COMENTÁRIOS ÀS INFRAÇÕES PENAIS EFETIVADAS CONTRA A MULHER
Por João Lopes de Assunção Neto | 13/07/2015 | DireitoCOMENTÁRIOS ÀS INFRAÇÕES PENAIS EFETIVADAS CONTRA A MULHER
Por João Lopes de A. Neto (Advogado)
INTRODUÇÃO
Este trabalho trata de infrações penais (crimes e contravenções penais) executadas com violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher, nos moldes da Lei Maria da Penha e da Lei do Feminicídio. As referidas leis foram instituídas para regulamentar o § 8º do artigo 226 da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
Neste trabalho, serão abordados e analisados detalhadamente os aspectos peculiares da violência doméstica, em especial a violência praticada contra a mulher no ambiente familiar, assim como os homicídios cometidos nos moldes da Lei do Feminicídio (Lei n. 13.104/2015), a fim de discutir e opinar sobre as divergências suscitadas pela doutrina e pela jurisprudência. Examinar-se-ão de forma minuciosa, como merece esta pesquisa, os desdobramentos da matéria, procurando indicar e esclarecer as principais controvérsias inculcadas pelos estudiosos. Inicialmente, será feita breve contextualização legal, doutrinária e jurisprudencial do fenômeno, apontando as diversas opiniões e conceitos formulados pelos autores. Em seguida, serão apresentadas algumas particularidades da figura, analisados os pontos mais polêmicos que envolvem o tema e auferidas opiniões e sugestões quanto às dissensões legais, doutrinárias e jurisprudenciais. E, por fim, destacar quais os deveres das autoridades competentes para investigar, processar e julgar os ilícitos penais levados a efeito com violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher, assim como evidenciar os direitos e deveres das partes envolvidas nas referidas infrações penais.
Portanto, serão analisadas as infrações penais perpetradas com violência doméstica, em especial, aquelas desenvolvidas na ambiência familiar contra a mulher, previstas na Lei Maria da Penha (LMP) e na Lei do Feminicídio. Isso porque, no Código Penal Brasileiro (CPB) há previsão do crime de violência doméstica; a Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) apresenta a violência doméstica e familiar contra a mulher, ora como qualificadora, ora como agravante das infrações penais e ora como causa de aumento de pena, assumindo conceitos parecidos, porém, diversos; e a Lei do feminicídio qualifica o crime de homicídio, gera três causas de aumento de pena e insere o delito no rol dos crimes hediondos.
Os objetivos da pesquisa são apresentar os conceitos do instituto desenvolvidos pela lei e pelos doutrinadores; atestar a constitucionalidade da Lei n. 11.340/2006, demonstrada na ADI n. 4424/DF e ADC n. 19; mostrar quem pode ser o sujeito ativo e passivo nas infrações penais ora em estudo; apresentar as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher; esquadrinhar as normas modificadas pelas novas Leis; estudar detalhadamente a figura do feminicídio; analisar as relações do tema com os institutos despenalizadores da Lei n. 9.099/95; pormenorizar os procedimentos policiais e judiciais nos casos que envolvem o assunto; discutir as medidas protetivas de urgência; comparar as imunidades penais (art. 181, 182 e 183 do CPB) com a LMP; e evidenciar quais tipos de ação penal podem ser intentados, nos casos que envolvem a espécie.
Para realizar esta exposição, além da revisão bibliográfica, baseou-se no levantamento de casos do dia a dia. Selecionaram-se as questões norteadoras mais polêmicas e controversas e sobre elas o autor se debruçou para estudá-las, analisá-las e auferir opiniões e sugestões em relação aos desdobramentos das contravenções penais e crimes cometidos contra a mulher no âmbito doméstico e familiar.
Cumpre demonstrar que o assunto tem gerado grande problemática e embaraços aos operadores do Direito Penal e Processual Penal, visto que a jurisprudência dos tribunais brasileiros vem se comportando de maneira divergente em suas decisões, no que diz respeito à violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como há muita dissensão nos preceitos pregados pelos doutrinadores. Em razão disso, é evidente e notória a carência, no ordenamento jurídico brasileiro, de uniformização de jurisprudências dos tribunais pátrios em alguns pontos do tema, pois são bastantes as demandas nesse sentido. Não obstante haver norma constitucional e infraconstitucional que disciplinam a matéria, ainda há muitas controvérsias jurisprudenciais e doutrinárias, e até mesmo confronto de normas, o que será demonstrado mais adiante, no desenvolvimento da presente pesquisa.
1. CONCEITO
A Lei n. 10.886/2004 inseriu uma qualificadora com o rótulo de “violência doméstica”, no crime de lesão corporal, previsto no Código Penal brasileiro (CPB). Essa qualificadora está contida no artigo 129, § 9º, do Código Penal, e sua definição para violência doméstica consiste em lesão corporal praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade. A referida lei (10.886/2004), além de qualificar o crime de lesão corporal por meio do acréscimo do § 9º ao art. 129 do CPB, acresceu a este o § 10, instituindo uma causa de aumento de pena, para os crimes de lesão corporal de natureza grave e de lesão corporal seguida de morte (§§ 1º, 2º e 3º).
A Lei n. 11.340/2006 – Lei Maria da Penha (LMP), por sua vez, alterou o § 9º do art. 129 do CPB, elevando a pena de três meses a um ano de detenção para três meses a três anos de detenção. A LMP ainda acresceu ao art. 129 do CPB, o § 11, adicionando mais um caso de aumento de pena, além de criar um conceito para “violência doméstica e familiar contra a mulher”, nos seguintes termos: qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família ou em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Desse conceito, depreende-se claramente que o crime de feminicídio previsto na Lei n. 13.104/2015 foi abrangido pela definição de “violência doméstica e familiar contra a mulher”.
Para Saffioti[1], a violência doméstica, aquela ocorrida no âmbito doméstico, apresenta características específicas. Uma das mais relevantes é a sua rotinização, ou seja, ela incide sobre as mesmas vítimas, tornando-se rotineira: os agressores são geralmente maridos, companheiros ou ex-maridos e ex-companheiros das vítimas; as agressões sofridas não são conhecidas até transcorrer um longo período de tempo; as vítimas possuem autoestima baixa e podem apresentar vários problemas de saúde, na maioria dos casos, as mulheres são chantageadas e/ou ameaçadas, sentindo-se incapazes de reagir; as vítimas vivem em estado de pânico e temor. Com efeito, a severidade do comportamento do gênero masculino é ressaltada por sua rigidez e pela incapacidade gerada na mulher que vive a situação de violência doméstica e familiar.
Ainda sobre a violência doméstica, tema ora estudado, Marie-France Hirigoyen[2], ao conceituar esta forma de violência, diz que ela ocorre quando uma pessoa adota uma série de atitudes e de expressões que visa a aviltar ou negar a maneira de ser de uma outra pessoa. Seus termos e seus gestos têm por finalidade desestabilizar ou ferir o outro [...] Na violência psicológica, ao contrário, não se trata de um desvio ocasional, mas de uma maneira de ser dentro da relação: negar o outro e considerá-lo como um objeto. Esses procedimentos destinam-se a obter a submissão do outro, a controlá-lo e a manter o poder.
Por todo o exposto, podemos afirmar que a violência doméstica e familiar contra a mulher é qualquer espécie de agressão (ação ou omissão), baseada no gênero, dirigida contra mulher num ambiente doméstico, familiar ou de intimidade, que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.
2. DA CONSTITUCIONALIDADE DA LEI N. 11.340/2006
Com a promulgação da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), surgiram inúmeras críticas e questionamentos relativos à constitucionalidade ou não da referida norma. Tais questionamentos giravam principalmente em torno da violação ao princípio da igualdade (art. 5º, I), suposta violação da competência dos juizados especiais (art. 98, I), afronta ao artigo 3º, IV, art. 5º, II e XLVI, todos da Constituição Federal, entre outros.
Depois de cinco anos da vigência do diploma legal em discussão, o Presidente da República, visando resguardar a ordem jurídica nacional da incerteza que pairava em torno do tema, ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de Constitucionalidade (ADC n. 19), tendo por objetivo a declaração da constitucionalidade dos artigos 1°, 33 e 41 da Lei Maria da Penha.
Anteriormente, também já havia sido ajuizada pelo Procurador-Geral da República (PGR) a ADI n. 4424/DF, pedindo interpretação conforme a Constituição, dos artigos 12, inciso I, 16 e 41 Lei Maria da Penha. Como consequência dessa interpretação conforme, o PGR postulou ao STF para declarar a inaplicabilidade da Lei n. 9.099/95 aos crimes versados na Lei Maria da Penha, assentar que o crime de lesão corporal leve ou culposa perpetrado contra a mulher em ambiente doméstico é processado mediante ação penal pública incondicionada e restringir a aplicação dos artigos 12, inciso I, e 16 da norma em comento às ações penais cujos crimes estejam previstos em leis diversas da Lei n. 9.099/95.
As duas ações (ADC n. 19 e ADI n. 4424/DF) foram julgadas pela Suprema Corte na mesma data (09/02/2012), tendo ambas como Relator o Ministro Marco Aurélio. Na ADC n. 19, depois de vistos, relatados e discutidos os autos, acordaram os Ministros do Supremo Tribunal Federal em julgar procedente a ação para declarar a constitucionalidade dos artigos 1º, 33 e 41 da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), nos termos do voto do relator e por unanimidade, em sessão presidida pelo Ministro Cezar Peluso.
Na decisão da ADI n. 4424/DF, os Ministros do STF acordaram (por maioria de votos) em julgar procedente a ação, dando interpretação conforme aos artigos 12, inciso I, 16 e 41, todos da Lei n. 11.340/2006, nos termos do voto do relator, em sessão presidida pelo Ministro Cezar Peluso. Com isso ficou assentada a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão corporal, pouco importando a natureza desta (leve, grave ou culposa), executada contra a mulher no ambiente doméstico, e afastada a aplicação da Lei n. 9.099/95 aos crimes perpetrados nos termos da Lei Maria da Penha.
Vale aqui esclarecer que a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4424/DF teve como alvos os artigos 12, inciso I, 16 e 41 da Lei Maria da Penha, contudo, na petição inicial não foi postulada a declaração de inconstitucionalidade, mas tão somente uma “interpretação conforme a Constituição”, dos aludidos artigos.
Por conseguinte, o ideal é que se faça a leitura da ação impetrada pelo PGR, de modo que não haja interpretação equivocada na decisão da ADI n. 4424/DF. As normas questionadas não foram declaradas inconstitucionais, até porque não foi esse o pedido da ação. Apenas foi realizada uma interpretação conforme, decidindo os Ministros do STF, em sua maioria, que os artigos 12, inciso I, 16 e 41 da Lei n. 11.340/06 continuam em vigor, exigindo a representação para os crimes que estabeleçam tal formalidade, desde que tal previsão não esteja na Lei n. 9.099/95, mas em qualquer outra lei; que não se aplica a Lei dos Juizados Especiais Criminais, em hipótese alguma, aos crimes em situação de violência doméstica e familiar contra a mulher; e que os crimes de lesão corporal leve ou culposa, abrangidos pela Lei Maria da Penha, são de ação penal pública incondicionada.
3. DOS SUJEITOS ATIVO E PASSIVO
Nos moldes Lei Maria da Penha, a violência doméstica e familiar contra a mulher consiste em qualquer ação ou omissão, baseada no gênero, que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família ou em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agente conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Do conceito acima exposto, pode-se concluir que o sujeito ativo desse tipo de violência pode ser qualquer pessoa, desde que esteja coligado à vítima por relações domésticas, vínculo familiar ou em qualquer relação íntima de afeto. Quando o parágrafo único do artigo 5º da lei ora em análise preceitua que “as relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual”, ou seja, quando se fala em violência doméstica e familiar contra a mulher, o foco principal de tudo isso é o sujeito passivo (a mulher), sendo que independe de o sujeito ativo da violência ser homem ou mulher. Logo, é possível haver a violência doméstica e familiar contra a mulher nos casos de agressão de filho contra mãe, de neto contra avó, de filha contra mãe (e vice-versa), de travesti contra mulher, empregador ou empregadora que agride empregada doméstica, de marido contra esposa, de companheiro contra companheira etc.
O posicionamento acima defendido, ao qual este trabalho se apoia, é a corrente doutrinária majoritária, no entanto, há quem advogue que, nos crimes de gênero qualificados ou agravados nos moldes da Lei 11.340/2006, somente a mulher pode ser sujeito passivo e somente o homem pode ser sujeito ativo, desde que entre eles exista uma relação de afetividade, independentemente de qualquer preferência sexual dos sujeitos.
Muito embora a segunda corrente exponha fundamentos sólidos, a primeira posição parece ser a melhor interpretação, porque qualquer pessoa pode ser sujeito ativo da violência, bastando estar vinculada a uma mulher por relação afetiva, familiar ou doméstica.
Vale esclarecer que a mulher que tiver orientação sexual diversa da tradicional não perderá a proteção legal, bem como o homem não poderá invocar sua opção sexual para tentar se isentar dos preceitos legais.
Assim sendo, a interpretação teleológico-sistemática, consideravelmente mais eficaz do que os outros métodos interpretativos, torna legítima a conclusão, segundo a qual, qualquer pessoa (homem ou mulher) poderá ser sujeito ativo ou agente dos atos de violência doméstica e familiar contra a mulher, desde que tenha com a vítima (imprescindivelmente mulher) um vínculo baseado na ambiência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto, independentemente de orientação sexual, seja do agente agressor seja da ofendida, consoante definição dada pelo artigo 5° da própria Lei Maria da Penha.
Quanto ao sujeito passivo da violência doméstica e familiar contra a mulher, deve-se enfatizar nesse ponto a questão de gênero, pois o legislador deu prioridade à criação de “mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher” (grifo nosso). Desse modo, o sujeito passivo desse tipo de violência poderá ser somente a mulher que tenha sido vítima de violência física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral, no convívio familiar ou doméstico ou de relação afetiva.
Todavia, incumbe esclarecer o ponto que diz respeito à concessão das medidas protetivas de urgência ao ofendido do sexo masculino (313, III, do CPP), uma vez que essas medidas são perfeitamente aplicáveis ao homem, desde que este seja vulnerável (criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência).
O artigo 313, III, do Código de Processo Penal estabelece que, preenchidos os requisitos, será admitida a decretação da prisão preventiva se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência (grifo nosso).
Dessa maneira, em regra, as medidas de proteção previstas na Lei Maria da Penha, não se aplicam para proteger o homem vítima de violência doméstica, (pois pressupõe violência de gênero), mas é possível aplicar as medidas protetivas de apoio para proteger homens vulneráveis (criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência).
4. DAS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER
A Lei n. 11.340/2006 elenca, em seu artigo 7º e incisos, o rol exemplificativo das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, quais sejam, a violência física, a violência psicológica, a violência sexual, a violência patrimonial e a violência moral. O rol é exemplificativo, uma vez que o próprio artigo 7º da lei em comento expressamente evidencia isso quando menciona “são formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras...(grifo nosso).
Vale ressaltar que nem todas essas formas de violência doméstica e familiar contra a mulher recaem em infrações penais. Isso porque as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, acima mencionadas, abrangem desde o fato atípico até o homicídio. Poderá haver a violência doméstica e familiar contra a mulher e não haver infração penal, isto é, existe a violência doméstica e familiar contra a mulher, porém, o fato não constitui crime, o fato é atípico. Exemplo disso é a hipótese de o marido cometer adultério. Haverá violência psicológica contra sua esposa, porém o adultério não constitui crime nem contravenção, é fato atípico; por outro lado, poderá haver a violência doméstica e familiar contra a mulher e o fato não constituir crime, mas apenas uma contravenção penal. É o caso das vias de fato, contravenção penal, prevista no artigo 21 da Lei de Contravenções Penais (LCP); E por fim, haverá os casos em que a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui crime, que é o que ocorre na esmagadora maioria dos casos.
Nesse sentido, posicionou-se o professor Rogério Sanches[3], ao afirmar que, quando se fala em violência doméstica e familiar, quer dizer gênero. Portanto, poderá haver crime como espécie de violência doméstica e familiar, contravenção penal e até mesmo fato atípico também como espécies de violência doméstica. O adultério do marido é um exemplo de fato atípico que não deixa de ser uma violência doméstica e familiar contra a mulher (violência psicológica, art. 7º, II, Lei n. 11.340/2006).
Dispõe o artigo 7º da LMP que “são formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.”
Cabe aqui discutir a diferença ou semelhança entre “violência doméstica e familiar contra a mulher” e “violência à pessoa”. A legislação penal brasileira faz menção às duas expressões em diversas ocasiões, porém, existe dúvida se as expressões se equivalem ou se devem ser consideradas diferentes ou ainda se a expressão “violência à pessoa” é gênero da qual “violência doméstica e familiar contra a mulher” é espécie. Numa interpretação literal das duas expressões, a última hipótese seria verdadeira, pois quem comete violência à mulher, obviamente comete violência à pessoa, uma vez que a mulher é uma pessoa.
Para resolver esse impasse, apresentaremos alguns conceitos das expressões “violência à pessoa” e “violência doméstica e familiar contra a mulher” e faremos o confronto para chegar a alguma conclusão plausível.
A legislação brasileira não apresenta nenhuma definição para “violência à pessoa”, logo, deveremos buscar esses conceitos na doutrina. Neste trabalho, entende-se por violência à pessoa aquela violência que ofenda a integridade ou a saúde corporal da vítima. Sendo assim, correspondem a este tipo de violência o homicídio, a tentativa de homicídio, a lesão corporal e até mesmo as vias de fato.
Para Bitencourt[4], violência à pessoa “consiste no emprego de força contra o corpo da vítima. Para caracterizá-la é suficiente que ocorra lesão corporal leve ou simples vias de fato. O termo “violência” empregado no texto legal significa a força física, material, a vis corporalis. A violência pode ser produzida pela própria energia corporal do agente, que, no entanto, poderá preferir utilizar outros meios, como fogo, água, energia elétrica (choque), gases etc.”
Posto isto, pode-se dizer que violência à pessoa é o emprego de força física, da qual se originem lesão corporal, vias de fato etc., capaz de dificultar ou paralisar os movimentos da vítima, de modo a impedir a sua defesa. A manifestação mais intensa da violência contra a pessoa é o homicídio, seguido dos outros crimes contra a vida, as lesões corporais e as vias de fato. Considera-se também violência à pessoa (esta chamada de violência imprópria) obrigar a vítima ingerir bebida alcoólica, narcóticos, soníferos ou hipnotizá-la.
A violência doméstica e familiar contra a mulher tem seu conceito definido nos artigos 5º e 7º da LMP. O artigo 5º estabelece que a violência doméstica e familiar contra a mulher é qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família ou em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Com isso, conclui-se que a violência contra a vítima mulher somente será enquadrada na lei específica (Lei Maria da Penha) quando levada a efeito no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família ou em qualquer relação íntima de afeto.
Percebe-se, após esses conceitos, que as duas expressões (violência à pessoa e violência doméstica e familiar contra a mulher) não se ajustam bem, uma vez que, quando agente praticar violência à pessoa, sempre haverá uma infração penal, ao passo que, muitas vezes, haverá violência doméstica e familiar contra a mulher que não constituirá ilícito penal. Pode-se dizer, conforme entendimento doutrinário (embora isso seja estranho) que, mesmo havendo violência doméstica e familiar contra a mulher, poderá não haver violência à pessoa. No caso, por exemplo, de crime de dano contra o patrimônio de vítima mulher, executado no convívio familiar, é uma das modalidades de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 7º, IV, LMP). Porém, tal delito não é classificado como crime perpetrado com violência à pessoa.
Para efeitos práticos, tomaremos como exemplo o artigo 44, I, do CPB, que trata da substituição das penas privativas de liberdade por penas restritivas de direito, cujas disposições estabelecem que “as penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando, aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo” (grifo nosso).
No crime de furto simples, conforme a LMP, há violência doméstica e familiar contra a mulher, a chamada violência patrimonial (art. 7º, IV), desde que levado a cabo nos moldes da referida lei. Nessa hipótese, seria essa violência considerada “violência à pessoa”, para efeito da substituição da pena, nos termos do art. 43 e 44 do CPB? Para quem considera a expressão “violência à pessoa” gênero da espécie “violência doméstica e familiar contra a mulher”, a violência patrimonial (art. 7º, IV), seria perfeitamente enquadrada como violência à pessoa para efeito da substituição da pena (art. 43 e 44, CPB).
Em dissertação sobre o assunto, Maria Berenice Dias[5] admite a substituição da pena em caso de violência doméstica e familiar contra a mulher, quando afirma que “não há mais a possibilidade de o Ministério Público propor transação penal e aplicação imediata de pena restritiva de direito ou multa (Lei n. 9.099/95, art. 76). Claro que tais impedimentos não significam que a condenação levará sempre o agressor para a cadeia. Mesmo que tenha havido a majoração da pena do delito de lesão corporal – de seis meses a um ano para três meses a três anos (o art. 44 deu nova redação ao art. 129, § 9º do CP) –, ainda assim possível é a suspensão condicional da pena (CP, art. 77) e a aplicação de pena restritiva de direitos (CP, art. 43)”.
Dessa forma, concebe-se, numa interpretação teleológica, que a “violência doméstica e familiar contra a mulher”, não está contida na expressão “violência à pessoa”, uma vez que poderá ocorrer a primeira conduta sem que ocorra infração penal. Ao passo que, ocorrendo violência à pessoa, conforme entendimento adotado por esta pesquisa, sempre haverá ilícito penal. Logo, a conduta “violência doméstica e familiar contra a mulher” não é espécie de “violência à pessoa”.
5. DAS NORMAS MODIFICADAS PELA LEI MARIA DA PENHA
A nova lei acrescentou o inciso IV ao artigo 313 do Decreto-Lei n. 3.689, de 03 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal - CPP), alterou a alínea “f” do inciso II do artigo 61 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal Brasileiro – CPB), acresceu ao artigo 129 do CPB os §§ 9º e 11 e também acrescentou o parágrafo único ao artigo 152 da Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal – LEP).
Com o acréscimo do inciso IV feito pela LMP, o artigo 313 do CPP dispôs que, nos termos do seu artigo 312, será admitida a decretação da prisão preventiva se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência. Porém, no ano de 2011, a Lei n.12.403 revogou o inciso IV do mesmo artigo e alterou seu inciso III, cuja redação (atual) ficou a seguinte: nos termos do artigo 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência (grifo nosso).
As medidas protetivas de urgência (art. 22 e 23 da LPM) têm o mesmo caráter da tutela de urgência (art. 300 do CPC/15), razão pela qual para serem concedidas pelo magistrado, a vítima deverá apresentar os pressupostos tradicionais exigidos pela tutela de urgência, quais sejam, o fumus boni iuris e o periculum in mora – fumaça do bom direito e o perigo da demora (binômio imprescindível para a concessão de tais medidas). Se necessário, o juiz, antes de decidir, poderá determinar audiência de justificação, nos termos do art. 300, § 2º, do CPC/15. Ou seja, caso a ofendida, no momento do pedido das medidas de proteção, ainda não tenha provas e/ou testemunhas que justifiquem a concessão do apoio, o juiz poderá determinar uma audiência de justificação (art. 300, § 2º, CPC/15), ocasião em que a vítima apresentará as provas (ou não), e o magistrado concederá ou não as medidas protetivas de urgência.
Deve-se observar que a LMP foi instituída com o intuito principal de proteger máxima e integralmente as mulheres em situação de violência doméstica, sendo que esta proteção abrange, de forma ampla, os bens jurídicos das vítimas, podendo ser citados como exemplos a integridade física, psicológica, sexual, dentre outros. Esta proteção é feita a partir de uma visão integrada dos campos cível e penal, ou seja, o intuito principal da LMP não é punir criminalmente o agressor, mas essencialmente resguardar as mulheres que se encontram em diferentes situações de violência doméstica.
Para Pires[6], trata-se de opção de política criminal extrapenal, isto é, não focada primariamente no endurecimento da intervenção penal, na criminalização de condutas e na imposição de penas mais gravosas, mas, antes de tudo, focada no desenvolvimento da capacidade de enfrentamento da situação de violência por parte da própria mulher vítima e na reeducação e reabilitação do ofensor.
Neste mesmo sentido, Maria Montenegro Pessoa de Mello[7] aponta que a LMP foi muito além das medidas de caráter penal, tendo focado muito mais nos campos preventivo e de proteção à mulher. Pode-se afirmar, então, que se trata mais de uma intervenção social do que penal, em busca de mecanismos alternativos às penas.
Dessa forma, em análise ao artigo 313, III, do CPP que, em sua parte final, menciona que a prisão preventiva do agressor é “para garantir a execução das medidas protetivas de urgência”, percebe-se que essa prisão tem natureza civil. Assim sendo, se torna perfeitamente questionável a constitucionalidade do referido dispositivo. Isso porque, em análise acurada dos artigos 22, 23 e 24 da Lei de Violência Doméstica, que disciplinam as medidas de proteção para as vítimas desse tipo de violência, percebe-se que essas medidas de apoio têm natureza extrapenal, ou seja, têm natureza cível.
Por sua vez, o artigo 313, III, do CPP autoriza a prisão preventiva do agressor para assegurar as medidas protetivas de urgência à vítima vulnerável (mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência). Dessa forma, como as medidas protetivas de urgência não têm caráter penal, a prisão preventiva para assegurá-las também não o teria. Logo, conclui-se que a prisão preventiva para assegurar as medidas de proteção à vítima, seria uma prisão de natureza civil. Seria, portanto, a prisão para assegurar as medidas protetivas à vitima vulnerável, uma prisão civil travestida de prisão preventiva.
Para efeitos didáticos, apresenta-se a definição de prisão civil, na dicção do professor Álvaro Villaça[8], como sendo “[...] ato de constrangimento pessoal, autorizado por lei, mediante segregação celular, do devedor, para forçar o cumprimento de um determinado dever ou de uma determinada obrigação [...]”.
De forma similar, o conceituado jurista Pablo Stolze[9] assevera que a prisão civil trata-se de uma “medida de força, restritiva da liberdade humana, que, sem conotação de castigo, serve como meio coercitivo para forçar o cumprimento de determinada obrigação”.
Ocorre que, no ordenamento jurídico brasileiro, a única possibilidade de prisão civil remanescente, diz respeito à prisão por dívidas de alimentos, diante da nova posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal, que afastou a prisão civil do depositário infiel. No entanto, a prisão civil por dívidas de alimentos, possui amparo constitucional cujas disposições estão descritas no artigo 5º, LXVII; ao passo que a prisão preventiva (prisão civil) para garantir o cumprimento das medidas protetivas de urgência possui previsão legal no art. 313, III, do CPP, mas não tem correspondente na Carta Magna.
Para solucionar a celeuma, o Congresso Nacional promulgou e a Presidência da República sancionou a Lei n. 13.641/2018, que alterou a Lei Maria da Penha e tornou crime a conduta do agente que descumpre medidas protetivas de urgência impostas pelo juiz, matéria que será analisada no capítulo 9º DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA.
A Lei de violência doméstica e familiar contra a mulher alterou a alínea “f” do inciso II do artigo 61 do Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940 (Código Penal Brasileiro – CPB). Com a nova redação o referido dispositivo passou a preceituar que são circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime, se o agente o pratica com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica.
De acordo com a parte final do dispositivo descrito no parágrafo anterior, em qualquer crime, desde que efetivado nos moldes da LMP, incidirá sempre as agravantes, quando da dosimetria da pena, nos termos do artigo 68 do Código Penal. Assim, por exemplo, no crime de furto simples, tipificado no artigo 155 do Código Penal, com pena cominada de um a quatro anos de reclusão, e multa, se levado a efeito na forma do caput, sem nenhuma agravante, será aplicada a pena mínima (um ano de reclusão, e multa); ao passo que se o furto for efetivado nos termos da Lei n. 11.340/2006 (violência patrimonial contra a mulher – art. 7º, IV, da LMP), o juiz deverá aplicar a pena com a agravante prevista no artigo 61, II, “f”, do CPB, ou seja, a pena deverá ser majorada, dentro do parâmetro cominado – um a quatro anos de reclusão, e multa.
A legislação penal não estabelece a quantidade de aumento ou de diminuição das agravantes e atenuantes legais genéricas, deixando-a à discricionariedade do juiz. No entanto, sustenta a doutrina que “a variação dessas circunstâncias não deve ir muito além do limite mínimo das majorantes e minorantes, que é fixado em um sexto. (...) Tampouco pode ultrapassar os limites mínimo e máximo cominados no tipo legal” (Bitencourt)[10].
Devemos acrescentar que a parte final do artigo 61, II, “f”, do CPB, assemelha-se a uma norma penal em branco, que remete a um complemento contido em outra lei. Isto é, para que se opere a agravante prevista nesse dispositivo, a conduta de violência contra a mulher deverá encontrar conceituação ou adequação numa das formas descritas no artigo 7º da Lei n. 11.340/2006, que contém disposições que cuidam não só da violência física, como também da violência psicológica, sexual e patrimonial contra a mulher.
O dispositivo em análise elenca as agravantes, se o agente comete o crime “com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica”.
Abuso de autoridade – refere-se às relações privadas em que haja um vínculo de dependência ou subordinação, com exercício abusivo ou ilegítimo de autoridade no direito privado, como, por exemplo, empregador, tutor, curador, pais etc.; Relações domésticas – são as que existem entre aqueles que participam do quotidiano de uma mesma família: familiares, empregados, amigos, frequentadores habituais etc.; Relações de coabitação – referem-se àqueles que convivem sob o mesmo teto, particularmente sob o aspecto das relações de convivência; Relações de hospitalidade – referem-se à estada de alguém em casa alheia, sem a durabilidade da coabitação, não sendo necessária a intimidade, como, por exemplo, visita para uma refeição, um drinque etc.; Com violência contra a mulher na forma da lei específica – a violência doméstica e familiar contra a mulher (na forma da lei específica) tem previsão nos artigos 5º e 7º da Lei n. 11.340/2006, os quais já foram analisados anteriormente.
Com a nova redação dada pela Lei n. 11.340/2006, o crime do artigo 129, § 9º, do CPB, não se restringiu à lesão corporal somente contra a mulher no convívio doméstico e familiar, mas também se a lesão corporal é contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, conforme transcrição do dispositivo, in verbis:
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano
[...]
§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006).
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006).
Observa-se que o referido parágrafo foi alterado pela Lei n. 11.340, de 2006 (Lei Maria da Penha) a qual aumentou a pena imposta no caso de violência doméstica perpetrada no âmbito das relações familiares. Por ser a família a base da sociedade, conforme preceitua a Constituição, esta possui o dever de proteger as pessoas ali elencadas, proibindo a violência no seio de suas relações e resguardando seus direitos e a sua dignidade.
As disposições da parte final da norma acima descrita exigem, para configurar o crime, que o agente o pratique, prevalecendo-se das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: Relações domésticas são as existentes entre membros da família, entre empregadores e empregados que trabalham em residência etc.; relações de coabitação abrangem pessoas que convivem sob o mesmo teto, e relações de hospitalidade referem-se a visitas por razões de cortesia social ou coabitação de curta duração.
Referente às formas de violência, a LMP não se basta na agressão física ou psíquica. Vai além, estabelecendo que também são espécies de violência de gênero a sexual, a patrimonial, a moral etc. Nesse sentido, um crime de violência doméstica (artigo 129, parágrafo 9º, do Código Penal) levado a efeito contra vítima mulher figura apenas como uma das possibilidades de violência de gênero, como também o são o estupro, o roubo, a injúria, a ameaça, o constrangimento ilegal, o cárcere privado e outros tantos crimes. Dessa forma, pode-se afirmar que a violência doméstica e familiar contra a mulher (violência de gênero) é objetivamente bem mais abrangente que a violência doméstica tratada no artigo 129, § 9º, do CPB, pois aquela enlaça um rol amplo de espécies de violência, como violência psicológica, patrimonial etc. Todavia, em se tratando da subjetividade passiva, o crime de violência doméstica é mais amplo do que o da LMP, já que mesmo o homem pode figurar no polo passivo da conduta.
E, por derradeiro, foi também acrescido pela lei em análise, o parágrafo único ao artigo 152 da Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal – LEP). O novo dispositivo prescreve que o juiz, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, poderá determinar, como uma medida restritiva de direito, o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação.
Além disso, a referida lei, em seu artigo 35, inciso V, dispõe sobre a criação de centros de educação e de reabilitação para os ofensores, reconhecendo, assim, que o trabalho reflexivo que responsabiliza os agentes pode coibir novos casos de violência. Dessa maneira, percebe-se nitidamente que a Lei Maria da Penha não disciplina tão somente instrumentos para reprimir e punir os agressores, mas também e principalmente meios de prevenção, a fim de que a violência não venha acontecer reiteradamente.
Nesse sentido professa a autora Maria Berenice Dias (2007, p.139): “a imposição de medida restritiva de direitos, que leve o agressor a conscientizar-se de que é indevido seu agir, é a melhor maneira de enfrentar a violência doméstica. Só deste modo se poderá dar um basta às diversas formas de violência cometidas contra a mulher de forma tão reiterada e há tanto tempo. Ninguém duvida que a violência doméstica tem causas culturais, decorrentes de uma sociedade que sempre proclamou a superioridade masculina, assegurando ao homem o direito correcional sobre a mulher e os filhos”.
A lei autoriza proporcionar ao condenado cursos e palestras, ou atribuir atividades educativas durante o tempo que ele permanecer na instituição indicada pelo juiz para cumprir a pena e, em caso de pena oriunda de violência familiar contra a mulher, o magistrado poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação. A pena de limitação de fim de semana, por exemplo, consiste na obrigação do agressor de permanecer, aos sábados e domingos, por cinco horas diárias, em casa de albergado ou outro estabelecimento adequado. Este seria o modo para o agressor cumprir sua pena e ainda refletir sobre o seu comportamento e conhecer outras formas de construção da masculinidade, além daquela baseada no uso da força, do domínio e da violência sobre a mulher.
A Lei Maria da Penha não instituiu nenhum tipo penal novo, mas qualificou o crime de lesão corporal, elevando a pena de três meses a um ano de detenção para três meses a três anos de detenção, se o delito for cometido contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade (art. 129, § 9º, CPB).
Pode-se afirmar, então, que a violência doméstica e familiar contra a mulher (nos casos de lesão corporal – art. 129, § 9º, CPB) é uma circunstância qualificadora do crime; nos §§ 10 e 11, é caso de aumento de pena; e assume o papel de circunstância agravante da pena no art. 61, II, “f”. Assim sendo, na situação de crime de lesão corporal, já qualificado pela violência doméstica ou familiar contra a mulher, não poderá incidir a agravante da mesma natureza (violência doméstica ou familiar contra a mulher), prevista no artigo 61, II, “f”, sob pena de recair em bis in idem.
Incumbe aqui esclarecer que a qualificadora inserta no art. 129, § 9º, do Código Penal, não incide nos casos de lesão corporal de natureza grave nem no caso de lesão corporal seguida de morte (§§ 1º, 2º e 3º), eis que a pena para essas duas últimas hipóteses é bem superior à pena cominada para o § 9º. Não incide também no caso de lesão corporal culposa, se restringindo, portanto, aos casos de lesões dolosas leves.
Entretanto, no que respeita ao § 10 do art. 129 (como o próprio dispositivo prevê), haverá incidência nos casos de lesão corporal de natureza grave e lesão corporal seguida de morte (§§ 1º, 2º e 3º), quando presente uma das circunstâncias do § 9º. Todavia, o disposto no § 11 do art. 129, não se aplicará nos casos de lesão corporal de natureza grave nem no caso de lesão corporal seguida de morte (§§ 1º, 2º e 3º), uma vez que a pena para essas duas últimas hipóteses é bem superior à pena cominada para o § 9º. Não incide também no caso de lesão corporal culposa, se restringindo, portanto, aos casos de lesões dolosas leves, majorando-se de um terço a pena, caso esteja presente uma das circunstâncias do § 9º e a vítima for portadora de deficiência, conforme transcrição abaixo:
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano.
Lesão corporal de natureza grave
§ 1º Se resulta:
I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias;
II - perigo de vida;
III - debilidade permanente de membro, sentido ou função;
IV - aceleração de parto:
Pena - reclusão, de um a cinco anos.
§ 2° Se resulta:
I - Incapacidade permanente para o trabalho;
II - enfermidade incurável;
III perda ou inutilização do membro, sentido ou função;
IV - deformidade permanente;
V - aborto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
Lesão corporal seguida de morte
§ 3° Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo:
Pena - reclusão, de quatro a doze anos.
Violência Doméstica (Incluído pela Lei nº 10.886, de 2004).
§ 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006).
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006).
§ 10. Nos casos previstos nos §§ 1º a 3º deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9º deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço). (Incluído pela Lei nº 10.886, de 2004).
§ 11. Na hipótese do § 9º deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência. (Incluído pela Lei nº 11.340, de 2006).
Os dois últimos parágrafos são causas de aumento de pena, previstas na parte especial do Código Penal. Cabe-se aqui verificar se, no caso concreto houver a incidência das duas majorantes, dever-se-ão aplicar as duas ou alternativamente uma das duas causas de aumento de pena? Aqui entra em sena o art. 68, parágrafo único, do CPB, in verbis:
Art. 68 - A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).
Parágrafo único - No concurso de causas de aumento ou de diminuição previstas na parte especial, pode o juiz limitar-se a um só aumento ou a uma só diminuição, prevalecendo, todavia, a causa que mais aumente ou diminua (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).
De acordo com o dispositivo acima, nas hipóteses de concurso de casos de aumento ou de diminuição de pena, previstas na parte especial do Código Penal, o juiz pode limitar-se a um só aumento ou a uma só diminuição, prevalecendo, todavia, a causa que mais aumente ou diminua. Por haver a legislação se utilizado da expressão o juiz pode, será uma faculdade de o magistrado limitar-se (ou não) a um só aumento ou a uma só diminuição da pena, no caso concreto.
6. DO FEMINICÍDIO
Relativamente recente a Lei n. 13.104/2015 inseriu no Código Penal brasileiro, por meio do inciso VI, acrescido ao § 2º do seu art. 121, a figura do Feminicídio. A nova qualificadora penal veio com o nome de feminicídio, cuja prática ocorre quando o homicídio é contra a mulher por razões da condição de sexo feminino.
O próprio dispositivo considera que há razões da condição de sexo feminino quando o crime envolve violência doméstica e familiar contra a mulher, menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A nova lei ainda prevê que o feminicídio é circunstância qualificadora do homicídio e o incluiu no rol dos crimes hediondos (art. 1º da Lei n. 8.072/90), além de gerar três causas de aumento de pena, conforme preceitua os dispositivos modificados (art. 121 do CPB e art. 1º da Lei n. 8.072/90).
Vimos que a nova norma modificou o artigo 121 do Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, gerar três causas de aumento de pena (§ 7º, I, II, III), além de alterar o artigo 1º da Lei n. 8.072/90, para inserir o homicídio qualificado pelo feminicídio no rol dos crimes hediondos.
Nos moldes da nova norma instituída pela Lei n. 13.104/14 (Lei do Feminicídio), a pena para quem matar mulher em razão da condição de sexo feminino pode variar entre 12 e 30 anos de reclusão, podendo ainda ser majorada de um terço até a metade se a vítima estiver na condição de gestante ou nos três primeiros meses subsequentes ao parto. Ou ainda se o crime for cometido contra pessoa menor de 14 ou maior de 60 anos, com deficiência, ou na presença dos pais ou filhos da vítima. Além disso, por se tratar de crime hediondo, tal crime é insuscetível de anistia, graça, indulto ou fiança (art. 5º, XLIII, CRFB c/c o art. 2º, I, da Lei n. 8.072/90).
No que respeita à prisão temporária decretada em razão do cometimento de feminicídio, o prazo será de trinta dias, prorrogável por igual período, em caso de extrema e comprovada necessidade e, referente à sentença condenatória recorrível, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade. A nova lei ainda estabelece que o cumprimento da pena imposta pelo delito em análise, deverá ter início em regime prisional fechado (art. 2º, §§ 1º, 3º e 4º, Lei n. 8.072/90).
Nos casos de condenação pelo crime de feminicídio, tentado ou consumado, mesmo não sendo o apenado reincidente específico em crimes dessa natureza, o juiz somente poderá conceder livramento condicional ao condenado, após o cumprimento de mais de dois terços da pena (art. 83, V, CPB). Vale aqui esclarecer que, na hipótese de homicídio sem a qualificadora do feminicídio, o livramento condicional poderá ser concedido pelo juiz, após o cumprimento de mais de um terço da pena, se o condenado não for reincidente em crime doloso e tiver bons antecedentes (art. 83, I, CPB).
A progressão de regime aos condenados por feminicídio, ocorrerá somente após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena privativa de liberdade, sendo o apenado réu primário, e cumprimento de 3/5 (três quintos), se o preso for reincidente (art. 2º, § 2º, da Lei n. 8.072/90).
Conforme a Lei do femicídio (Lei n. 13.104/2015), tal crime se configura quando o assassínio é praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, ou seja, quando o crime de homicídio for perpetrado envolvendo violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher (art. 121, § 2º, VI). A pena cominada é de doze a trinta anos de reclusão.
Percebe-se que a nova norma do feminicídio nada menciona sobre a propriedade ativa da conduta, dando a entender que qualquer pessoa poderá cometer a referida infração penal, desde que envolva violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Do acima exposto, pode-se concluir que o sujeito ativo do crime de femicídio pode ser qualquer pessoa, desde que o delito seja levado a efeito nos molde da LMP ou com menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Logo, é possível haver o feminicídio nos casos em que o filho comete assassinato contra mãe, o neto contra avó, o travesti contra mulher, filha contra mãe (e vice-versa), o empregador ou a empregadora contra empregada doméstica, o marido contra a esposa, o companheiro contra companheira etc.
O posicionamento acima defendido, ao qual este trabalho se apoia, é a corrente doutrinária majoritária, no entanto, há quem advogue que, nos crimes de gênero qualificados ou agravados nos moldes da Lei 13.104/2015, somente a mulher pode ser sujeito passivo e somente o homem pode ser sujeito ativo, independentemente de qualquer preferência sexual dos sujeitos.
Muito embora a segunda corrente exponha fundamentos sólidos, a primeira posição parece ser a melhor interpretação, porque qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do chamado feminicídio, bastando que o crime envolva violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Assim sendo, a interpretação teleológico-sistemática, consideravelmente mais eficaz do que os outros métodos interpretativos, torna legítima a conclusão, segundo a qual, qualquer pessoa (homem ou mulher) pode ser sujeito ativo do referido ilícito penal (feminicídio), desde que tenha sido praticado nos moldes da LMP ou com menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Observa-se que, para as duas posições doutrinárias, no caso de crime de feminicídio, ainda que a mulher tenha orientação sexual diversa da tradicional não perde a proteção da lei, bem como o homem não pode invocar sua opção sexual para tentar se eximir dos preceitos legais.
Quanto ao sujeito passivo do crime ora em análise (femicídio), deve-se enfatizar nesse ponto a questão de gênero, pois o legislador referiu-se diretamente ao homicídio cometido “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino” (grifo nosso). Desse modo, o sujeito passivo desse tipo de delito poderá ser somente a mulher.
7. DA LEI MARIA DA PENHA X LEI N. 9.099/95
O texto da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), em seu artigo 41 estabelece a inaplicabilidade da Lei dos Juizados Especiais (Lei n. 9.099/95), quando a infração penal for perpetrada com violência doméstica e familiar contra a mulher, sem cogitar a pena prevista. Dispõe o aludido artigo 41 que “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995”.
Primeiramente analisaremos um impasse surgido na interpretação logo no início do artigo 41 da LMP, segundo o qual “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher...” (grifo nosso). A lei menciona “crimes”, dando a entender que outras infrações penais não são abrangidas pelo artigo 41, quais sejam, as contravenções penais. Esse entendimento é a posição da primeira corrente doutrinária (minoritária). Para essa corrente, como a lei menciona “crimes”, não inclui as contravenções penais, sendo, portanto, possível a aplicação das medidas benéficas da Lei n. 9.099/95, em caso de contravenções penais. Todavia para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o termo “crimes”, mencionado no artigo 41 da LMP, deve ser interpretado de maneira teleológica, abrangendo também as contravenções penais. Logo, conforme o STJ, nem mesmo as contravenções penais farão jus aos benefícios trazidos pela Lei n. 9.099/95.
No mesmo sentido, entendeu o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Habeas Corpus n. 106212/MS e decidiu que “o preceito do artigo 41 da Lei n. 11.340/2006 alcança toda e qualquer prática delituosa contra a mulher, até mesmo quando consubstancia contravenção penal, como é a relativa a vias de fato”.
Os impedimentos impostos pelo artigo 41 da lei em comento implica a inviabilidade de aplicação de todos os institutos despenalizadores da Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei n. 9.099/95), ou seja, não se aplica aos casos de crimes ou contravenções penais postos em prática com violência doméstica e familiar contra a mulher o termo circunstanciado de ocorrência (TCO – art. 69), a composição civil dos danos (art. 74), a transação penal (art. 76) e a suspensão condicional do processo (art. 89), além de não haver necessidade de representação da vítima nos crimes de lesão corporal leve e culposa (art. 88).
Assim sendo, vale reiterar que em caso de crimes contra a mulher consumados com violência no seio familiar ou doméstico, não se admite TCO (mas inquérito policial, ou seja, a autoridade policial não poderá lavrar um TCO, devendo instaurar um IPL), não cabe conciliação extintiva de punibilidade, não existe transação penal nem composição civil dos danos, não admite suspensão condicional do processo e, na hipótese de lesão corporal leve ou culposa, dispensa a representação da vítima, sendo, portanto, ação penal pública incondicionada. Ressalte-se, porém, que em caso de crimes que sempre dependeram de representação (independentemente da previsão na Lei n. 9.099/95), continuam dependendo de representação por parte da vítima.
Portanto, referente à lesão corporal leve e lesão corporal culposa, mediante decisão do STF (ADI 4424/DF), terão ação penal pública incondicionada, visto não ser adotada a Lei 9.099/95, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, conforme dispõe o artigo 41 da Lei n. 11.340/06. Entretanto, ao contrário do que é costumeiramente difundido após tal decisão do Supremo, as demais condutas ilegais que se insiram na LMP, continuam a ter o mesmo tratamento, referente à ação penal. Assim (por exemplo), crime como ameaça continua a ser de ação penal pública condicionada à representação da vítima, e crimes como de difamação, calúnia e injúria continuam a ser de ação penal privada.
Por conseguinte, podemos extrair da decisão do STF as seguintes conclusões: 1) a ação penal é pública incondicionada, em caso de crime de lesão corporal (art. 129, CPB), pouco importando a extensão e a modalidade desta (leve, grave ou culposa), perpetrado contra a mulher no ambiente doméstico e familiar; 2) se o crime de violência doméstica tem o homem como vítima, não se aplica a Lei 11.340/06 e, assim, permanece íntegra a exigência do artigo 88 da Lei 9.099/95, ou seja, a ação penal é pública condicionada à representação da vítima; 3) em caso de lesão corporal leve ou culposa consumada contra mulher, se a hipótese não se enquadra na Lei n. 11.340/06 (por exemplo, agressão entre desconhecidos em via pública), mantém-se a exigência do artigo 88 da Lei 9.099/95, isto é, a ação penal é pública condicionada à representação da ofendida; 4) em outros crimes onde se exija representação, não decorrendo tal exigência do texto da Lei n. 9.099/95 (ameaça, divulgação de segredo etc.), a ação penal continua pública condicionada à representação da vítima, ainda que o caso se amolde ao preceituado na Lei Maria da Penha.
Por sua vez, o artigo 17 da lei ora em análise veda “a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa”.
A vontade do dispositivo legal acima transcrito foi deixar evidente que a integridade da vítima mulher não pode ser substituída por valor econômico, vedando (para as infrações penais realizadas com violência doméstica e familiar contra a mulher) a aplicação de penas de prestação pecuniária (art. 45, § 1º, CPB), prestação de cesta básica (art. 45, § 2º, CPB) e pena de pagamento isolado de multa (art. 44, § 2º, primeira parte e art. 49 do CPB).
A pena de cesta básica não tem previsão expressa em nenhuma lei, porém, a jurisprudência a extraiu de uma interpretação extensiva do artigo 45, § 2º, do CPB com redação dada pela Lei n. 9.714/98. Nos dias de hoje, a prestação de cestas básicas constitui uma verdadeira rotina, especialmente nos Juizados Especiais Criminais cuja tradição passou a ser a adoção dessa espécie de pena como modelo.
Com a nova redação dada pela Lei n. 9.714/98, o artigo 45 do CPB esclarece sobre a conversão das penas restritivas de direitos, e possibilita a aplicação de prestação pecuniária consistente no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes, ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importância fixada pelo juiz, desde que não seja inferior a um salário mínimo nem superior a trezentos e sessenta salários mínimos. Esta prestação pode ter conotação de antecipação de indenização civil, já que pode ser deduzida dela no caso de ação cível com coincidência de beneficiário.
O § 2º do artigo 45 do Código Penal Brasileiro (CPB) permite que o juiz substitua a prestação pecuniária, havendo aceitação do beneficiário, por outra de natureza diversa. Por sugestão inserida na Exposição de Motivos da Lei n. 9.714, de 25 de novembro de 1998, o pagamento de cestas básicas passou a constituir modalidade de pena de prestação pecuniária.
8. DOS PROCEDIMENTOS
Os procedimentos policiais e judiciais, em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, serão realizados nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher ou nas varas criminais (onde não houver tais juizados). Em ambas as hipóteses, os juizados ou as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, inclusive para a ação de divórcio, separação, anulação de casamento ou dissolução de união estável, tornando obrigatória a informação às vítimas acerca da possibilidade de os serviços de assistência judiciária ajuizarem as referidas ações (art. 9º, III, 11, V, 14, 14-A e 33 da Lei n. 11.340/2006).
Na ocasião em que a autoridade policial tomar conhecimento do registro da ocorrência da iminência ou da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, deverá ouvir a ofendida e tomar a representação a termo, se apresentada (nos casos que necessite de representação) e remeter, em 48h, expediente apartado ao juiz com o pedido de concessão de medidas protetivas de urgência. Recebido o expediente pelo juiz, este deverá (como medida de precaução) verificar se o ofensor detém registro ou porte de arma de fogo e, em caso positivo, determinar a apreensão imediata da(s) arma(s).
Como a competência dos juizados e das varas criminais é cumulativa, a representação da ofendida (quando houver) e o pedido de concessão das medidas protetivas (quando houver) serão encaminhados para o mesmo juízo. Isso porque, em casos envolvendo esse tipo de violência, o juízo que for dirimir a demanda terá competência civil e criminal, o que faz com que a queixa ou representação prestada pela vítima desencadeie tanto ação cível (pedido de medidas protetivas) como a ação penal (pedido de sanção para o agressor).
Reitere-se que a competência cível dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher ou das varas criminais (onde não houver tais juizados), em casos violência doméstica e familiar contra a mulher, alcança os procedimentos das medidas protetivas de urgência, da ação de divórcio, separação, anulação de casamento ou dissolução de união estável (art. 9º, III, 11, V, 14, 14-A e 33 da Lei n. 11.340/2006).
Muitas vezes, como já foi anteriormente apontado, ocorrerá a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos moldes do art. 7º da LMP, mas a conduta desenvolvida pelo ofensor não constitui crime nem contravenção penal. Nessas hipóteses, mesmo que a conduta não configure ilícito penal, a autoridade policial ao tomar conhecimento da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, deverá proceder às medidas estabelecidas na lei: garantir proteção à vítima, encaminhá-la a atendimento médico, conduzi-la a local seguro ou acompanhá-la para retirar seus pertences. E ainda deverá registrar a ocorrência, tomar a termo a representação da ofendida (se necessário) e, se a esta solicitar alguma medida de apoio, remeter a juízo o expediente.
Após ser registrada a ocorrência de violência doméstica e familiar contra a mulher na Delegacia de Polícia Civil, a autoridade policial (Delegado de Polícia) ouvirá a ofendida e tomará a termo a representação (se apresentada) (art. 12, I, LMP). Será colhido o depoimento do agressor e feita sua identificação criminal (art. 12, VI), serão ouvidas as testemunhas e processada a instauração do inquérito policial a ser encaminhado à Justiça (art. 12, VII). Se for necessário pedido de medidas protetivas de urgência para a vítima, uma cópia do expediente deverá ser remetida a juízo no prazo de 48 horas.
Além disso, a vítima deverá estar sempre acompanhada de advogado, tanto na fase do inquérito policial, quanto na ação judicial, garantido o acesso aos serviços da Defensoria Pública e ao benefício da Assistência Judiciária Gratuita (art. 18). A vítima não poderá entregar intimação ou notificação ao agressor e será pessoalmente informada quando ele for preso ou liberado da prisão, sem prejuízo da intimação de seu procurador.
Em caso de a violência doméstica constituir infração penal e esta for de ação penal pública condicionada à representação, a vítima só poderá desistir da representação antes do oferecimento da denúncia, em audiência designada pelo juiz especialmente para tal fim e depois de ouvido o Ministério Público (art. 16).
São essas as medidas que devem ser tomadas, nas delegacias de polícia judiciária, quando noticiada a iminência ou a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, muito embora o comportamento do ofensor não constitua infração penal que justifique a instauração do inquérito policial. Tal situação, porém, não afasta o dever da polícia de tomar as medidas previstas na lei, pois é a violência doméstica ou familiar que enseja a adoção de medidas protetivas, e não exclusivamente a prática de alguma infração penal.
Qualquer pessoa que causar lesão, violência física, sexual ou psicológica e dano moral ou patrimonial a mulher fica obrigado a ressarcir todos os danos causados, inclusive ressarcir ao SUS, de acordo com a tabela própria, os custos relativos aos serviços de saúde prestados para o total tratamento das vítimas em situação de tal violência, recolhidos os recursos assim arrecadados ao Fundo de Saúde. Serão ressarcidos também pela pessoa agressora os custos dos dispositivos de segurança destinados ao uso em caso de perigo iminente, disponibilizados para o monitoramento das vítimas, não podendo importar ônus de qualquer natureza ao patrimônio da mulher e dos seus dependentes, nem configurar atenuante ou ensejar possibilidade de substituição da pena aplicada.
Tem a mulher, em situação de situação de violência doméstica, prioridade para matricular seus dependentes em instituição de educação básica mais próxima de seu domicílio, ou transferi-los para essa instituição, mediante a apresentação dos documentos comprobatórios do registro da ocorrência policial ou do processo de violência doméstica e familiar em curso. A Lei assegura que, em nenhuma hipótese, a vítima, seus familiares e testemunhas terão contato direto com investigados ou suspeitos ou pessoas a eles relacionadas, além de evitar que a ofendida seja inquirida sobre o mesmo fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo, bem como seja questionada sobre a sua vida privada.
9. DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA
Antes da edição da Lei n. 13.641/2018, que altera a Lei Maria da Penha e torna crime a conduta daquele que descumpre medidas protetivas de urgência impostas pelo juiz, havia três correntes doutrinárias.
A primeira corrente apregoa que, havendo descumprimento da medida protetiva de urgência à vítima vulnerável, o agressor responde pelo crime de desobediência, previsto no art. 330 do Código Penal brasileiro, com pena de detenção de quinze dias a seis meses, e multa.
A segunda corrente entende que a prisão preventiva para garantir o cumprimento das medidas protetivas de urgência (prevista no art. 313, III, CPP) deverá ser com base no art. 359 do Código Penal brasileiro (Desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito), com pena de detenção de três meses a dois anos, ou multa.
A terceira corrente (majoritária) e já bem consolidada pela jurisprudência no Superior Tribunal de Justiça (STJ), assegura que não responde pelo crime de desobediência o agressor que descumpre medida protetiva de urgência, em razão de existir previsão expressa de consequências para o descumprimento – fato atípico (AGRESP n. 699637/SP).
Com a promulgação da Lei n. 13.641/2018, o STJ terá que alterar o seu posicionamento, pois a norma passa a conter previsão expressa de crime para o caso de descumprimento de medida protetiva de urgência. Com a edição da nova lei, põe-se, portanto, uma pá de cal na celeuma, criando-se um tipo penal específico para os casos de descumprimento da medida protetiva de urgência, nos seguintes termos da LMP:
Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei: (Incluído pela Lei nº 13.641, de 2018).
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos. (Incluído pela Lei nº 13.641, de 2018).
§ 1º A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas. (Incluído pela Lei nº 13.641, de 2018).
§ 2º Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança. (Incluído pela Lei nº 13.641, de 2018).
§ 3º O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis.
Com a publicação da Lei n. 13.641/2018, a desobediência da ordem judicial ficou solucionada. Entretanto, com as alterações do artigo 12 – C, II e III, da Lei 11.340/2006 pela Lei n. 13.827/2019, surgiu o problema da desobediência da ordem policial. O referido dispositivo (art. 12-C, II e III, da LMP) dispõe o seguinte:
Art. 12-C. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida: (Incluído pela Lei nº 13.827, de 2019).
[...]
II - pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou (Incluído pela Lei nº 13.827, de 2019).
III - pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia. (Incluído pela Lei nº 13.827, de 2019).
Analisando a hipótese sob o prisma da estrita legalidade (caso a medida tenha sido decretada por policial), não é possível responsabilizar o infrator pelo crime previsto no artigo 24 – A, da Lei Maria da Penha, eis que ali se incrimina a conduta do descumprimento de “decisão judicial” que defere medidas protetivas de urgência. In casu, a decisão enfocada não é “judicial”, mas “policial”, de modo que a pretensão de aplicação do dispositivo no caso de ordem do Delegado de Polícia ou de agentes da autoridade policial, esbarraria no Princípio da Legalidade e na correlata vedação de analogia in mallam partem. De Tal sorte, não incorre em qualquer crime o agressor que descumpre medida protetiva de urgência concedida por autoridade policial ou seus agentes, por falta de previsão legal e vedação de analogia in mallam partem.
Convém aqui esclarecer um ponto, no que diz respeito à concessão das medidas protetivas de urgência ao ofendido homem, uma vez que a este é perfeitamente aplicável a concessão daquelas, desde que o homem seja vulnerável (criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência), conforme previsão do artigo 313, III, do CPP.
Dessa maneira, em regra, as medidas de proteção previstas nos art. 22, 23 e 24 da Lei Maria da Penha, não se aplicam para proteger o homem vítima de violência doméstica, “(pois pressupõe violência de gênero), mas é possível aplicar as medidas protetivas para homens vulneráveis” (informação verbal)[11].
São medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor, previstas no art. 22 da LMP, segundo o qual “constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
VI – comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; e (Incluído pela Lei nº 13.984, de 2020).
VII – acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio.
Cabe destacar que tais medidas podem ser impostas em conjunto ou separadamente, e outras medidas não previstas na lei também poderão ser aplicadas para assegurar a segurança da vítima.
Já o artigo 24 da mesma lei prevê as medidas protetivas de urgência concedidas à ofendida, na seguinte dicção: “poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas”:
I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;
II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;
III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;
IV - determinar a separação de corpos;
V - determinar a matrícula dos dependentes da ofendida em instituição de educação básica mais próxima do seu domicílio, ou a transferência deles para essa instituição, independentemente da existência de vaga.
As medidas protetivas de urgência são ordens judiciais (ou policiais, conforme o caso) para fazer cessar a violência contra a mulher, seja para dar a ela o direito de acolhimento nas redes assistenciais, seja para obrigar o ofensor a deixar de praticar determinadas condutas, sob pena de prisão.
A concessão de medidas protetivas de urgência, em regra, é efetivada pela autoridade judiciária, entretanto, a Lei n. 13.827/19 trouxe a lume hipótese em que a medida protetiva de urgência “afastamento do agressor do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida” (art. 22, III, da LMP), seja concedida pelo delegado de polícia quando o Município não for sede de comarca ou pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia.
A Lei Maria da Penha (11.340/2006), com o intuito de dar amparo à mulher em situação de violência doméstica e/ou familiar, instituiu uma série de medidas de proteção à vítima. São as medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor (art. 22) e as medidas protetivas de urgência à ofendida (art. 23 e 24). Ao criar tais medidas, andou bem o legislador, eis que deixou em segundo plano a preocupação com a punição do(a) ofensor(a), prestando certa e enfaticamente assistência à ofendida. De tal sorte, pode-se concluir que tal legislação não veio para castigar o(a) ofensor(a), mas, precipuamente, para amparar e salvaguardar os direitos das mulheres. Quaisquer alterações posteriores deverão visar essencialmente a proteção e o respeito à dignidade da mulher, em situação de vulnerabilidade.
10. DAS IMUNIDADES PENAIS E A LEI N. 11.340/2006
Incumbe, nesta oportunidade, comentar e esclarecer a incompatibilidade residente entre a Lei Maria da Penha (art. 7º, IV) e os artigos 181, 182 e 183 do Código Penal. Nesses últimos estão previstas as chamadas imunidades penais de caráter pessoal que podem ser absoluta (art. 181) ou relativa (art. 182) e relacionam-se aos crimes contra o patrimônio. Senão vejamos:
Art. 181 - É isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos neste título, em prejuízo:
I - do cônjuge, na constância da sociedade conjugal;
II - de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural.
Art. 182 - Somente se procede mediante representação, se o crime previsto neste título é cometido em prejuízo:
I - do cônjuge desquitado ou judicialmente separado;
II - de irmão, legítimo ou ilegítimo;
III - de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita.
Art. 183 - Não se aplica o disposto nos dois artigos anteriores:
I - se o crime é de roubo ou de extorsão, ou, em geral, quando haja emprego de grave ameaça ou violência à pessoa;
II - ao estranho que participa do crime.
III – se o crime é praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.
Em função disso, fica isento da pena quem pratica qualquer dos crimes contra o patrimônio em face do cônjuge, na constância da sociedade conjugal, se a infração for executada sem violência ou grave ameaça à pessoa (artigo 181, I c/c 183, I). Por sua vez, o artigo 182 preceitua que somente se procede mediante representação, se tais crimes são levados a efeito em prejuízo do cônjuge desquitado ou judicialmente separado, de irmão, de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita.
Os dispositivos acima elencados (art. 181 e 182) instituem as chamadas imunidades relativa e absoluta. Esta consiste na isenção de pena, de modo que não pode ser instaurado inquérito policial e muito menos intentada ação penal contra o beneficiário, por falta de interesse de agir, uma vez que não é possível a imposição de pena. Aquela, por sua vez, prevista no artigo 182, por razão de política criminal exigiu como condição de procedibilidade a representação para o ajuizamento da ação penal pública.
Por outro lado, a Lei Maria da Penha (art. 7º, IV), apresenta como violência patrimonial (violência doméstica e familiar contra a mulher), assim considerada como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.
Percebe-se que, dentre as condutas elencadas acima (por exemplo) se encontra o crime de furto cuja prática é efetivada sem violência ou grave ameaça à pessoa. Em situação de marido praticar furto contra sua esposa, aplicar-se-iam a Lei Maria da Penha ou os artigos 181 e 182 do CPB?
Decorre que a jurisprudência, assim como a doutrina apoiam a isenção dos crimes patrimoniais envolvendo cônjuges, desde que não haja emprego de violência ou grave ameaça à pessoa. Nos casos de imunidade absoluta ocorre a isenção de pena e nos casos de imunidade relativa, impõe-se a representação como condição de procedibilidade. Com o advento da Lei Maria da Penha surgiram controvérsias quanto aos crimes patrimoniais e as causas de imunidades penais.
Em comentário às hipóteses de violência patrimonial, versadas no artigo 7º, IV, da Lei n. 11.340/2006, Guilherme de Souza Nucci[12] afirmou não ver grande utilidade de sua previsão no contexto penal, uma vez que “há as imunidades (absoluta ou relativa), fixadas pelos art. 181 e 182 do Código Penal, nos casos de delitos patrimoniais não violentos no âmbito familiar”. Com efeito, para o ilustre professor, as reportadas imunidades não foram revogadas.
De maneira diversa, Maria Berenice Dias nos traz o entendimento de que a partir da vigência da Lei Maria da Penha, o varão que “subtrair” objetos da sua mulher pratica violência patrimonial (art. 7º, IV). Diante da nova definição de violência doméstica, que compreende a violência patrimonial, quando a vítima é mulher e mantém com o autor da infração vínculo de natureza familiar, não se aplicam as imunidades absoluta e relativa dos art. 181 e 182 do Código Penal. Não mais chancelando o furto nas relações afetivas, cabe o processo e a condenação, sujeitando-se o réu ao agravamento da pena (CP, art. 61, II, “f”).
Esta exposição expressa o entendimento, segundo o qual, a escusa absolutória, prevista no artigo 181 do CPB não se aplica quando o crime é levado a efeito contra a mulher no ambiente familiar ou doméstico. Desse modo, o autor de crimes (inclusive crimes patrimoniais) executados em face da mulher no seio familiar ou doméstico, deverá ser processado e, se condenado, sofrer a incidência da agravante do artigo 61, II, “f”, do Código Penal. Anote-se que a hipótese acima é de derrogação (revogação parcial) do artigo 181 do Código Penal, uma vez que se o delito não tiver como vítima a mulher no âmbito doméstico ou familiar, o agente deverá ser beneficiado com a imunidade em questão.
Entretanto, a imunidade relativa do artigo 182 do mesmo código deverá ser aplicada, ainda que os crimes ali previstos tenham sido levados a cabo nos moldes da Lei Maria da Penha. Isso porque o próprio STF já decidiu nesse sentido, quando do julgamento da ADI 4424/DF, firmando que o artigo 16 da Lei n. 11.340/06 continua em vigor, exigindo a representação para os crimes que estabeleçam tal formalidade, desde que tal previsão não esteja na Lei n. 9.099/95, mas em qualquer outra lei. Assim, entende-se que crimes com previsão de exigibilidade de representação em lei diversa da Lei dos Juizados Especiais Criminais, deverão ser processados mediante representação da vítima, ainda que perpetrados nos ditames da Lei Maria da Penha. Do mesmo modo acontece com os crimes de ação penal privada (calúnia, injúria, etc.), levados a efeito contra a mulher em ambiente doméstico ou familiar, continuam sendo acionados e julgados mediante queixa da ofendida.
11. CONCLUSÃO
Este trabalho teve por objetivo estudar e analisar as infrações penais de violência doméstica, especificamente quando efetivadas contra a mulher no âmbito familiar, nos moldes da Lei Maria da Penha e Lei do Feminicídio. O trabalho, inicialmente, vislumbrou um aspecto geral do tema no direito brasileiro, apontando as diversas opiniões e conceitos formulados pelos autores.
No primeiro capítulo chegou-se à definição mais adequada para a violência doméstica e familiar contra a mulher, segundo a qual, esse tipo de violência consiste em qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família ou em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agente conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Demonstrou-se que a Lei Maria da Penha é constitucional, aderindo ao posicionamento do STF cujo entendimento foi referendado na ADC n. 19 e ADI n. 4424/DFD, ajuizadas, respectivamente, pelo Presidente da República e Procurador-Geral da República. As duas ações foram julgadas pela Suprema Corte na mesma data. Na primeira ação, o STF, depois de discutidos os autos, julgou procedente a ação e declarou por unanimidade a constitucionalidade dos artigos 1º, 33 e 41 da Lei Maria da Penha, nos termos do voto do relator e na segunda ação, foi dada interpretação conforme aos artigos 12, inciso I, 16 e 41, ficando assentada a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão corporal (sem cogitar a natureza da lesão), efetivada contra a mulher no ambiente doméstico, e afastada a aplicação da Lei dos Juizados Especiais Criminais nas hipóteses de crimes perpetrados nos termos da Lei Maria da Penha.
Mesmo depois dessa consolidação homologada pelo STF, ainda subsiste corrente doutrinária em sentido contrário, entendendo serem inconstitucionais algumas normas impostas pela Lei Maria da Penha. O entendimento esposado nesta pesquisa se coaduna com o posicionamento referendado pelo Supremo Tribunal Federal, já acima analisado.
Assentou-se que o sujeito ativo da violência doméstica e familiar contra a mulher pode ser qualquer pessoa, desde que esteja unida à vítima por relações domésticas, vínculo familiar ou qualquer relação íntima de afeto, independentemente de orientação sexual. Logo, é possível haver a violência doméstica e familiar contra a mulher nos casos de agressão de filho contra mãe, de neto contra avó, de filha contra mãe (e vice-versa), de travesti contra mulher, empregador ou empregadora que agride empregada doméstica, de companheiro contra companheira etc.
No entanto, há quem advogue que, nos tipos de violência de gênero definidos na Lei Maria da Penha, somente o homem pode ser sujeito ativo e somente a mulher pode ser sujeito passivo, desde que entre eles exista uma relação de afetividade, independentemente de qualquer preferência sexual dos sujeitos.
Muito embora a segunda corrente exponha fundamentos sólidos, esta pesquisa considerou mais eficaz a interpretação da primeira corrente, entendendo que qualquer pessoa pode ser sujeito ativo da violência, bastando estar vinculada a uma mulher por relação afetiva, familiar ou doméstica. É de bom alvitre esclarecer que a mulher que tiver orientação sexual diversa da tradicional e sofrer violência doméstica ou familiar não perde a proteção da lei, bem como o homem não pode se valer de sua opção sexual para se eximir das normas legais.
Quanto ao sujeito passivo da violência doméstica e familiar contra a mulher, deve-se enfatizar nesse ponto a questão de gênero, pois o legislador deu prioridade à criação de mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Desse modo, o sujeito passivo desse tipo de violência poderá ser somente a mulher que tenha sido vítima de violência doméstica no seio familiar.
Esclareceu-se que o feminicídio é uma circunstância qualificadora do delito de homicídio, cuja prática ocorre quando o assassínio é contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. A própria lei considera que existem razões da condição de sexo feminino quando o crime envolve violência doméstica e familiar contra a mulher, menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A nova lei ainda incluiu o novo tipo penal no rol dos crimes hediondos, além de gerar três causas de aumento de pena.
Nos moldes da nova norma instituída pela Lei do Feminicídio, a pena para o homicídio contra a mulher em razão da condição de sexo feminino pode variar entre 12 e 30 anos de reclusão, podendo ainda ser majorada de um terço até a metade se a vítima estiver na condição de gestante ou nos três primeiros meses subsequentes ao parto. Ou ainda se o crime for cometido contra pessoa menor de 14 ou maior de 60 anos, com deficiência, ou na presença dos pais ou filhos da vítima. Além disso, tal crime é insuscetível de anistia, graça, indulto ou fiança.
Firmou-se entendimento de que nem todas as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher recaem em infrações penais, defendendo que esses tipos de violência podem assumir desde o fato atípico até o homicídio. Poderá haver a violência doméstica e familiar contra a mulher e não haver infração penal, isto é, existe a violência doméstica e familiar contra a mulher, porém o fato não constitui crime nem contravenção penal, o fato é atípico.
Sustentou-se que, muito embora o texto da Lei Maria da Penha não mencione as contravenções penais, estas também estão por ela abrangidas. Desse modo, se o agressor praticar tais infrações penais (contravenções) contra a mulher no convívio doméstico ou familiar, vítima e agressor terão tratamento nos moldes da Lei Maria da Penha. Isso porque o termo ”crimes”, mencionado na Lei Maria da Penha, deve ser interpretado de maneira teleológica, abrangendo também as contravenções penais. Logo, entende-se que o preceituado no artigo 41 da Lei Maria da Penha alcança toda e qualquer prática delituosa contra a mulher, até mesmo quando consubstancia contravenção penal.
Observou-se que os impedimentos impostos pela Lei Maria da Penha implica a inviabilidade de aplicação de todas as medidas beneficiadoras da Lei dos Juizados Especiais Criminais, ou seja, não se aplica aos casos de crimes ou contravenções penais postos em prática com violência doméstica e familiar contra a mulher o termo circunstanciado de ocorrência, a composição civil dos danos, a transação penal, a suspensão condicional do processo, além de não haver necessidade de representação da vítima nos crimes de lesão corporal leve e culposa.
Defendeu-se ainda que o artigo 181 do Código Penal foi derrogado pela Lei Maria da Penha, tornando-se inaplicável em parte, de modo que o autor de crimes (inclusive crimes patrimoniais) executados em face da mulher no seio familiar ou doméstico, deverá ser processado e, se condenado, sofrer a incidência da agravante do artigo 61, II, “f”, do Código Penal. Entretanto, a imunidade relativa do artigo 182 do mesmo código deverá ser aplicada, ainda que os crimes ali previstos tenham sido procedidos nos moldes da Lei Maria da Penha. Isso porque o próprio STF já decidiu nesse sentido, firmando que o artigo 16 da Lei n. 11.340/06 continua em vigor, exigindo a representação para os crimes que estabeleçam tal formalidade, desde que tal previsão não esteja na Lei n. 9.099/95, mas em qualquer outra lei.
As proposições discutidas neste trabalho não esgotam o assunto, mas apresentam uma abrangência mais ampla do tema. É necessário um maior aprofundamento técnico e discussão entre as instituições que estruturam as regras pertinentes à violência doméstica ou familiar contra a mulher, sempre em busca de melhoria na qualidade da prestação da tutela administrativa e jurisdicional e, em especial, de um entendimento sólido e uniforme das normas aplicáveis à matéria.
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[1] SAFFIOTI. Heleieth Iara Bongiovani. Violência doméstica ou a lógica do galinheiro. In: KUPSTAS, Márcia (Org). Violência em debate. São Paulo: Moderna, 1997.
[2] HIRIGOVEN, Marie-France. A violência no casal: da coação psicológica à agressão física. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
[3] CUNHA, Rogério Sanches. Maria da Penha. Disponível em: . Acesso em: 01 dez. 2014.
[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Anotado. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 862.
[5] DIAS. Maria Berenice. A violência doméstica e a justiça. Disponível em: . Acesso em: 08 dez. 2014.
[6] PIRES, Amom Albernaz. A opção legislativa pela política criminal extrapenal e a natureza jurídica das medidas protetivas da Lei Maria da Penha. Revista do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Brasília, v. 1, n. 5, p. 124, 2011.
[7] MELLO, Marília Montenegro Pessoa de. Da mulher honesta à lei com nome de mulher: o lugar do feminismo na legislação penal brasileira. Videres: Universidade Federal da Grande Dourados, Mato Grosso d Sul, ano 2, n. 3, p. 137-159, jan. 2010.
[8] AZEVEDO, Álvaro Villaça. Prisão civil por dívida, p. 51.
[9] GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume II: obrigações. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 308.
[10] BITENCOURT, op. cit., p. 360.
[11] Aula ministrada por Rogério Sanches Cunha aos alunos do Curso Carreiras Jurídicas, em outubro de 2013, no Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS)/RJ.
[12] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 867.