Comunicação e Linguagem em Merleau-ponty

Por Robson Stigar | 01/01/2009 | Filosofia

Segundo Merleau Ponty (1908 -1961) no corpo se reconhece uma realidade diferente daquela expressa na ciência. As experiências práticas do corpo superam a dicotomia entre sujeito e objeto. A consciência de termos uma linguagem advem do fato de sermos uma linguagerm em primeiro lugar. Assim, "o sentido das palavras é considerado como dado com os estímulos ou com os traços cerebrais ou psíquicos" (238), deste modo a fala é um ser da razão. A palavra possui no entender de Ponty um sentido corporal e afetivo profundo,variando de acordo com os estados de consciência do individuo.

Existe uma diferença grande em conhecer o mundo reale concreto do corpo e antiga dualidade entre sujeito e objeto. "O mundo é aquilo que nós percebemos. O mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável." Isto significa que "o verdadeiro Cogito não substitui o próprio mundo pela significação mundo".

Para Merleau-Ponty o dualismosubstancial inaugurado por Descartes está na raiz de uma "crise" que se instaurou nas ciências e na filosofia modernas. Entretanto,isso é importante, pois, para o filósofo, a superação dessa crise épensada precisamente nos termos de uma retomada da filosofia clássica, buscando "o descentramento sem alarde" através de "um trabalho corajoso e paciente", desmanchando "tecido da tradição puxando os fios da não-coincidência"

Embora a questão da linguagem esteja presente em todo percurso da obra de Merleau-Ponty, e sua importância destacada em seu último período, privilegiaremos o capítulo da Fenomenologia da percepção dedicado à fala ("O corpo como expressão e fala") e os ensaios: "Sobre a fenomenologia da linguagem" (1960/1984) e "A dúvida de Cézanne" (1948/1984).

Esses textos constituem o limite deste trabalho. Como veremos, na Fenomenologia da percepção, ao rever as tradicionais concepções em filosofia da linguagem, ele assinala um parentesco entre as abordagens empirista e intelectualista: ambas as visões desconsideram o potencial expressivo da palavra e partem de um pressuposto comum, o da exterioridade entre signo e significado. No empirismo, a linguagem é objetivada e o sujeito inexistente.

No intelectualismo, ela é operação essencialmente subjetiva e a posse do sentido é remetida ao sujeito pensante. Em outros termos, nos dois tratamentos dedicados à linguagem, a palavra não tem significação própria. O projeto merleau-pontyano visa, nesse sentido, ultrapassar estas concepções através da atribuição de um sentido à palavra.

Em seu pensamento, o reconhecimento da linguagem como um modo original de sentido é ocasião para a dissolução da dicotomia sujeito-objeto presente nas concepções supracitadas. A linguagem não é tradução ou reprodução do pensamento e, neste sentido, uma potência de caráter secundário. Ao contrário, ela é fonte originária de sentido do próprio pensamento.

Para a compreensão da problemática da linguagem, Merleau-Ponty considera necessário um retorno à sua origem ou recuperação de seu movimento expressivo primário, onde, a uma só vez, ela ultrapassa e limita o sentido esboçado na percepção (limita no sentido de explorar uma direção de sentido em detrimento de outras possíveis). A percepção é o sentido que inaugura a abertura para o mundo, como a projeção de um ser para fora de si; a linguagem prossegue esta abertura de mundo na medida em que retoma, transforma e prolonga as relações de sentido iniciadas na percepção.

Ao postular a distinção entre fala falante e fala falada, Merleau-Ponty remete a primeira à linguagem em estado nascente, como um ato instituinte e criativo. A segunda, por sua vez, é remetida à linguagem sedimentada, constituída por significações correntes e pelas demais formas de expressão de um dado meio sócio-cultural. Como lembra Marilena Chauí (1981), através da sedimentação usamos uma idéia "sem mais pensar em sua origem" (p. 202), ou ainda, é o esquecimento do tempo no processo de significação.

Acrescentaríamos que a língua vive da tensão entre uma e outra. A aproximação entre a fala e a análise do sentido do gesto corporal prefigura a intenção merleau-pontyana de buscar no corpo a origem do sentido da linguagem. Para o autor, o modo de apreensão do sentido da fala do outro é o mesmo que o do gesto corporal: eu os compreendo na medida em que os assumo como podendo fazer parte do meu próprio comportamento.

Sendo assim, uma compreensão da noção de linguagem no pensamento merleau-pontyano requer uma elucidação desse movimento originário através da articulação entre as noções de fala, corpo, percepção e expressão.

A proposta merleau-pontyana de abordar a linguagem em sua origem não configura, de modo algum, um recuo cronológico às etapas primitivas da comunicação. O retorno à origem da linguagem é, na verdade, um recurso metodológico que visa problematizá-la através de uma volta à sua dimensão pré-reflexiva e fundamental. Merleau-Ponty, nesse sentido, lança mão de um dos princípios fundamentais do pensamento fenomenológico, princípio este, que desde os primeiros passos da fenomenologia fora tão solicitado e recomendado por Edmund Husserl, cuja preocupação iminente era a necessidade de um recomeço, em sua terminologia, um retorno às coisas mesmas.

Nesse sentido, Merleau-Ponty quer, sobretudo, recuperar o movimento primordial do ato expressivo, o que corresponderia à língua em estado nascente, no instante em que ela mesma se realiza enquanto expressão. Ele se reporta ao problema da linguagem enquanto língua falada ou vivida, tomando-a sob a perspectiva daqueles que a vivenciam, os sujeitos falantes. Assim, Merleau-Ponty está se referindo ao que é para ele uma das prioridades no estudo do problema lingüístico - o ato da fala - o verdadeiro movimento de expressão.

O retorno ao sentido do fenômeno da fala conduz à crítica de duas abordagens tradicionais, duas concepções que ainda estão presas à dicotomia sujeito-objeto e que foram, a princípio, influenciadas pelo pensamento cartesiano. Trata-se das concepções empirista e idealista - imbuídas dos viéses do objetivismo e do subjetivismo, respectivamente - que em seu intento de explicitar o fenômeno lingüístico não tiveram êxito em mostrar a autêntica dimensão expressiva da linguagem. Por isso, o trabalho merleau-pontyano começa por uma revisão das tradições empirista e idealista. Como resultado desta tarefa crítica, o autor aponta um fator comum às duas abordagens: ambas negam um sentido à palavra.

Trata-se, no caso do empirismo, da inexistência de um sujeito e de um vínculo interno entre o sentido da percepção e a palavra proferida, ou entre o significado da palavra e seu referente. Não vamos nos ater, aqui, à análise do empirismo feita por Merleau-Ponty, que visa, em última instância, criticar a possibilidade de se reduzir o fenômeno da linguagem a um processo mecânico, regido por leis fisiológicas ou psíquicas. No fundo, trata-se de recusar o automatismo das associações entre fatos físicos, fisiológicos e psíquicos, isto é, entre algo exterior que estimula o organismo e provoca reações psíquicas, segundo leis que desconsideram o sujeito e o sentido que aparece como fundante do ato de fala.

Para Merleau-Ponty, o empirismo simplesmente nos corta do contato com o Ser, e seria contraditório com a própria atividade do cientista, que precisa supor uma atividade absolutamente livre (porque não possui outra concepção de mundo) dessas engrenagens em que ele supõe explicar o comportamento do outro, mas não o seu. Por isso Merleau-Ponty se viu às vistas principalmente com o intelectualismo, aqui representado pelo idealismo, que para ele representava o reconhecimento, embora enviezado, do sentido original do fenômeno da consciência, ponto de partida necessário mas insuficiente para a compreensão de sua inserção no mundo, o que o empirismo fazia "jogando a criança juntamente com a água do banho".

Em resumo, para o empirismo a fala é um fenômeno que se processa sem um sujeito falante, aliás, sem qualquer sujeito. O sentido da fala, se existisse, estaria confinado às relações de estímulos definidos pela ciência objetiva. Mas, se no empirismo o sujeito parece ter sido exorcizado, no intelectualismo, ele ressurge totalitário e com poderes ilimitados. O que chama a atenção nessa filosofia é o peso atribuído a interioridade absoluta do eu penso. Passa-se, assim, de uma dinastia da objetividade pura para o reino da pura subjetividade, dois extremos rivais e inconciliáveis que de fato configuram a clássica dicotomia sujeito-objeto.

Ao contrário do que se vê nas abordagens empiristas em que a presença do sujeito foi anulada, na versão intelectualista existe o sujeito pensante, que através da ação consciente dá significado à experiência da realidade. Desse modo, para o intelectualismo, o pensamento tem uma importância fundamental e inabalável, já que a consciência atua como um agente organizador da experiência. Ela própria (a consciência) constitui as categorias do mundo, uma vez que cabe a ela a estruturação do fenômeno perceptivo.

A posse do sentido, nesta concepção, é remetida ao sujeito pensante. O que significa que também para a tradição idealista o sentido não pertence à palavra, é constituído unicamente pela consciência do sujeito, que é, pois, o doador de sentido.

Nesse contexto, nota-se que a palavra não tem significação, pois ela apenas anuncia e representa o sentido do pensamento, mas não possui esse sentido que representa. A significação é constituída pelo pensamento e emprestada à palavra por ocasião da comunicação.

A fala para a concepção intelectualista é produto de uma operação categorial interior ao sujeito e a ela apenas cabe a função de representar o pensamento. Assim, como um invólucro vazio ou a vestimenta do pensamento, é como se a palavra fosse um recipiente oco para conter a significação inerente ao mesmo.

Diz Merleau-Ponty (1945/1994): "há pouco a reprodução da palavra, a revivescência da imagem verbal era o essencial; agora ela é apenas o invólucro da verdadeira denominação e da fala autêntica, que é uma operação interior" (p. 240). A linguagem aqui nos é apresentada como um artifício secundário do qual dispõe o pensamento no ato da comunicação.

Este caráter de consciência absoluta ou puro pensamento, independentes dos materiais em que se realizam (sonoros ou visuais), é exaustivamente contestado por Merleau-Ponty, assim como ele também questiona o estatuto de objetividade contido no ideal empirista. Se no idealismo há uma exacerbação da subjetividade, no empirismo, o sujeito é pobre demais. Passa-se de um extremo ao outro sem desenvolver a eficácia expressiva da linguagem.

É interessante observar que a análise merleau-pontyana nos revela duas tradições contraditórias, porém embasadas em uma mesma concepção de linguagem. Para uma, a fala está condicionada a "leis da mecânica nervosa" ou "leis da associação". Para a outra, a fala depende de uma operação subjetiva doadora de sentido, a "operação categorial". No entanto, ambos os tratamentos concordam que a palavra não tem um sentido que lhe pertence, negligenciando o que na concepção merleau-pontyana é fundamental para a compreensão da noção de linguagem, ou seja, que a palavra tem um sentido próprio.

A familiaridade entre estas teorias não é tão surpreendente, pois elas partem de um pressuposto comum, a admissão da exterioridade entre signo e significado. É pela palavra permanecer afastada da significação, nas duas psicologias, que a crítica converge para um ponto comum. Ele escreve (Merleau-Ponty, 1945/1994):

Na realidade, veremos mais uma vez que há um parentesco entre as psicologias empiristas ou mecanicistas e as psicologias intelectualistas, e não se resolve o problema da linguagem passando da tese à antítese (...). E todavia as duas concepções coincidem em que tanto para uma como para a outra a palavra não tem significação. Isto é evidente na primeira, já que a evocação da palavra não é mediada por nenhum conceito (...) e que assim a palavra não traz seu sentido, não tem potência interior (...). O mesmo acontece quando se duplica a denominação com uma operação categorial (...). Ela é apenas um fenômeno articular, sonoro, ou a consciência desse fenômeno. (pp. 240-241)

Nesse sentido, não se caminha em direção a uma efetiva compreensão do problema da linguagem enquanto permanecermos presos às concepções tradicionais, e a linguagem continuar despida de autonomia e valor expressivo. Não basta supor o acordo na comunidade lingüística entre a palavra e seu significado, porque, ao tomarmos a relação entre os significados das palavras por esse ponto de vista, não estaremos retomando a linguagem em seu fenômeno de origem, uma vez que o acordo já está realizado e nosso objetivo é, mais uma vez, compreender a relação entre palavra e sentido na origem do fenômeno expressivo.

Merleau-Ponty (1945/1994) recorrerá ao gesto para esclarecer a comunicação pela palavra, buscando no corpo não só a compreensão do problema da linguagem, mas também o entendimento de uma questão mais abrangente, a expressão. Segundo ele, há um mesmo modo de apreensão sensível na base da compreensão da fala e do gesto corporal.

Apreende-se o significado da palavra assim como apreende-se o sentido de um gesto: "...eu não percebo a cólera ou a ameaça como um fato psíquico escondido atrás do gesto, leio a cólera no gesto, o gesto não me faz pensar na cólera, ele é a própria cólera" (p. 251). Isto não quer dizer, porém, que Merleau-Ponty simplifique a análise do gesto, reduzindo sua compreensão a um imediatismo da percepção, como se os gestos fossem objetivamente dados na experiência do sujeito.

Ele não está defendendo algum tipo de naturalismo da comunicação: o sentido dos gestos não existe naturalmente. Assim, sua posição em nada se identifica com as correntes naturalistas que, comumente, reduzem o signo artificial ao signo natural, e tomam o comportamento e suas significações culturais, em geral, como inerentes à natureza humana.

No que se refere à linguagem, os naturalistas encerram a explicação do problema na expressão das emoções e tentam reduzir a fala ao que ela teria de natural. Merleau-Ponty, por sua vez, recorre à expressão emocional dos gestos para encontrar aí os primeiros indícios da linguagem como um fenômeno autêntico, mas evitando o risco do reducionismo como ocorre na concepção naturalista, pois tanto a fala como o gesto são fenômenos específicos e contingentes em relação a organização corporal. Ou seja, "aproximando a linguagem das expressões emocionais, não se compromete aquilo que ela tem de específico, se é verdade que já a emoção (...) é contingente em relação aos dispositivos mecânicos contidos em nosso corpo..." (Merleau-Ponty, 1945/1994, p. 256).

Em outros termos, o autor coloca que não haveria um signo natural no homem e, neste sentido, não é possível reduzir suas aquisições à ordem de uma natureza humana. Para ele, de certo modo, é irrelevante a distinção entre o que é natural e o que é construído, uma vez que todas as condutas estão fundamentadas em um ser biológico mas, ao mesmo tempo, não se definem exclusivamente pelas estruturas anatômicas e fisiológicas que habitam.

Com relação a essa questão, o autor observa o fato de que sentimentos agrupados pelo mesmo nome são vivenciados de maneira distinta e até mesmo contrastante por pessoas de culturas diferentes. Nesse sentido, um oriental e um ocidental não experimentam a mesma emoção na mímica da cólera ou do amor. Na cólera, por exemplo, o japonês sorri, enquanto que o ocidental enrubesce e eleva o tom de voz.

Merleau-Ponty (1945/1994) não nega que o ato de comunicação seja contingente, e que exista sempre em face de uma dada situação. De modo que faz sentido não compreendermos a peculiaridade do comportamento de outros animais, assim como também nos auxilia a entender porque é tão difícil compreendermos as formas de vida muito diferentes da nossa. Diz ele: "eu não compreendo a mímica sexual do cão, menos ainda a do besouro ou do louva-deus. Não compreendo nem mesmo a expressão das emoções nos primitivos ou em meios muito diferentes do meu" (p. 251).

A esse respeito, é ilustrativo o exemplo citado pelo autor sobre a percepção do ato sexual pela criança. O sentido desta cena será insólito, ou melhor, obscuro para a criança enquanto ela não encontrar em si mesma, isto é, em seu corpo, a possibilidade de sentido que visa àquela conduta.

Os gestos, portanto, não são oferecidos deliberadamente ao espectador como uma coisa a ser assimilada; eles são retomados por um ato de compreensão, cujo fundamento nos remete à situação em que o sujeitos da comunicação - eu e o outro - estão mutuamente envolvidos em uma relação de troca de intenções e gestos. Em outros termos:

O sentido dos gestos não é dado, mas compreendido, quer dizer, retomado por um ato do espectador. Toda dificuldade é conceber bem esse ato e não confundi-lo com uma operação do conhecimento. Obtém-se a comunicação ou a compreensão dos gestos pela reciprocidade entre minhas intenções e os gestos do outro, entre meus gestos e intenções legíveis na conduta do outro. Tudo se passa como se a intenção do outro habitasse meu corpo ou como se minhas intenções habitassem o seu. (Merleau-Ponty, 1945/1994, p. 251).

 

Tem-se, então, que o corpo visado enquanto fenômeno e não enquanto coisa é portador de uma capacidade singular de apreender o sentido de outra conduta, seja o sentido do gesto ou da fala do outro; e a palavra também é um gesto e uma forma de conduta. Merleau-Ponty diz que eu só consigo compreender a intencionalidade do outro - e sua atitude para comigo - porque através do meu corpo posso torná-la minha.

Assim, encontramos em seu pensamento um lugar especial para o corpo, a ele é atribuído uma potência expressiva que lhe é imanente: o corpo é intencionalidade que se exprime, e que secreta a própria significação. Melhor dizendo, a análise do corpo põe à mostra o vínculo entre expressão e exprimido, cuja indissociabilidade está presente em todas as linguagens, constituindo mesmo a natureza do fenômeno expressivo.

O corpo é a expressão de uma conduta e, ao mesmo tempo, criador de seu sentido a partir de uma intenção que se esboça e reclama a sua complementação. Antes da expressão há apenas uma ausência determinada que o gesto ou a linguagem procura preencher e completar.

A expressão é um fenômeno que não depende do eu penso mas do eu posso, diz Merleau-Ponty (1960/1984). O que há antes da fala é apenas uma intenção significativa, uma necessidade muda, cujo destino é a palavra como seu acabamento. Entre o sentido mudo e as palavras haveria uma lacuna, um certo vazio que busca completar-se na medida em que a intenção de comunicar tende à expressão.

A crítica de Merleau-Ponty às teorias da linguagem e sua tese da recusa de uma exterioridade entre significante e significado visam afastar qualquer hipótese que opere uma cisão entre a fala e o pensamento, quando, na verdade, "eles estão envolvidos um no outro, o sentido está enraizado na fala, e a fala é a existência exterior do sentido" (Merleau-Ponty, 1945/1994, p. 247).

Nas teorias que consideram uma relação exterior entre signo e significado, pressupõe-se significações dadas antes da expressão. Pressupõe-se também um ideal de pensamento anterior à linguagem. Ora, o sujeito falante não atua no sentido de encontrar determinada palavra para uma significação pronta e acabada, promovendo, assim, uma correspondência exata. Não está em seu poder comparar o que quer exprimir com os meios de expressão.

Mas, antes, ele é perseguido por um sentido vago, insistente e sem nome, que se movimenta, persiste até se transformar e se encontrar nos gestos e nas palavras adequadas à sua realização. Por isso Merleau-Ponty compara a expressão da linguagem com a expressão da arte, notadamente, com a pintura, na qual se reconhece mais facilmente que o exprimido não existe antes da expressão (Merleau-Ponty, 1948/1984). Assim, em todas estas modalidades expressivas, a intenção significada é oferecida ao sujeito no ato da comunicação, seu sentido só é traduzível nele mesmo.

Merleau-Ponty diferencia, nesse sentido, uma fala falante de uma fala falada. A primeira celebra o ato instituinte e criativo da linguagem, isto é, aquele momento em que ainda não se sabe exatamente o que vai ser comunicado, mas já existe um querer dizer. A fala falada, por sua vez, constitui a base da comunicação social, porque é o próprio saber sedimentado na linguagem. Instalada no seio de uma cultura, a linguagem instituída é precursora da fala.

Todavia, o fator decisivo no fenômeno expressivo não é este legado da linguagem, mas como ele é assumido para promover novos significados. Na fala falante, a aquisição cultural se mobiliza em benefício da expressão: para exprimir, o sujeito utiliza-se das significações disponíveis em seu meio simbólico, aquelas que foram instituídas a seu tempo pela mesma operação expressiva.

 

Que operação expressiva é esta? É a mesma que encontramos privilegiadamente nos grandes escritores. Neste caso, trata-se de uma espécie de deformação coerente que a obra impõe aos significados existentes , fazendo-o para dizer o que, de certa forma, jamais fora dito antes. Segundo Merleau-Ponty, é precisamente esta operação criadora que representa o estilo do escritor e que imprime na linguagem costumeira uma torção de sentido, debilitando seu equilíbrio para fazê-la dizer e significar o novo. Ou seja, "essa 'deformação coerente' (A. Malraux) das significações disponíveis é precisamente o que as ordena em outro sentido e leva os ouvintes, e também o sujeito falante, a dar um passo decisivo" (Merleau-Ponty, 1960/1984, pp. 135-136).

 

É justamente a ambigüidade da relação expressão-exprimido que define o caráter fundador da linguagem: um significado é originado no signo sem se fixar no significante, há imanência entre sentido e palavra, mas não colagem ou cristalização. Ou seja, o significado emerge da palavra, porém não se reduz a ele, pois encerra uma porção de significações implícitas e de limites imprecisos que vão além de sua troca comum; sentido esse cujo destino não é outro senão ter seu lugar no movimento de expressão, que retoma a si mesma para lançar-se além.

É por isso que a palavra tem o sentido sem, no entanto, contê-lo: o sentido sustenta a palavra por dentro, e vice-versa. O sentido irrompe através da palavra, projetando no silêncio articulador da linguagem o que este queria e sozinho não obtinha, mas sem obturá-lo. Por um lado, porque o silêncio é o fundo sobre o qual se desdobra sempre toda linguagem; ele não é seu contrário, é seu "estofo", o que a uma só vez incita a expressão da palavra e impede o acabamento de toda expressão. É abertura, no sentido heideggeriano do termo.

Neste sentido, a expressão não esgota o mistério do exprimido, que nos remete para o fundo obscuro de nossa presença ao mundo. Por outro lado, a significação sempre ultrapassa o significante. Assim, a fala e os demais sentidos expressivos em sua originalidade nascem do excesso das significações vividas sobre as significações adquiridas.

É pertinente enfatizar que não se tem pensamentos puros, já que desde sua origem há um certo excesso de significação que retoma o significante e o arrasta para novas expressões. A linguagem assume e modifica uma ordem de coisas mais antiga que ela mesma, os sentidos abertos pela percepção, vem visitar este ponto originário de inerência do sujeito ao mundo para desenvolver o que nele se anuncia como questão muda e permanente, e por isso podemos dizer que existe uma operação de sentido comum à linguagem e à percepção. E ao mesmo tempo, a expressão de linguagem modifica e transcende o fenômeno dado na percepção, transcendendo-se a si mesma, uma vez que seu movimento consiste sempre em nos atirar além, nas fronteiras entre o visível e o invisível, sondando as relações entre um mundo e outro.

Bibliografia

Chauí, M. S. (1981). Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo Espinoza, Voltaire, Merleau-Ponty. São Paulo: Brasiliense.     

Merleau-Ponty, M. (1994). Fenomenologia da percepção (Carlos Alberto Ribeiro de Moura, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Texto original publicado em 1945)    

Merleau-Ponty, M. (1984). A dúvida de Cézanne (N. A. Aguilar, Trad.). In M. S. Chauí (Org.), Maurice Merleau-Ponty: textos selecionados (pp. 113-126). São Paulo: Abril Cultural. (Texto original publicado em 1948)