Colombo, fecha a porta dos teus bares
Por Osorio de Vasconcellos | 01/06/2009 | Crônicas
Resumo: A meu convite, o poeta Castro Alves assistiu a uma CPI no Senado, em 2005. Rolavam os escândalos precursores do ”mensalão”. As intervenções do Poeta vão registradas aqui.
Colombo, fecha a porta dos teus bares
Nutro o maior respeito pelo Senado. Sofro com os Senadores, com aqueles que lutam para revelar a verdade no curso das CPIs.
A luta é desgastante e cruel, na medida em que a mentira se aproveita das brechas legais e faculta aos depoentes mal intencionados o amplo controle das situações controversas, as quais constituem a matéria-prima das investigações.
Por isso, entendo que Suas Excelências estejam cansadas, desgastadas, ansiosas e, por isso, não percebam a infiltração insidiosa das imagens caricatas que à sua volta vão se desenhando, no cenário geral da crise.
E nem percebam ademais Suas Excelências quando transpõem os limites do real e adentram os territórios da fantasia.
Quem testemunhou a sessão da CPI adiante reconstituída, cujo teor facilmente a identificará, poderá aferir que o desenrolar das investigações parlamentares emula a trama de “O Navio Negreiro”, de Castro Alves, e terá ainda a chance de acompanhar, a baixo custo de imaginação, as intervenções do Poeta, a seguir recuperadas.
Cena Um
Depõe um cidadão – ex-assessor do então ministro da fazenda – suspeito de haver transportado material “alquímico” de Brasília a Campinas. “Alquímico” porque, conforme assegurou e logo desmentiu o ex-assessor, o material embarcou em Brasília sob a fórmula de uísque e chegou a Campinas transubstanciado em um milhão e quatrocentos mil dólares americanos.
Castro Alves
‘Stamos em pleno mar...
Cena dois
O presidente da comissão entrega o comando dos trabalhos ao relator, e segue para o aeroporto.
Outro senador manifesta a sua indignação com o que está acontecendo no país. Desculpa-se por eventuais excessos retóricos e deixa o recinto. Sabe-se que deixou o recinto, porque o orador que o sucedeu lamentou a ausência dele.
Um terceiro senador pega o microfone, diz-se convencido de que o depoente mentiu o tempo todo, pede o indiciamento do “mentiroso”, e se despede do plenário, esclarecendo que não queria dizer nem ouvir mais nada.
Castro Alves
‘Stamos em pleno mar ...
Veleiro brigue corre à flor dos mares...
Por que foges assim, barco ligeiro? ...
Esperai, esperai!...
Cena Três
Um quinto senador, retardatário, informa que acompanhara parte da sessão pela TV do seu gabinete, e adere ao interrogatório, ressentido da própria desinformação.
Castro Alves
‘Stamos em pleno mar...
Albatroz! Albatroz! ... Tu, que dormes das nuvens entre as gazas...
Cena Quatro
Com a palavra, um senador que (como ele mesmo declarou) já perdera dois vôos. Correligionário do depoente, tenta prolixamente ensejar que este reconheça a incongruência do depoimento “alquímico” e, assim reconciliado com a verdade, possa atenuar os rigores da avaliação parlamentar. Tão reticente, tão confuso, tão inseguro mostrou-se o senador, que o relator, no comando dos trabalhos, indagou: “ Vossa Excelência já concluiu? Vossa Excelência está querendo que ele se retrate?”
Castro Alves
‘Stamos em pleno mar...
Oh! Quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar – doudo cometa!
Cena Cinco
O relator, no comando dos trabalhos, indaga ao depoente se ele conduziu um milhão e quatrocentos mil dólares de Brasília a Campinas. O depoente responde que não, que conduziu três caixas de uísque.
Castro Alves
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais, inda mais...não pode o olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador.
Mas que vejo eu ali...?
Cena Seis
– Mas Vossa Senhoria se lembra do local onde Vossa Senhoria apanhou a encomenda...
– Não, Excelência, não me lembro.
– Quer dizer que Vossa Senhoria não tem nem uma vaga lembrança?
– Tenho, Excelência, era na Asa Sul.
Castro Alves
Donde vem?... Onde vai?... Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste Saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.
Cena Sete
– Imagino que Vossa Senhoria subiu ao apartamento para pegar a encomenda. Imagino que guarde alguma memória do remetente...
– Não, Excelência, eu peguei as caixas na portaria.
Castro Alves
Quem são estes desgraçados,
Que não encontram em vós,
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?...
Cena Oito
O relator manda rodar a gravação em que o depoente concede longa e circunstanciada entrevista a um repórter. Rodada a gravação, pergunta o relator como, sem conhecer o repórter, pode o depoente ser tão expansivo na entrevista, a ponto de declarar que conduzira um milhão e quatrocentos mil dólares junto com o uísque, segundo veio a saber posteriormente.
– Excelência, confiei nele de cara, gostei do repórter. Não , é claro, “naquele” sentido – disse rindo com malícia.
Castro Alves
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais!
Epílogo
A imbricação das tramas ainda poderia estender-se por muitas cenas, mas convém não prolongar o sofrimento.
A manifestação final alude à alegação do depoente, que reconheceu estar alcoolizado ao repassar a terceiros a notícia da “alquimia” do uísque em dólares.
Não havendo na obra de Castro Alves nada à altura de tanto cinismo, a única saída honrosa que encontrei foi repetir o penúltimo verso do imortal Poema e parafrasear o derradeiro. Assim:
Andrada! arranca este pendão dos ares!
Colombo, fecha a porta dos teus bares!