Competencia e sensibilidade solidária
Por Margareth de Oliveira Kuster | 19/01/2013 | EducaçãoKUSTER, Margareth de Oliveira[1]
Ensaio: ASSMANN, Hugo e SUNG, Jung Mo. Competência e sensibilidade solidária: educar para a esperança. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.p.166-205, 226-267.
Introdução:
Assmann e Sung propõem uma reflexão crítica das conseqüências atuais do pensamento ocidental, cuja matriz é o indivíduo autônomo e altamente competitivo, porém isolado e com poucas relações solidárias e até inimigos entre si, sem preocupações com o todo maior, inclusive com os outros seres do planeta Terra.
Para sustentar esse pressuposto, os autores recorrem a Aristóteles, quando diz:
O homem que é incapaz de ser um membro de uma comunidade, ou que não sente nenhuma necessidade disso porque é auto suficiente, não forma parte de modo algum da cidade estado e consequentemente ou é um Deus ou um bruto (Política, 1253 a).
Citam também Todorov, que ao comentar Aristóteles acrescenta: ”Os animais e os deuses são auto-suficientes. Podemos imaginá-los como estando sozinhos. Quanto ao ser humano, ele é irremediavelmente incompleto e precisa de outros” (p.171).
Utilizam também do referencial psicológico da subjetividade, reconhecendo que a afetividade no homem é algo inseparável do mundo do conhecimento e do desenvolvimento da inteligência, propondo novas abordagens de mudança no pensamento, de forma estrutural, percebendo o homem enquanto ser competitivo e ao mesmo tempo solidário, superando a visão meramente economista reducionista do século passado.
Fogem de posturas ingênuas de propor a solidariedade como único principio organizador da sociedade, e defendem que o discurso meramente econômico e filosófico moderno também não funcionou para melhorar a vida do homem, atendendo somente a demanda de mercado, numa visão mecanicista e corporativa predominante.
Os autores trabalham com a tese de que a felicidade individual e a sobrevivência do planeta Terra requer que o desejo de solidariedade se transforme em necessidade vital personalizada como experiência própria em um numero crescente dos habitantes desse planeta”(p.170). A essência humana é vista não como fundamentada na racionalidade, mas na nossa capacidade de desejarmos uns para os outros uma verdadeira alegria de viver, um amor solidário que se complementa na felicidade do outro, enquanto o outro igual a si próprio.
Resumidamente, podemos colocar as seguinte interrogações que os autores se propõem responder:
a) Por que o ser humano não consegue, no ethos de sua práxis, assumir comportamentos mais solidários, quando parece desejar isso no intimo de seu ser?
b) O que precisamos fazer para conseguirmos desenvolver nossa convivência solidária?
Desenvolvimento:
A epistemologia da solidariedade é defendida pelos autores no desenvolvimento da nossa sociabilidade, enquanto potencial a ser transformado em mais conviviabilidade, começando esta na relação inicial da criança com a mãe, numa vinculação afetuosa e nada competitiva. E, a partir da sensibilidade da mãe ao filho e da completa adaptação desta a ele em suas necessidades e desejos, de forma gratuita e amorosa, é que podemos caminhar numa vinculação que permite ao outro, ao filho, unir percepção do mundo, desejo e ação, e consequentemente crescer e conhecer com outras bases, não competitivas, o mundo ao redor. Conhecer, enquanto experiência desejante de sentido, é muito mais que recolher dados sobre o mundo...é perceber possibilidades de sentido para mim e para outros. Os autores propõem uma mudança na raiz agressiva do conhecimento, enquanto separando o eu e o objeto do conhecimento = o outro, o mundo.
O ser humano é visto, enquanto ser vincular, subjetivo e desejante, condicionado pela cultura, pelo cerebral e psíquico, numa articulação individual e contínua de ser aprendente ao longo de toda a vida.
Edgar Morrin, no ano de 2000, já escreve como problema para o século XXI, a introdução da subjetividade do sujeito na análise da realidade. Assmann aceita a postura de Morrin e acrescenta: "precisamos ter consciência do tipo de desejo que esta em jogo... e verificar se é compatível com o bem estar de toda a humanidade, pois muito já se produziu de nefasto em nome e em prol do avanço e do conhecimento". O caminho proposto é o do reconhecimento do outro enquanto outro, de forma inclusiva, participativa, cooperativa e valorativa. Muda-se o paradigma dominante, pois se na idade média a confiança estava no poder da igreja, no mundo atual a confiança parece se estabelecer em torno do mercado financeiro. As teorias econômicas com estranhos pontos em comum com as teorias teológicas, onde se busca um salvador para todos, num apelo para uma confiança irrestrita no outro = instituição, Deus. Acredita que, se o homem é fruto da cultura, portanto da experiência, pode-se mudar a forma de se desejar e viver a experiência, portanto a cultura. A tríade cérebro enquanto substrato anatômico e físico, a mente enquanto construção subjetiva a partir da interação com o meio, e a cultura enquanto da ordem do social maior, nos mostra que nossa humanidade é construção integrada e não única (imprinting cultural de que nos fala Morrin).
Buscam Reconceituar a Sociedade, pois esta é por demais marcada pela razão moderna que luta contra a ambivalência, que ela mesma se impôs, aumentando a intolerância, a rigidez e a exclusão. A cultura atual, na tentativa de acabar com a ambigüidade inerente a condição humana, faz surgir os medos e as ansiedades pelos diferentes, e então estes são projetados nos que estão à margem da ordem social, os excluídos, daí se querer distancia deles, e mesmo eliminá-los. É preciso olhar e se relacionar com o ser humano de um modo e razão diferentes, levando-se em conta o aspecto transdisciplinar de análise, incluindo os temas do desejo, da epistemologia, da sociologia, da antropologia e outras.
Propõem aprofundamento filosófico de uma sensibilidade solidária radical, tal qual define Levinas.
Fazem crítica ao capitalismo e neoliberalismo vigentes, pois estes trazem consigo mitos fundadores acerca do ser humano nos quais a competição e o individualismo são chaves interpretativas dominantes. E esses são obstáculos ao pensamento solidário. Opõe-se a Hegel, quando este vê o desejo de reconhecimento na dialética senhor e escravo, marcada pela confrontação competitiva, ou “luta de confrontação”(p.176). Para Hegel valor é valer, ou fazer-se valer de imposição confrontativa,
Citam Todorov, trabalhando a questão do desejo de forma diferente como percebeu Hegel. Assmann e Sung aceitam o desejo como forte princípio organizativo social, tal qual concebeu Hegel, porém não como única forma, assim como também não acreditam que os seres humanos passariam a ser naturalmente solidários. O impasse esta aí para ser resolvido.
Citam Adam Smith, “pai fundador da economia burguesa” (p.172), quando este diz: “os homens chegam a dar a sua própria vida para adquirir, após a morte, um renome que não puderam desfrutar em vida” (p.173). Contribui assim com a reflexão admitindo que “existiam paixões que estavam acima do interesse próprio”(p.173), e que o homem não poderia ficar preso ao individualismo burguês e no interesse próprio egoísta, pois há prazeres maiores que o advindo do sucesso econômico. O reconhecimento de algo de valor por outros homens, como fama, reconhecimento, prestigio, pode superar o interesse próprio material particular.
Os autores propõem resgatar a sociabilidade cooperativa como principio articulador da coesão social, onde a solidariedade seja o instrumento para se medir as complexas situações humanas vivenciadas, em detrimento da confrontação, da competitividade, e da lógica mercantil. Não desaparece a competitividade, mas o mundo do outro aparece como mundo co-afirmado. Há espaço de convivência e crescimento possíveis. Solidariedade entendida como o processo de viver do homem levando em conta a reciprocidade, o preocupar-se com o outro, esteja este próximo ou não, sendo este da mesma espécie ou não.
Em relação ao processo educacional, fazem aposta enactante de Varela, que coloca o desejo enquanto busca relacional e não enquanto confrontação. Assim, a educação é entendida como o propósito de “possibilitar habilidades e acessos mínimos para construir mundos de significação e, por outro lado, o de propiciar experiências humanas de capacidade desejante em relação a mundos relacionais desejáveis".
Dificuldades ao conviver solidário: fazem supor que o ser humano se distanciou muito de seus nichos vitais e cooperativos ao longo do tempo, deixando surgir demandas de ordem mais competitivas e confrontativas, ficando aquelas enquanto saudade a ser resgatada. Para isso, faz-se necessária nossa participação ativa, prática, inclusiva, defendendo que: "boa parte de nossa identidade depende da maneira como estabelecemos laços comunicativos e encontramos formas de pertencimento". A identidade se afirma através de relacionamentos com outras pessoas, sendo construção histórica e afetiva de processos conscientes e inconscientes ao longo da vida.
Conclusão:
A primeira conclusão que podemos tirar das reflexões dos autores é que se faz necessária uma mudança estrutural na forma de pensar e viver da cultura ocidental, resgatando valores de base desde o relacionamento mãe e criança, como matriz da possibilidade de relações solidárias e sensíveis com o outro diferente de mim.
A consolidação do capitalismo e as propostas atuais do neoliberalismo, enquanto modelos de um viver social que trouxesse mais felicidade ao homem não se realizou. Os contratos do mercado de trabalho e a forma de inter-relação humana tem trazido inúmeras conseqüências ruins para as subjetividades dos homens nesse momento histórico cultural, e isso desde o renascimento, no século XVI. O modelo de racionalidade que vem predominando na ciência moderna não responde ao ser humano em seus desejos e inquietações mais profundos, daí fazer-se necessário o estabelecimento de um novo paradigma para se repensar as relações sociais entre as pessoas e como o mundo maior, planeta Terra.
Somos todos interdependentes e capazes de criar estilos novos de viver, resgatando a sociabilidade cooperativa e colaborativa, em detrimento à competição do mercado econômico, hoje expandido a todos os tipos de relacionamentos. A ambivalência e a ambigüidade de nosso pensamento humano precisam se associar também a nossa sensibilidade social e ao desejo de reconhecimento recíproco. Cabe ao homem pensante e afetivo resgatar novas possibilidades de ser feliz com os outros, fazendo da felicidade do outro parte de sua felicidade, num projeto de harmonia maior.
Somos ainda carentes de sabedoria ética para o mundo complexo no qual vivemos, o que de certa forma nos pegou de surpresa. A única saída possível é não perdermos a Esperança, pois “quem espera é um ser criador dos objetos de seu desejo”.
[1] Psicóloga clínica e hospitalar, mestre em ética, com pesquisa em bioética. Vitória-Espírito Santo. Brasil. CEP: 29052900. Contato: m.kuster@uol.com.br