Como chegamos aqui ou sobre as crises do século XXI
Por NERI P. CARNEIRO | 30/04/2011 | FilosofiaComo chegamos aqui ou sobre as crises do século XXI
O ser humano é completamente diferente dos demais exis-tentes e viventes. Sabemos que a atividade humana se diferencia daquelas realizadas pelos animais. Sabemos que o ser humano possui um sistema de comunicação distinto dos animais e que somente ele é capaz de trabalhar. Sabemos que todo ser vivo interage com o ambiente, mas que somente o homem é capaz de, conscientemente, transformar o ambiente, pois somente o homem é um ser trabalhador. Em razão disso dizemos que é pelo trabalho que o homem produz cultura e, esta sim, é um dos principais elementos diferenciadores do homem em relação aos demais viventes.
Mas esse ser, trabalhador e produtor de cultura, produziu um mundo tremendamente complexo que está fugindo ao controle.
Tendo isso presente, podemos nos perguntar, como nasceu o mundo atual? Como a humanidade chegou onde está?
O mundo atual, do ponto de vista da história tradicional é chamado de Idade Contemporânea, posterior à Idade Moderna que sucedeu a Idade Média. Mas isso não caracteriza nem explica as origens do mundo atual. Hoje se fala em Modernidade ou Posmodernidade, mas esses são apenas nomes alternativos aos tradicionais e também não explicam nosso mundo.
Se quisermos entender nosso mundo, ou como chegamos a este estágio, precisamos ter presente que o mundo atual resulta de transformações culturais, que acompanham o ser humano desde sua origem. Transformações que se acentuaram a partir do Renascimento. Os dramas atuais, portanto, nascem no Renascimento.
O que foi o Renascimento? Um momento em que a huma-nidade "passou a limpo" os valores norteadores das rela-ções sociais originários da Idade Média e colocou as bases para as revoluções que se sucederam: na política, na eco-nomia e na tecnologia. Assim podemos dizer que o Renas-cimento foi o ponto final do mundo antigo e começo do mundo atual. A superação dos problemas antigos se deu pela inauguração de novos problemas.
Com o Renascimento não mais Deus e a fé, mas o homem e a razão foram colocados no centro das referências: a razão científica se impunha sobre a irracionalidade da fé.
Esse panorama se desenhava porque além de novas mentalidades, uma nova classe social estava nascendo: a burguesia. A burguesia se apropriou do Racionalismo (Descartes), e produziu o Iluminismo no mundo francês (Voltaire, Rousseau, Montesquieu, Diderot e d´Alembert) e o Empirismo no mundo inglês (Francis Bacon, Thomas Hobbes, John Locke, George Berkley e David Hume). Com isso colocou em cheque as relações políticas medievais, onde mandava a nobreza e se candidatou para assumir o poder, para gerir o mundo. Essa nova perspectiva política foi possível principalmente a partir dos escritos de Maquiavel, Thomas Hobbes, John Locke. Esses (e vários outros) pensadores, colocaram as bases para Revolução Industrial e a Revolução Francesa. As transformações filosóficas eram sustentáculo para as transformações tecnológicas.
A filosofia estava recolocando as bases da política (Revo-lução Francesa) e da tecnologia (Revolução Industrial) para o surgimento de um novo mundo. Mas a burguesia ainda precisava de novas bases para a economia. Ela apareceu dos escritos de Locke e de Adam Smith. Recebeu a denominação de Liberalismo. O caminho para o Capitalismo estava aberto. Podemos dizer que foram os interesses do capitalismo que alavancaram os avanços e problemas que se sucederam ao longo dos séculos seguintes, até os dias atuais.
As novas perspectivas filosóficas (iluminismo, empirismo e liberalismo) produziram não só alterações da filosofia, como recolocaram as bases da sociedade. O mundo feudal ruiu definitivamente cedendo espaço para o Capitalismo. As bases sociais mudaram e as alterações nas relações sociais estavam se impondo. Nasceram cidades e, ligadas a elas, desenvolvia-se o rolo compressor do processo de industrialização. Ao lado da face comercial do capitalismo apareceu a face industrial. Os burgueses aumentaram sua expectativa de lucro explorando o trabalho de uma multi-dão crescente de trabalhadores movidos pela fome.
Juntamente a todas essas alterações filosóficas, as rela-ções sociais mudaram. Os problemas medievais nem de longe se assemelhavam aos novos problemas que nasciam com o mundo moderno. No contexto renascentista os conflitos sociais se davam entre Nobreza e Burguesia, mas restringiam-se à permissão ou não de comercializar. Com o advento do novo mundo, em transição, o conflito seria entre Burguesia e Proletariado. Nobreza e burguesia conflituavam disputando o poder; com o proletariado o conflito se dava porque a burguesia queria ganhar mais explorando o trabalho dos proletários. Esse panorama era propício não só para a teorização do socialismo (socialis-mo utópico (Morus, Hegel) como para sua organização operacional. Era necessário não só pensar o mundo, mas transofrmá-lo, como proporia Marx. O socialismo passa a ser, com Marx e Engels, ferramenta de luta ideológica, política e econômica dos trabalhadores.
Os novos conflitos produziram novos problemas: como explicar as novas relações sociais conflituosas. Do ponto de vista revolucionário, que interessava aos trabalhadores, as ferramentas vinham do marxismo. Mas isso não interessava à burguesia. Essa lançou mão dos trabalhos de Emile Durkhein e Augusto Conte que desenvolveu a filosofia positiva, ou o Positivismo. Assim o conflito social podia ser explicado não só a partir de uma ótica revolucionária (que interessava aos trabalhadores), mas com perspectiva de acomodação dos conflitos, com os pressupostos Positivistas e mais tarde funcionalistas e estruturalistas, que interessava à burguesia. Esse, portanto, passa a ser um dos primeiros problemas teóricos do mundo moderno: o pressuposto para explicar a sociedade; problema que não existia antes, pois toda explicação provinha da religião. Mas tanto Marx como Comte desmontaram as explicações religiosas ou tiraram da religião sua supremacia. Ela passou a ser vista como incompatível com o novo mundo (eram mitos, para Comte; era o ópio, para Marx).
A perspectiva da acomodação social se impôs. A ótica Liberal conseguiu se afinar com o Iluminismo e com o Empirismo. E assim o capitalismo se sobrepôs ao socialis-mo, instalando-se como filosofia hegemônica. Mas isso não eliminou a crise que se instalou, pois as expectativas humanas não estavam satisfeitas, ampliando não só as crises como produzindo os crescentes conflitos sociais: ampliavam-se as conquistas cientifico-tecnológicas, mas também cresciam os contingentes populacionais excluídos desses benefícios; as riquezas se concentravam em poucas mãos, poucas instituições, poucas empresas, ampliando o volume de pobres e marginalizados excluídos de seus benefícios.
A Revolução Francesa, portanto, nada mais foi do que a exacerbação desse fosso social e econômico, ao mesmo tempo que a revolução industrial estava sendo o caminho para as inovações científicas e tecnológicas se concentra-rem em poder da burguesia. Esse panorama apenas se ampliou posteriormente à Revolução Francesa. Por isso podemos dizer que as revoluções do século XVIII (Revolução Francesa, Revolução Industrial e Revolução Econômica ? liberalismo) nada mais foram que a instalação de uma nova fase de crises. Era o fim de uma era e o começo das crises do nosso mundo.
Então podemos nos colocar a indagação: o que é a posmodernidade? Podemos dizer que, mais do que um nome diferente para designarmos os tempos atuais, a posmodernidade representa a instalação e proliferação das grandes crises do mundo atual.
E quais são as crises que invadiram e se instalaram em nosso mundo? Vivemos num mundo ultraconectado, mas nunca vivemos tão isolados: a virtualidade se impondo sobre as relações faz com que economia, ciência, educa-ção... sejam, cada vez mais, dependentes do universo virtual; a produção de tantos avanços e inovações, geran-do conforto, vem produzindo uma indescritível crise existencial: o prazer e o ter se sobrepuseram ao ser: em nosso mundo o homem passou a ser elemento descartável.
A globalização produziu um mundo sem fronteiras com incríveis possibilidades de ir e vir, mas as nações estão perdendo sua autonomia para as empresas multinacionais, as pessoas estão perdendo sua identidade para as moder-nas formas de vigilância que matam a privacidade; o aumento desenfreado da produção informatizado e robotizado aumenta a possibilidade de consumo, mas isso, paradoxalmente vem ampliando os dramas tanto dos trabalhadores como dos consumidores que não têm como adquirir os frutos da produção. Sem contar que a produção mecânica vem extinguindo os empregos formais com o aumento do desemprego. Assim o mundo que produz maravilhas, limita o acesso às maravilhas produzidas.
Em todo o mundo ampliam-se as crises políticas, não só pela disputa de poder, mas pela corrupção que se instala na busca desse poder. As crises se acentuam na mesma proporção que cresce o esvaziamento ético e a inversão de valores ao ponto de tragédias e dramas sociais terem se tornado um negócio. Nunca as ONGs e seus derivados tiveram tanto espaço de crescimento e lucratividade. A solidariedade se tornou um negócio tremendamente lucra-tivo para o qual o que menos importa são as pessoas atin-gidas pelas tragédias e catástrofes.
A posmodernidade colocou a humanidade numa encruzi-lhada. Ao mesmo tempo que aumentam as possibilidades de bem estar e desenvolvimento, também cresce a crise de valores: a família é invadida pelo drama do desemprego e da droga; as nações perdem sua autonomia para as empresas que se assustam com o crescimento do terrorismo; os serviços sociais de saúde, segurança e educação... são sucateados abrindo espaço para sua comercialização; a necessidade de fontes energéticas coloca em risco o meio ambiente; as melhores condições e qualidade de vida, ampliam a produção e os dramas do lixo; se por um lado cresce a consciência ecológico-ambiental, por outro crescem as necessidades de exploração das potencialidades naturais...
O grande drama posmoderno não é mais aquele do inicio, em que se contrapunham os interesses proletários e burgueses, mas manter o crescimento e o desenvolvimento sem agredir ou destruir o meio ambiente. O drama é a coabitação de interesses conflitantes e contraditórios. A encruzilhada do mundo atual não é ideológica, mas práti-ca. E esses problemas macrocósmicos, se juntam aos dramas e problemas locais, considerando que problemas ou soluções locais podem atingir ? melhorando ou piorando ? problemas ou soluções de outras localidades. O que fazemos tem repercussão...
Neri P. Carneiro
Mestre em educação