COMO PERCEBEMOS O MUNDO

Por Ricardo Ernesto Rose | 08/10/2018 | Filosofia

Quem é que não se emociona, ou pelo menos fica admirado com uma bela paisagem natural? O pôr do sol em uma tarde de outono, o céu estrelado à noite ou cheio de nuvens, à beira mar. Montanhas cobertas por florestas em meio à neblina, a imensidão de um deserto, um lago congelado... A natureza, não importa a paisagem, desde que inusitada, atrai nossa atenção e admiração; espanto e arrebatamento. Desperta em nós um misto de emoções influenciadas por nosso condicionamento cultural e lembranças individuais.

Interessante observar como nosso modo de perceber uma paisagem é bastante influenciado pelas experiências que tivemos ao longo de nossa vida. No entanto, este aspecto quase não é mais percebido em nossa civilização do século XXI, na qual a fotografia e o cinema, a TV e a internet tornaram comuns para qualquer pessoa – mesmo para aquela que nunca tenha saído de sua pequena cidade do interior – as paisagens mais distantes e diferentes. Todavia, há relatos sobre nativos africanos, que levados pelos europeus para montanhas, não sabiam num primeiro instante como interpretar a perspectiva inédita através da qual estavam enxergando a paisagem abaixo, que sempre havia habitado. O mesmo ocorre ainda modernamente – apesar da quantidade de informações de que dispomos –, quando alguém embarca em avião pela primeira vez e observa a paisagem de cima.  

Pelo que se sabe até hoje, somos a única espécie de animal que tem esta capacidade de contemplar paisagens ou fenômenos naturais, de lhes dedicar atenção e sentir outras emoções, além do medo. Várias espécies de mamíferos, aves e até répteis temem os clarões dos raios e o ribombar dos trovões, a beira dos precipícios ou a escuridão, por causa de seu instinto de preservação. O animal percebe em seu íntimo que aquela situação está ligada ao perigo.

O sentimento de espanto ou estranheza perante uma paisagem, cena ou fenômeno natural incomum, deve ter contribuído para despertar em nossa espécie os sentimentos que levaram nossos antepassados longínquos a iniciar as primeiras práticas de adoração, de reconhecimento de forças ou entidades mais poderosas. Poderiam ter intuído que por trás de tais paisagens ou fenômenos haveriam entidades, que premeditadamente as criaram ou os provocaram.  

Voltemos agora ao ser humano do século XXI, vivendo e atuando em uma civilização mundial, contando com ininterrupto fluxo de informações e dados sobre os mais diversos assuntos e interesses. Um universo cultural e tecnológico baseado na ciência, cujas origens remontam à Idade Moderna; período a partir do qual se impôs uma visão antropocêntrica do universo e da história.

Foi preciso um demorado desenvolvimento da ciência e cultura, notadamente na física, na psicologia, na biologia e na filosofia – além de uma série de outras disciplinas a elas relacionadas – para que a visão antropocêntrica do universo, da história e do ser humano fosse novamente revista. Avanços em diversas áreas como a física quântica, a neurologia e a epistemologia colocam em discussão, sob diversos aspectos, o antropocentrismo sobre o qual se baseou, para o bem ou para o mal, todo o desenvolvimento cultural da sociedade ocidental desde o século XV. O salto na cultura, que para a maior parte das pessoas ainda é imperceptível, talvez seja equivalente àquele que ocorreu no início do período do Renascimento (século XIV), quando o foco principal da cultura passou do teocentrismo para o antropocentrismo.

Os principais aspectos que colocam em discussão a visão antropocêntrica baseiam-se em alguns pontos que, sem conhecimento aprofundado nas ciências envolvidas, tento resumir da seguinte maneira:

-  O princípio da incerteza da física quântica, enunciado pelo físico Werner Heisenberg (1901-1976) afirma, colocado de maneira bastante simples, que a partir do momento em que tentamos observar uma subpartícula, não conseguiremos mais determinar sua posição ou velocidade. A descoberta não afetou somente a física quântica, e mostra como, a partir de um certo nível – o nível subatômico – nossas certezas desaparecem e os fatos transforma-se em suposições. Baseados nesta teoria alteram-se nossas visões do mundo e dos fenômenos. Isto quer dizer que na escala humana os fatos e fenômenos são o que parecem ser, mas em escala quântica são possibilidades. As implicações filosóficas são evidentes e não podem passar despercebidas;

- Ainda com relação às ciências, é atualmente bastante consistente a visão de que as teorias científicas não são explicações da natureza e dos fenômenos. São muito mais maneiras de interpretar ambos, natureza e fenômenos particulares, baseadas em determinadas informações e experiências disponíveis num determinado momento histórico. A lei da gravitação universal de Isaac Newton (1643-1727), explicou e ainda explica determinados fenômenos em certo nível e ainda se aplica muito bem às situações comuns, seja na engenharia ou na física básica. Já para a astronáutica, astronomia, a cosmologia e até as modernas aplicações tecnológicas, a lei da gravitação é suplantada pela teoria da relatividade geral, de Albert Einstein (1879-1955). Esta teoria física atende a todas as necessidades da ciência atual, mas não permanecerá para sempre. O físico e filósofo da ciência Thomas Kuhn (1922-1996) escreveu em seu A estrutura das revoluções científicas que a ciência tem “paradigmas”; teorias que explicam determinados fatos em determinadas épocas e que são substituídas por outros paradigmas em períodos sequentes;

- A psicologia, que como ciência independente da filosofia teve início na segunda metade do século XIX, alcançou grande desenvolvimento com as teorias de Freud – ao estabelecer o conceito de inconsciente – e demais psicólogos que a partir do século XX conduziram pesquisas de laboratório, descobrindo diversos aspectos do funcionamento da mente. A partir dos anos 1980, juntou-se a este esforço a neurologia, ramo da medicina que estuda o cérebro e o sistema nervoso, e que vem dando importantíssimas contribuições ao conhecimento deste órgão. Estas pesquisas revolucionaram a visão atual sobre o que é a mente e como funciona; a interação mente/cérebro; a maneira como percebemos o mundo, etc.;

- A filosofia deixou de ser “a mais importante das ciência” para ser uma ciência entre outras, com determinados objetos de estudo, adotando técnicas específicas. Não deixa de chamar a atenção de que os estudos filosóficos atuais, ainda que se baseando em uma tradição própria milenar, têm na ciência um grande aliado e quase que um parâmetro para muitas de suas conclusões. Tendo o ser humano como sua principal meta de seus estudos, a filosofia moderna abandonou em grande parte os conceitos metafísicos com os quais trabalhava no passado; a transcendência foi substituída pela imanência.

As grandes teorias que dedutivamente tentavam explicar toda a realidade humana e universal estão ultrapassadas. Pelo desenvolvimento da própria filosofia, pela experiência da história e pelos exemplos da ciência, a maior parte dos filósofos atuais entende que não é mais possível desenvolver sistemas que tentem abarcar toda a realidade. Não há mais “verdades eternas” ou “princípios” a serem descobertos ou explicados – e muito menos implantados, como no caso comunismo. A filosofia, assim como a ciência, concluiu que a realidade natural e humana é complexa e que não pode ser abarcada por teorias abrangentes, com pretensão de serem universais.   

Conclui-se, apenas ressaltando estes três ramos do conhecimento atual, de que civilização ocidental; a cultura ocidental que foi gestada no continente europeu e que ao longo da história recebeu influências da África e da Ásia, navega por um amplo mar, do qual não enxerga mais os limites. Chegamos a um ponto no qual já acumulamos muito conhecimento sobre o mundo e sobre nós, o que nos possibilita saber: a) que o que sabemos ainda é muito pouco em relação ao que sabemos que não sabemos; e b) o que sabemos é quase nada em relação ao que nem sabemos que não sabemos.

No entanto, mesmo aquilo que pensamos saber, o que pensamos não saber e o que nem pensamos não saber, é apenas conhecimento humano; produto das elucubrações de uma espécie animal específica, surgida há cerca de 150 mil anos, em um dos bilhões de sistemas solares existentes em uma galáxia de porte médio, dentre as bilhões de outras galáxias existentes no universo; este talvez contemporâneo de bilhões ou trilhões de outros.

No passado acreditávamos que o universo e a vida humana foram explicados pela crença. Mais tarde pensamos que ambos estavam sendo explicados pela ciência. Hoje sabemos que crença e ciência são constructos, elaborações de nossas mentes – das quais pouco conhecemos também – tentando explicar “algo”, o mundo, que nem apreendemos efetivamente. O universo físico e o universo mental; os dois únicos possíveis para nós e nos quais vagamente existimos por um curto período, são muito, mas muito mais complexos do que pensamos.