, direito de elegibilidade (direito de ser votado), direito de
voto nos plebiscitos e referendos, assim como por outros direitos de
participação popular, como o direito de iniciativa popular, o direito de propor
ação popular e o direito de organizar e participar de partidos políticos" (José
Afonso da Silva).
À vista disso, vale lembrar que no governo de José Sarney, que assumira a
presidência do país em razão do falecimento de Tancredo Neves, consolidou-se a
redemocratização - muito embora, importante frisar, a eleição do primeiro
Presidente da República civil tenha se dado por sufrágio indireto.
Um pouco de história...
Nas eleições indiretas de 1985, que marcam o término do período de ditadura
militar, Tancredo Neves consagrou-se vitorioso, no entanto, veio a falecer
antes da posse, motivo pelo qual foi empossado o seu vice, José Ribamar
Ferreira de Araújo Costa - José Sarney, político e escritor brasileiro.
Em 1989, depois de 25 anos de regime militar, o povo elegia, pelo voto direto,
em dois turnos, Fernando Affonso Collor de Mello.
Após a renúncia de Collor, o mineiro Itamar Franco, em 29 de dezembro de 1992,
assume definitivamente a Presidência da República.
Mais tarde, por meio de eleição direta, Fernando Henrique Cardoso é eleito
Presidente do país para o mandato de 04 anos (mandato reduzido de 05 anos –
redação original da Carta de 1988 – para 04 anos, por força da Emenda
Constitucional de Revisão n. 05/94), tornando-se, inclusive, o primeiro
Presidente da história da República reeleito para um período subseqüente.
Registre-se, durante o mandato do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, foi
aprovada a EC n. 16/97, que, mantendo o mandato de 04 anos, permitiu uma única
reeleição subseqüente. Amparado na precitada emenda e apoiado pelo povo
brasileiro, Fernando Henrique Cardoso foi reeleito, mantendo-se à frente da administração
do país até o final de 2002.
Luiz Inácio Lula da Silva, democraticamente, após o término do segundo mandato
de Fernando Henrique Cardoso, foi eleito pelo povo o novo Presidente da
República.
"Lula", migrante nordestino e ex-metalúrgico de Garanhuns/PE, foi reeleito em
outubro de 2006, em disputa com Geraldo Alckmin, assumindo o novo mandato em 01
de janeiro de 2007.
Enfim, não se pode negar que com o governo do maranhense José Sarney
consolidou-se a redemocratização no país – o que o saudoso deputado Ulysses
Guimarães tanto ambicionava.
Em seu discurso pronunciado na Sessão da Assembléia Nacional Constituinte, em
27 de julho de 1988, antes, portanto, de promulgar a Constituição atual,
Ulysses ressaltou:
"A soberania popular, sem intermediação, poderá decidir seus destinos. Os
cidadãos apresentarão proposta de lei, portanto terão a iniciativa congressual,
e também poderão rejeitar projetos pela Câmara dos Deputados e pelo Senado
Federal. Portanto, os cidadãos propõem e vetam. São legisladores, exercitam a
democracia direta".
No tocante à citada democracia direta, é importante lembrar que tivemos o
primeiro plebiscito no Brasil na data de 21 de abril de 1993. Os cidadãos foram
convocados para decidirem a respeito das formas e dos sistemas de governo –
preterindo a Monarquia (forma de governo) e o Parlamentarismo (sistema de
governo).
Manteve-se, pois, a República, como forma de governo, e o Presidencialismo,
como sistema de governo.
Com a Carta de 1988 o Município foi consagrado como entidade federativa e
Brasília passou a ser a Capital Federal.
Hodiernamente, portanto, o Distrito Federal não é mais Capital Federal,
porquanto, de acordo com o art. 18, § 1º, da CF/88, a Capital Federal é
Brasília, que se situa dentro do território do Distrito Federal.
Foi criado o Estado de Tocantins, e os Territórios Federais de Roraima e do
Amapá foram transformados em Estados-membros. O
Território Federal de Fernando de Noronha foi extinto, sendo
a sua área reincorporada ao Estado de Pernambuco.
O TFR (Tribunal Federal de Recursos), criado com a Carta Magna de 1946
(Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil), foi extinto, dando
lugar aos Tribunais Regionais Federais e ao Superior Tribunal de Justiça
(Tribunal da Cidadania), este tendo como primordial missão a uniformização do
entendimento das leis federais infraconstitucionais ou subconstitucionais.
Digno de nota, também, é o fortalecimento das instituições democráticas, dentre
elas o Ministério Público. A Constituição hodierna instituiu o Ministério
Público como um órgão autônomo e independente - não subordinado aos poderes
constituídos.
O chefe do Ministério Público da União, o Procurador-Geral da República, passou
a exercer um mandato, não sendo mais demissível "ad nutum" pelo chefe do Poder
Executivo Nacional. Assim como o Procurador-Geral da República, outros órgãos e
pessoas passaram a ter legitimidade ativa para o ajuizamento da ação direta de
inconstitucionalidade, findando, assim, o monopólio ministerial.
Com a promulgação da Carta em 1988, surgiram o "habeas data", o mandado de
injunção e o mandado de segurança coletivo - todos remédios judiciais, de
índole constitucional, servíveis para prevenir e combater diversas doenças ou
síndromes, passíveis de cura.
Convém salientar, outrossim, que com a Carta Política atual o objeto da ação
popular foi ampliado. Atualmente, qualquer cidadão é parte legítima para propor
a mencionada ação popular que vise anular ato lesivo ao patrimônio público ou
de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio
ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo
comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.
Segundo Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino, o "âmbito de proteção da ação
popular, na vigente Constituição, é bastante amplo: abrange tanto o patrimônio
material quanto o patrimônio moral, o estético, o histórico, o ambiental"
(Direito Constitucional Descomplicado. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora
Impetus, 2008).
Como já ressaltado, os direitos políticos asseguram a participação do povo no
poder "de dominação política" por intermédio das diversas categorias de direito
de sufrágio, dentre elas, o direito de intentar ação popular.
Sem pálio de dúvida, com a promulgação da atual Carta Política, houve
ampliação, também, dos direitos sociais, que nos dizeres de José Afonso da
Silva, "são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou
indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores
condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização
de situações desiguais".
Em resumo, a Constituição Federal de 1988 reconhece e assegura uma série de
escudos protetivos aos cidadãos. Muitos destes, antes da promulgação da Carta
Cidadã, considerados vítimas de arbitrariedades praticadas durante a ditadura.
Desse modo, não há como negar que hoje o nosso Estado é uma organização
centrada no ser humano. A dignidade da pessoa humana, aliás, é um fundamento da
República Federativa do Brasil, e são diversos os valores constitucionais que
advêm diretamente da idéia de "dignidade humana", tais como: o direito à vida,
à liberdade, à imagem, à honra etc.
Não temos mais a algoz censura e a prática sistemática de tortura. Atualmente,
a pessoa humana elege e governa, direta e indiretamente, exercendo a cidadania,
participando da vida política do país.
Apesar dos pesares, o povo, hoje, tem identidade – o que em outras épocas não
existia.
É o "cheiro de amanhã"...
É a "Nova República", que muito embora carecedora de ajuda, caminha melhor que
outrora, em conformidade com os anseios de Tancredo, Ulysses, Joões, Marias e
de muitos outros, assim como você.
REFERÊNCIAS
ALEXANDRINO, Marcelo & PAULO, Vicente. Direito Constitucional Descomplicado.
2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2008.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª Edição.
São Paulo: Editora Malheiros, 2007.