CONFISSÕES
Por Vania Gomes da Silva | 07/04/2010 | ContosEu tinha sete anos quando um juiz determinou que minha avó ficasse com minha guarda e de meu irmão. Mas ela não quis. Alegou que daríamos muita despesa e que precisava trabalhar e não havia ninguém para cuidar de nós. Então, o juiz decidiu que nossos padrinhos ficassem conosco.
Meu padrinho me buscou no juizado de menores no dia seguinte à sentença. Foi ele mesmo que me contou. Disse que chegou lá e me viu quietinho com meu irmão, nós dois cabisbaixos, tristes num canto. Ele chegou e com sua voz mansa, sempre calma, perguntou por mim a uma senhora que cuidava de nós e disse: “Tenho aqui a ordem judicial com a determinação da guarda.”. A dona me chamou, meu irmão foi junto. “Você não, baixinho, só o Betinho.” Vi, instantaneamente, o olhar de decepção de meu irmão, mas eu estava tão feliz em reconhecer aquela voz e ver aquele rosto, que nem olhei pra trás. Corri e dei-lhe o abraço mais forte que jamais dei em alguém em toda a minha vida. “Você vai morar comigo por um tempo, rapaz. Já está pronto?” Fiz que sim com a cabeça e procurei meu irmão. Meu padrinho percebeu minha preocupação: “O padrinho dele vem buscá-lo também. Já deve estar chegando. Despediu-se de seu irmão?” Dei um abraço no Robinho e vi que meu padrinho deu-lhe um pirulito: “Vou combinar com o seu padrinho de nos encontrarmos, Robinho.” Meu irmão sorriu, ficou feliz com o pirulito e, acho, em saber que também sairia dali.
Quando minha madrinha me viu, abraçou-me e disse que estava feliz por eu estar lá. Pegou-me pela mão, levou-me ao banheiro e deu-me um banho longo e dolorido: “Meu Deus! Está cheio de caracas!” Lembro-me até hoje do cheiro do sabonete, da água morninha em meu corpo de menino. Saí do banho todo enrugado e com uma fome! Meu padrinho me esperava lendo seu jornal. “Já vou servir o jantar, rapazes”, anunciou minha madrinha, parecendo que estava adivinhando.
Os dias que se seguiram foram os mais felizes de minha vida. Comecei a chamar meus padrinhos de “pai” e “mãe”. Tinha avó, avô, tios, tias e até um primo. Pela primeira vez, o Papai Noel deixou um brinquedo para mim e na Páscoa ganhei ovos de chocolate dos padrinhos, dos avós e tios. De vez em quando meu padrinho trazia o Robinho para almoçar e eu sabia que ele também tinha uma vida boa, não tanto quanto a minha, mas era melhor do que antes. Eu ia à escola e minha madrinha e me ajudava a fazer o dever. Quando tive uma gripe braba, me levaram ao médico e minha madrinha me dava sopa, água – nunca bebi tanta água na minha vida! – e remédios. Tive até uma festa de aniversário! Uma não! Duas: uma de oito e outra de nove anos. Ganhei muitos presentes. Até meu irmão levou presente pra mim! Viajei. Fui para Minas conhecer uns parentes – e descobri que tinha uma bisavó! Assustei-me quando vi aquela figura pequena e frágil segurando um pedaço de madeira e nos esperando no portão. Não quis entrar, estava com medo daquele pedaço de pau. Minha madrinha disse-me que aquela era a vovó e que ela era fraquinha e precisava da bengala para apoiar-se. Entrei, desconfiado, mas depois vi o quanto aquela velhinha era amável e incapaz de agredir uma mosca! Passeei muito, fui a parques de diversões, cinema, boliche, circo, kararokê...
Mais ou menos um mês depois do meu aniversário de nove anos, meu padrinho chamou-me para conversar e disse-me que eu voltaria a viver com minha mãe. Ela já havia se recuperado e eu e Robinho poderíamos crescer com ela. Chorei. Isso significava ir embora daquela casa, não ter mais festa de aniversário, não ter mais ovos de Páscoa, não ganhar mais brinquedos, não viajar, não passear. Vi que minha madrinha engoliu em seco e entrou em seu quarto sem dizer palavra. Voltei para a casa de minha mãe, assim como meu irmão. Meus padrinhos fizeram uma mala com minhas roupas e meus brinquedos e disseram que sempre me visitariam. Afinal, meu padrinho continuava a fazer os trabalhos sociais na favela.
Eu sempre via o meu padrinho. Ele era um homem bom e todos na favela o amavam. No meu aniversário e no Natal, ele e minha madrinha iam me ver e levavam presentes para mim e para meus irmãos – minha mãe teve mais três filhos. Nesses dias, meus padrinhos me levavam para passear e tomar sorvete. Eu rezava para o dia nunca mais acabar.
Mas a gente cresce e muda. Fui conhecendo muita gente na favela e acabei me envolvendo com drogas. Comecei a roubar e até do meu padrinho roubei um aparelho de DVD para trocar por cocaína. Me arrependo muito disso. Amo meu padrinho e minha madrinha mais do que a qualquer pessoa nesse mundo. Eles me acolheram e me acolhem sempre, não importa como eu esteja. E eu lhes roubei. A droga tira o juízo da gente e faz a gente fazer o malfeito. Mas hoje, eu estou aqui, neste grupo. O professor disse que eu podia contar qualquer coisa e eu quis contar isso para vocês. Nos primeiros dias que estive aqui, sofri muito. Me falaram que era síndrome de abstinência. Não sei bem o que é isso, mas há dois dias eu consegui abrir os olhos sem sentir dor de cabeça. Não sei há quanto tempo estou aqui, nem quanto tempo vou ficar, mas eu quero melhorar. Quero me livrar desse vício que me tira o juízo. E eu tenho que confessar que é por causa do meu padrinho que eu quero melhorar. Quero ser um homem bom e amado como ele é. Quero estudar, fazer faculdade e ajudar na favela como ele. Mas por enquanto, sou eu que preciso de ajuda.
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Brasília, 7 de abril de 2010.