Compreensão dos Direitos do Cidadão no Séc. XIX
Por Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo | 02/11/2014 | FilosofiaSão inúmeros os exemplos que se extraem dos escritos de Silvestre Pinheiro Ferreira no que a Direitos Humanos respeita. Poder-se-ía afirmar que, praticamente, ao longo da sua vasta obra, quase ninguém ficou esquecido, sendo notável a preocupação que ele manifestou não só no que concerne aos direitos que assistem a qualquer cidadão, quando suspeito de prática de alguns crimes como, após a sentença, no acompanhamento que ao preso deve ser dispensado.
E quando foi necessário interceder pelos detidos, junto do monarca, não hesitou em fazê-lo, conforme se conclui da leitura de uma sua carta ao habitual destinatário, ao narrar acontecimentos trágicos, e a recusa de D. João VI em aceitar o seu pedido de demissão de Ministro da Guerra: «...resignei-me na determinação que sua Majestade me manifestava de me não conceder a prometida demissão; mas exigi a promessa de Sua Majestade consentir em que eu começasse por aliviar a sorte dos mencionados presos, permitindo-lhes comunicarem-se com as suas famílias e passados alguns dias insinuar-lhes que poderiam escolher o lugar para onde se houvessem de retirar...» (FERREIRA, 1888:265, Carta Nº 9).
No domínio da autodeterminação dos povos, Pinheiro Ferreira foi, igualmente, um percursor do que mais tarde será adotado por outras potências, bem mais influentes na cena internacional, do que Portugal. Muito embora fiel à monarquia, simbolizada em D. João VI, mas lealmente contrário ao absolutismo, e considerando a hipótese de uma monarquia dual para Portugal e para o Brasil, nunca perdeu de vista os direitos que deveriam assistir aos povos.
Nesse sentido, volta a escrever ao seu amigo, não identificado, afirmando algo de transcendente, para a época e o contexto em que se movimentava: «O Governo Português terá a glória de haver sido o primeiro que proclama e põe em prática para com as demais nações princípios de direito das gentes conformes aos do direito público, que acaba de adoptar e que fazem a base do regime de todos os governos representativos. Não tardará que o nosso exemplo seja seguido pelos Estados Unidos da América Setentrional e mesmo pelo Governo da Grã-Bretanha. Mas não teremos a glória de havermos prevenido sem que por grande antecipação se nos possa exprobar que nos tenham acelerado.» (Ibid:297, Carta Nº 18).
Cometer-se-ia uma grande injustiça, contra Silvestre Pinheiro Ferreira, se não se destacasse aqui a sua elevada estima e mesmo admiração pelo povo brasileiro, em defesa de um direito sagrado, que é o que valoriza a dignidade da pessoa humana. Respeitando a cultura, as tradições e crenças, não se coibiu de denunciar os próprios europeus, obviamente, portugueses incluídos, de atitudes de alegada superioridade que tentavam impor face à hospitalidade e sentimentos nobres dos brasileiros na receção que dispensaram aos estrangeiros e aos portugueses: «Mas a maior parte dos europeus, que pisaram o solo do Brasil, nem eram homens de bons sentimentos, nem de educação; e por isso na oficiosidade, na condescendência, na hospitalidade dos brasileiros não descobriram senão servil respeito e baixeza, que só serviu a inflamar o orgulho da sua imaginada superioridade.» (Ibid:373, Anexos à Carta Nº 18).
Felizmente, decorridos mais de cento e sessenta e coito anos após a sua morte (1846), estuda-se o pensamento político de Pinheiro Ferreira e procura-se aprofundar as suas reflexões, bem como as correlativas atitudes democráticas que, ao longo da vida, assumiu. Sempre se pautando por valores, por princípios, por que não, pelos Direitos Humanos mais essenciais e naturais, com o objetivo de construir um sistema político, assente na monarquia constitucional representativa.
Acredita-se que não se pode atribuir-lhe má consciência, pelo facto de não ter defendido, desde o início, a total independência do Brasil, o que, aparentemente, pode contrariar a tese da autodeterminação dos povos. Na verdade, para Pinheiro Ferreira, a separação do Brasil, relativamente a Portugal, não se colocava como uma necessidade, nem como um benefício para os brasileiros, antes, entendia ele, como mais favorável e tecnicamente viável, uma solução de monarquia dual.
Todavia, mais tarde, concretamente em 1841 escreveu a D. Pedro II sugerindo a divisão do Brasil em cinco reinos. Além disso, Pinheiro Ferreira, nunca deu quaisquer indícios de que pretendesse para o Brasil algo que fosse contra os direitos do povo brasileiro. Bem pelo contrário, o que ele mais temia era, precisamente, a destruição do Brasil, por isso, entendia como solução mais adequada a união dos dois territórios, ou seja: dois territórios, sob a mesma coroa com dois monarcas, mantendo-se D. João VI como imperador, do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
Pinheiro Ferreira, tal como outros ilustres defensores da monarquia, nomeadamente D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Conde de Palmela, utiliza todos os seus conhecimentos técnicos, diplomáticos e políticos para modernizar as instituições monárquicas de forma a melhor servirem os interesses do povo.
O seu esforço é reconhecido nos mais diversos quadrantes político-filosóficos: «Neste sentido a contribuição de Silvestre Pinheiro Ferreira revestiu-se do maior rigor técnico. O estadista português compreendeu que ao lado da definição dos direitos individuais, da fixação dos limites do poder estatal e da estruturação equilibrada dos poderes governamentais, encontrava-se o problema principal: a representação política.» (BARRETO, 1975:474).
A atividade política, democraticamente exercida, é aquela que, por excelência, melhores condições pode criar para alterar situações em, praticamente, todos os domínios da sociedade. Silvestre Pinheiro Ferreira sabia-o perfeitamente, e não ignorava que poderia ter um papel importante, no curso dos acontecimentos da sua época, no espaço luso-brasileiro.
Nesse sentido, não é de admirar vê-lo envolvido em complexas situações e aos mais elevados níveis da governação, por isso, desde bem cedo, se aproximou do Poder, até como simples Conselheiro, junto dos administradores e altas individualidades: «Não eram só os Ministros a se mostrarem adeptos das inovações e reformas. Todo o indivíduo provido de algumas luzes (...) sentia-se na obrigação de dar conselhos. (...) improvisador conselheiro por conta própria tais como Silvestre Pinheiro...» (PRADO, 1968:129, Nota 91).
O período conturbado da primeira metade do séc. XIX não favoreceu a implementação, dinamização e consolidação dos valores, princípios e praxis defendidos por Silvestre Pinheiro Ferreira, consubstanciados na exemplaridade da sua vida e plasmados nos muitos projetos que elaborou, pareceres que emitiu e, só muito mais tarde, após a sua morte, é que cada vez mais estudiosos vêm reconhecendo a sua obra, e dando mérito ao seu trabalho. Especial destaque para investigadores brasileiros e portugueses.
Naturalmente que a obra político-jurídica é fundamental para se aquilatar da sua influência na divulgação e prática dos direitos humanos imprescindíveis, assim como na existência de poderes que se controlam reciprocamente.
Na base do exercício de tais direitos estará um regime político-constitucional democrático, representativo, tão defendido por Pinheiro Ferreira, ao qual o Brasil continua a prestar tributo através dos seus mais destacados investigadores: «... o constitucionalista Silvestre Pinheiro Ferreira que foi ministro de D. João VI em terras brasileiras nos conturbados anos posteriores à Revolução do Porto até à partida da Família Real para Portugal, e que tanta influência teve no desenvolvimento de uma concepção de estado liberal no Brasil e em Portugal, ao interpretar Constant, entende que o poder neutro, que chama de conservador, deve estar distribuído entre os demais poderes e não sobrepostos aos mesmos.» (ESTEVES, 1998:89).
Bibliografia
BARRETO, Vicente, (1975). “Uma Introdução ao Pensamento Político de Silvestre Pinheiro Ferreira” in Revista Brasileira de Filosofia, Vol. XXV, (100), S. Paulo: IBF, Outubro-Novembro, pp. 470-478
ESTEVES, João Luiz Martins, (1998). “Origem do Constitucionalismo Brasileiro”, in Paradigmas, Revista de Filosofia Brasileira. Londrina: CEFL, Vol. II, (1). Dez. 1998, pp. 79-92, apud Jorge Cernev, “Silvestre Pinheiro Ferreira: um teórico liberal da monarquia representativa”, in Convivium, São Paulo, Vol. 29, Nº. 1, Jan./Fev., 1986, p. 31.
FERREIRA, Silvestre Pinheiro (1888) “Cartas Sobre a Revolução do Brasil e Documentos anexos” in Revista do Instituto Histórico e Geográphico Brasileiro, Tomo LI, parte I, Rio de Janeiro/RJ: Typográphica, Lithográfica e Encadernação de Latamente & CIA.
PRADO, J. F. de Almeida., (1968). D. João VI e o Início da Classe Dirigente no Brasil, São Paulo: Companhia Editora Nacional.
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