Considerações acerca do Acórdão extraordinário do Rio de Janeiro de 18/04/1792, em autos de devassa da Inconfidência Mineira

Por Camila da Fonsêca Aranha | 18/01/2011 | Direito

Considerações acerca do Acórdão extraordinário do Rio de Janeiro de 18/04/1792, em autos de devassa da Inconfidência Mineira


Camila da Fonsêca Aranha


O presente estudo tem por objetivo analisar um trecho do acórdão extraordinário do Rio de Janeiro, datado de 18/04/1792, contido nos autos de devassa da Inconfidência Mineira, especificamente no tocante à punição recebida por Joaquim José da Silva Xavier (Tiradentes), sob a perspectiva dos pressupostos teórico-pragmáticos do Direito Penal Brasileiro ? Código Penal Brasileiro de 1940 e Doutrinas e da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Conforme o perpasse histórico feito por Foucault (2009), pôde-se constatar que as penas sofreram e até hoje sofrem intensas modificações ? sejam elas mais concretas, quanto ao modo de aplicação, ou referentes ao seu embasamento político-jurídico, quanto a sua fundamentação ?, haja vista que elas são consequências do pensamento humano, i.é., sempre estarão passíveis de mudanças à medida que as próprias necessidades e exigências da sociedade também se modificam constantemente, mesmo que de forma gradual. Logo, é possível afirmar que, nos primórdios da humanidade, as sanções penais em muito diferiam das que são previstas atualmente, entretanto, pode-se dizer que eram proporcionais ao entendimento da época, ou seja, havia todo um pensamento específico acerca da valoração repressiva do autor de um fato considerado crime, valoração esta que, obviamente, não é a mesma da contemporaneidade, em virtude de diversos fatores que serão aqui explanados.
Em sua origem, a pena possuía um caráter puramente punitivo/repressivo e mitológico, uma vez que a sociedade clássica acreditava que os fenômenos naturais maléficos resultavam da ira dos deuses, passando a exigir-se, então, reparação do determinado ato danoso. Na tentativa de contenção de tal ira divina, foi criada uma série de proibições arbitrárias, que, caso fossem desrespeitadas, eram apenadas. Seguindo de modo crescente a linha do tempo, porém sem uma exatidão cronológica, passou-se pelo período da Vingança Privada, em que os posicionamentos e decisões extremamente arbitrários permaneceram, pois, cometido um crime, ocorria a reação da vítima e até mesmo de seus parentes e/ou tribo de modo ilimitado e sem nenhuma restrição. Depois disso, houve o período do Talião (do latim, lex talionis, isto é, lei de tal), no qual houve grande evolução devido à previsão do que seria crime e qual sua pena respectiva no Código de Hamurabi e na Lei das XII Tábuas. O período do Talião, nome este oriundo da famigerada Lei do Talião ("olho por olho, dente por dente"), representou enorme avanço no campo das ciências criminais, pois, de certa forma, veio a regulamentar a livre arbitrariedade de definir quais os fatos considerados como crime e como o seu autor deveria ser apenado, estabelecendo desde então certo grau de proporcionalidade.
Após esse momento, tiveram ainda o período da Composição (representado pelo Código de Manu ? da Índia), no qual o ofensor se libertava do castigo com a compra de sua liberdade, o da Vingança Divina (representado pelo Livro das Cinco Penas - China), em que ocorria uma espécie de delegação divina para que os sacerdotes pudessem atuar livremente acerca da cominação e aplicação das penas. Finalmente, adveio a chamada Vingança Pública, libertando a pena de um caráter religioso e transformando a responsabilidade do grupo em individual, além de regulamentar o que seria considerado crime e a respectiva pena para quem o cometesse.
Tratando especificamente acerca da punição recebida pelo inconfidente Tiradentes, é possível afirmar, de acordo com o que postula Foucault (2009), que a pena, nesse período ? século XVIII ?, servia não apenas como método punitivo/repressivo, isto é, como um instrumento jurídico propriamente dito, mas também, e até mesmo em mesmas proporções, como um instrumento político, visto que aqueles que desrespeitassem/corrompessem as leis e/ou conspirassem contra as regras sócio-jurídicas impostas estavam como que afrontando a figura do soberano, no caso de Tiradentes os interesses da Coroa Portuguesa. Dessa forma, fica claro que a pena recebida por Tiradentes visava não apenas a sua punição em si, mas também demonstrar a toda a sociedade de Minas Gerais o poder soberano da Coroa Portuguesa, uma vez que havia o interesse de deixar de exemplo tal fato e intimidar aqueles que ousassem desafiar esse poder soberano.
Como bem coloca Foucault (2009: 48):

O crime, além de sua vítima imediata, ataca o soberano; ataca-o pessoalmente, pois a lei vale como a vontade do soberano; ataca-o fisicamente, pois a força da lei é a força do príncipe. [...] A intervenção do soberano não é portanto uma arbitragem entre dois adversários; é mesmo muito mais que uma ação para fazer respeitaros direitos de cada um; é uma réplica direta àquele que a ofendeu.

Logo, a pena recebida por aquele cuja alcunha era de Tiradentes objetivava muito mais do que a pura ostentação ao suplício (com toda a questão do ritual de condução pelas ruas públicas ao lugar da forca, sua morte natural nela e seu esquartejamento e exposição das partes do seu corpo em diferentes locais), mas, até principalmente, servir de exemplo para que outras pessoas não tivessem atitudes parecidas e para que todos pudessem ficar cientes do grande e alto poder soberano da Coroa Portuguesa. Vale ressaltar, é claro, que Tiradentes, dentre todos os inconfidentes, era o único de baixo status social, sendo este um fator importante para explicar o porquê de ter sido somente ele condenado à forca.
Trazendo para a contemporaneidade, obviamente que tal acórdão não seria proferido com tanta crueldade, severidade e infâmia, haja vista a existência de princípios constitucionais humanistas, oriundos da própria Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1***.
O artigo 5º, inciso XXXIX da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, e o artigo 1º do Código Penal Brasileiro postulam que "não crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal" (nulla poena sine crimine, nullum crimen sine lege), estabelecendo, assim, o Princípio da Reserva Legal, inexistente no período da Inconfidência Mineira, no qual havia grande arbitrariedade para selecionar as penas, que, em sua maioria, eram extremamente severas e desumanas. Quanto a esse aspecto, o Princípio da Humanização, disposto no artigo 5º, inciso XLIX, da CRFB/88, estabelece que é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral", logo, tal punição recebida por Tiradentes não seria possível nos dias atuais. Ademais, a esse respeito, também dispõe a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a exemplo de seu artigo 5º, que coloca que "Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes". Além do artigo dessa declaração, o artigo 5º, inciso XLVII, da CRFB/88, estabelece que "Não haverá penas: a). de morte [...]; b). de caráter perpétuo; c). de trabalhos forçados; d). de banimento; e). cruéis". Posto isto, recorda-se de outros dois princípios constitucionais, quais sejam o Princípio da Limitação das Penas e o Princípio da Proporcionalidade ou Individualização da Pena, este último disposto no artigo 5º, inciso XLV da CRFB/88, que, em síntese, correspondem justamente ao amadurecimento do entendimento quanto à finalidade da pena mencionado no início do estudo, o entendimento da sociedade que muda constantemente com o passar dos tempos. No que tange a esse aspecto, a sociedade passou a entender que a pena deveria ter valoração proporcional ao bem jurídico afetado e não mais deveria ostentar o suplício ou ter caráter corporal.
Outro princípio constitucional atual bastante importante é aquele disposto no artigo 5º XLV da CRFB/88, que postula que "nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido". Assim sendo, a pena recebida por um autor de um crime jamais poderá ser repassada e/ou transferidas para seus parentes/sucessores, visto a existência do Princípio da Personalidade (ou Intransmissibilidade ou Responsabilidade Pessoal), que, de acordo com Greco (2009:79):

Quer o princípio constitucional dizer que, quando a responsablidade do condenado é penal, somente ele, e mais ninguém, poderá responder pela infração praticada. Qualquer que seja a natureza da penalidade aplicada ? privativa de liberdade, restritiva de direitos ou multa ?, somente o condenado é que deverá cumpri-la.

Destarte, é possível dizer que, nos dias atuais, os descendentes/parentes de Tiradentes não poderiam ser apenados pelo crime que ele cometeu, haja vista que somente o agente ativo do fato incriminado pode responder por ele.
Dessa maneira, tendo por base esse breve estudo do acórdão em questão e dos pressupostos teóricos constitucionais e penais brasileiros, bem como o entendimento do filósofo Michel Foucault, conclui-se que a pena sofreu diversas modificações, sendo elas quanto a sua natureza e quanto ao seu embasamento. Quanto ao seu embasamento, é necessário apontar que ela deixou de ser utilizada de modo arbitrário ao interesse de poucos (como uma espécie de vindita), passando a interessar ao próprio Estado, enquanto interesse público. N?outros termos, na atualidade sempre há a vítima direta enquanto agente passivo imediato do crime, entretanto tem-se o Estado enquanto agente passivo mediato do crime, visto que ao cometer um ato definido como crime e prejudicando um bem jurídico é também um mal contra o Estado, mesmo que o seja indiretamente. Quanto a sua natureza, compreende-se que, na antiguidade, a pena era aplicada puramente com fins punitivos e repressivos, porquanto que nos tempos contemporâneos ela é aplicada não somente com a intenção de punir, mas também de prevenir futuros crimes e ressocializar os criminosos, buscando apená-los de modo proporcional ao crime cometido e não infringindo sua integridade física e moral.
Por fim, no tocante ao futuro das penas, e tendo por base toda a sua evolução histórico-social, a lógica converge para que cada vez mais se busque a proporcionalidade e a tentativa de ressocialização, até mesmo pelas fortes influências dos Direitos Humanos no Direito Penal. A história é cíclica, e, justamente por isso, as hipóteses futuras incidem nesses quesitos: prevenção da ocorrência de crimes, punição e ressocialização do criminoso, só que de modo muito mais eficiente, tendo em vista as evoluções político-jurídicas e até mesmo tecnológicas e sociais.

Referências:

FOUCALT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 36ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. vol. I. 11ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009.