Como psicanálise e direito podem se articular frente à separação judicial e a guarda dos filhos.
Por Kamila Pereira Cardoso | 22/03/2012 | DireitoCOMO PSICANÁLISE E DIREITO PODEM SE ARTICULAR FRENTE À SEPARAÇÃO JUDICIAL E A GUARDA DOS FILHOS.[1]
Kamila Pereira Cardoso[2]
SUMÁRIO: Introdução; 1 Freud: narcisismo, amor e separação; 2 Psicanálise e direito; 3 Separação judicial e guarda dos filhos; Conclusão.
RESUMO
O presente artigo busca, ainda que de forma breve, avaliar a situação da criança no que diz respeito à sua condição no processo de separação dos pais a partir de uma análise da relação entre direito e psicanálise.
PALAVRAS-CHAVE:
Psicanálise. Direito. Criança e Adolescente
Introdução
Ainda que não seja recente a união entre direito e psicanálise, é de se notar que seu crescimento se deu de forma recente, bem como sua importância. Desta feita, há de se notar que a psicologia, no que diz respeito ao seu campo dentro do direito, bem como do Poder Judiciário, apresenta cada vez mais força e importância, e sua área de atuação é cada vez maior, surgindo possibilidades de atuar, como por exemplo, na área de família (conciliação, separação, guarda dos filhos etc.).
Assim como é importante a relação entre direito e psicanálise, mais influente esta é também no assunto que diz respeito às questões que envolvem crianças e adolescentes, tais como a separação dos pais, pois estas quase que em sua totalidade vão atingir de alguma forma as relações entre os pais e a criança, bem como podem afetar a vida da criança de alguma forma. Muitas vezes, a criança pode presenciar cenas de agressões verbais ou físicas entres os pais, bem como situações de disputa, o que de algum modo pode influenciar em desvios de comportamento ou desencadear processos de estresse.
Dessa forma, o estudo procura, ainda que de forma sucinta, oferecer uma análise sobre a condição da criança no processo de separação dos pais, bem como sua situação emocional e se esta pode se encontrar em situação de estresse ou desenvolvê-lo em processo, assim como outros problemas de caráter orgânico ou psicológico.
1 Freud: Narcisismo, Amor e Separação
Freud afirma que o ser humano tem orginalmente dois objetos sexuais: “ele próprio e a mulher que ele cuida”[3]. Com isso, torna-se evidente que ele postula a existência de um narcisismo primário, e em ambas existe a vontade de recuperar o narcisismo perdido. Pode-se afirmar que um objeto complementa o outro, já que o narcisismo andará juntamente com os cuidados e proteção (estes atingem também o ego narcisista).
Quando o assunto vira paternidade também se percebe o aspecto narcisista, já que os pais supervalorizam a criança, e a ela atribuem perfeição como maneira de esconder suas próprias falhas. Essa é para Freud uma das doenças narcisistas, pois o sujeito busca alcançar sua completude por meio de um objeto idealizado. Levando em conta que os relacionamentos passionais são modelos de experiências de infância, o sujeito em suas relações amorosas, revive não somente amores e cuidados obtidos na infância, mas também fracasso, dores sentimento de desamparo.
O ser humano é ameaçado pelo sofrimento em três aspectos e Freud[4], ao falar do Mal-estar da civilização, afirma:
O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, (...) do mundo externo (...); e finalmente nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provêm desta última fonte, talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro.
Então se pode entender que o homem assume tal comportamento com uma única finalidade que é ser feliz e assim permanecer. Para tanto são necessárias duas metas a negativa, que busca evitar o sofrimento, e a positiva que busca a obtenção intensa de prazer. O ser humano coloca o amor acima de tudo, visando satisfação em amar e ser amado. A mais transbordante e maior manifestação é o amor sexual. Porém quando se ama é que se está mais indefeso contra o sofrimento e a infelicidade toma conta do ser que perde o seu objeto de desejo.
A separação pode ser considerada uma mutilação ao Ego. É como se o “indivíduo perdesse sua identidade”, como afirma Elen Ferreira[5]. A perda do objeto amado causa ameaça a própria identidade e de alguma maneira significa vivenciar a morte. A separação assume um caráter de tragédia para o ser humano, o que até explica o fato de haverem homicídios e suicídios.
Para o ego sobreviver à separação é necessário construir um novo caminho, mesmo que em alguns momentos as estratégias adotadas causem novamente sofrimento, a idéia é de quebra dos ideais anteriores e construção de novos. É necessário o sofrimento para que se possa dar uma nova interpretação à vida a partir da construção de novos ideais, como afirma Elen Ferreira.[6]
2 Psicanálise e Direito
O sujeito é visto de uma forma pela psicanálise e por outra completamente diferente pelo Direito. As formas de lidar com o mal-estar dos dois são diferentes. Souza[7] em seu texto afirma que o sujeito jurídico é visto como aquele que é provido de razão, de livre arbítrio, onde o mesmo possui consciência de seus atos e pode controlar sua vida e vontades. Este é capaz de perceber e discernir o proibido do não proibido, assumindo as consequências cabíveis a seus atos, e servindo como modelo, já que nem todos os desejos são permitidos.
A harmonia da vida dos homens baseia-se no seu submetimento as leis, que geram limites e restrições a serem obedecidas, porém sobre a causa de um mal-estar. Freud expõe em algumas de suas obras, como “O mal-estar na civilização”, elementos que permitem reflexões sobre a criação destas leis. Escreveu “A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos” em 1906, o que já demonstra a crescente união entre psicanálise e direito.
A finalidade das leis impostas em nossa sociedade é estabelecer normas que cuidem de uma boa e saudável convivência com os outros seres sociais que nos rodeiam. Porém, na maioria das vezes, os sujeitos tornam-se dependentes e submissos às leis, se existe lei é por que também existe desejo.
Aparece então para elucidar fatos e melhorar o caminho, a mediação, podendo até mesmo resultar em novo entendimento de questões judiciais. A mediação passa pelo discurso, e solicita uma intervenção a nível real dos grupos e não ao nível de um “problema social”. Nas questões que rodeiam atualmente como separação, divórcio, guarda compartilhada. O mediador vem com a certeza de que existe o conflito, não o enfatizando como se estivesse numa guerra e sim que cada uma irá deixar algo de si, e que este não é um jogo onde no final a soma resulta em zero.
3 Separação Judicial e Guarda dos Filhos
O desejo é parte da vida, de todo ser humano, e encontros e desencontros ocorrem sempre. Em algum ponto o sujeito encontra aquela pessoa que acredita ser o amado, quem o completa, quem dá sentido a sua vida, e a separação leva a um sofrimento diante de todo o desejo e anseios colocados no relacionamento.
Processos de divórcio, onde existem crianças e adolescentes envolvidos, podem levar a questões que ultrapassam de separação como, por exemplo, a mudança da guarda dos menores, o funcionamento de visitas, busca e apreensão cautelar, guarda de avós, tutela e etc.
Melissa R. Souza[8] diz que muitas vezes a separação traz obstáculos à própria formação da criança, que passa a ser um objeto de disputa dos pais, que por sua vez se esquecem ou não assumem a sua posição de mãe ou pai. Nesse caso se devem buscar alternativas para conduzir a vida após a separação e então é que entra o previamente citado “mediador”, já que ele prepara o terreno, visando resgatar o respeito entre os sujeitos do caso e demonstrar que é fundamental o diálogo.
As visitas determinadas judicialmente, nem sempre são o suficiente para a satisfação da necessidade da criança em relação à construção de seus laços afetivos com seus pais, a esse respeito pode-se destacar as palavras de José Inácio Parente[9]:
A assimetria exagerada de presença psicológica de qualquer um dos genitores traz sempre dificuldades na evolução da afetividade, mormente no que se refere ao sadio e prazeroso desenvolvimento da sexualidade . Uma criança cuidada quase que exclusivamente pela mãe, tem o risco, em sendo menino, de ter da mãe uma imagem de uma mulher que dá as normas, a regra da casa, a lei, função originalmente paterna, e ter do pai, por outro lado, uma lembrança de "pai de fim de semana", quando não de quinzena, um pai que permite tudo, que não define normas nem estabelece limites, pelo fato de nunca estar com os filhos, a não ser em raros dias especiais.
Tudo isto pode trazer dificuldades na constituição do menino, como homem, seja pela deformação de sua visão do papel da mulher decorrente da vivência com a mãe excessivamente presente e normativa , seja pela pouca condição de identificação masculina com o pai, ausente e não normativo.
No caso de ser uma menina, os problemas não seriam menores. De forma naturalmente diferente, a menina pode identificar-se com uma mãe pouco feminina e amorosa, e ligar-se com um pai excessivamente permissivo e idealizado. Ambas as coisas são prejudiciais à constituição da menina como mulher. Estas dificuldades costumam aparecer com maior frequência na adolescência e no momento de encontrar companheiros afetivos reais e possíveis, e não homens impossíveis, sempre ausentes e idealizados, como foi o próprio pai.
Em suma, o convívio íntimo com o pai e com a mãe, de uma maneira complementar e equitativa, é que produz a condição de identificação normal com seu próprio sexo e pode preparar os filhos para uma vida afetiva e sexual feliz no futuro.
Este momento é de bastante estresse para as crianças, pois se sentem sem saída quando se deparam com uma possível escolha entre pai e mãe. Alguns psicanalistas acreditam que o melhor para a criança deve ser aquilo que ela deseja, e assim que ela deixe de assumir o desejo de outro, se encarregando de pensar no que a satisfaz.
É nesse momento que se faz relevante destacar a figura da psicanálise, dentro do contexto da psicologia jurídica, pois esta surge como intuito de interferir de forma que venha a proteger o bem moral, psíquico e social da criança. Destarte, pode-se averiguar que dessa forma a justiça age de forma a priorizar o interesse da criança da melhor forma possível, bem como o seu bem estar. Tendo como uma de suas formas de intervenção, o acompanhamento de visitas, assim, a criança tem a oportunidade da construção de sua história familiar.
Conclusão
Como se pode concluir é de suma importância a relação entre direito e psicanálise, pois esta, ao atuar no processo judiciário, consente uma análise de forma diferenciada dos sujeitos envolvidos e ouvidos, permitindo assim, uma reflexão analítica sobre as questões envolvidas no processo, bem como os pedidos e pontuações a serem feitos.
Assim, deve-se destacar a importância dos pais, professores, bem como de todos aqueles que participam da vida da criança, como forma de amparo para que elas possam passar por esse processo da maneira menos dolorosa possível. Destaca-se assim, a importância da existência do diálogo entre esses atores, de forma que se crie uma boa atmosfera.
Desta forma, a presente pesquisa não teve um caráter finalístico, nem pretendeu esgotar seu objeto de estudo, caso em que procurou analisar a situação da criança enquanto personagem principal no processo de separação judicial entre seus pais, bem como a relevância da relação entre o direito e a psicanálise para a questão, ampliando o conhecimento sistemático acerca do assunto.
REFERÊNCIAS
FERREIRA, Elen de Paula. A separação amorosa: uma abordagem psicanalítica. Psicanálise & Barroco em revista v.8, n.1: 56-97, jul.2010. Disponível em: http://www.psicanaliseebarroco.pro.br/revista/revistas/15/P&Brev15Ferreira.pdf. Acesso em: 12, maio de 2011.
FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização. {online}. Disponível na Internet via http://www.opopssa.info/Livros/freud_o_mal_estar_na_civilizacao.pdf. Arquivo capturado em 04 de maio de 2011.
FREUD, Sigmund. Sobre o Narcisismo: uma introdução (1914). In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
PARENTE, José Inácio. Os filhos na separação dos pais. 2010. Disponível em: http://www.icc-br.org/art/a157.pdf. Acesso em: 12, maio de 2011.
SOUZA, Fabiane Cristina. Psicanálise e Direito: uma possibilidade de encontro. In: Cartas de Psicanálise. Centro de Estudos e Pesquisa em Psicanálise, Vale do Aço. Ano 1. Vol.1, Dezembro de 2004.
SOUZA, Melissa Rodrigues. Escutar o sujeito sob o véu de uma demanda jurídica: imperativo ético nas varas de família; NETO, Simone Maria das Graças. A transformação da família na época em que o outro não existe; SAMPAIO, Adriene Teixeira. A violência subjetiva nos desencontros amorosos; LOURENÇO, Ruth Castelo Branco. Quem sou eu? A constituição da criança no processo de litígio conjugal; SOARES, Cláudia Maria. A criançaobjeto no litígio conjugal; SOARES, Josiane Gomes, “Ela não me ama mais”: a significação fálica do pedido de pensão. In: BARROS, Fernanda Otoni de (org.). Contando “Causo”: psicanálise e direito: a clínica em extensão. Belo Horizonte: Unicentro Newton Paiva: Del Rey, 2001.
[1] Paper elaborado para obtenção de nota na disciplina de Tópicos II
[2] Aluna do 7º período do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco
[3] FREUD, Sigmund. Sobre Narcisismo: uma introdução. 2006.p.37
[4] _____. O Mal-estar na civilização. 1914. p.09
[5] FERREIRA, Elen de Paula. A separação amorosa: uma abordagem psicanalítica. 2010, p.25.
[6] Idem.op cit. p.36.
[7] SOUZA, Fabiane Cristina. Psicanálise e Direito:uma possibilidade de encontro. 2004, p.47
[8] SOUZA, Melissa R. Escutar o sujeito sob o véu de uma demanda jurídica: imperativo ético nas varas de família. 2001, p.35
[9] PARENTE, José Inácio. Os filhos na separação dos pais. 2010,p.3-4.