Cognição Musical Como Enacção E Algumas Possibilidades De Implicações Metodológicas Em Educação Musical.

Por Dr. André Luiz Gonçalves de Oliveira | 08/02/2008 | Educação

  1. O que é conhecimento musical?

A resposta à pergunta acima se configura no objeto central da investigação de diferentes áreas[1] que estudam os diversos fenômenos ligados a cognição musical. Entre tais fenômenos destacamos: aprendizagem musical, percepção musical e execução musical. No entanto, responder essa questão não tem sido a preocupação central dentro de tais áreas. Um levantamento geral nas três áreas citadas nos mostra isso. A pesquisa em educação musical tem sido centrada no estudo dos métodos e de suas aplicações. Há pouquíssimas publicações que se ocupam especificamente com descrição da noção de conhecimento musical. Na área de musicologia observa-se que o foco central está na investigação sobre a história da música ou sobre a análise musical. Novamente a reflexão sobre conhecimento musical não encontra espaço adequado. No que diz respeito à área da performance musical observa-se a ênfase na execução instrumental. As pesquisas na área se restringem a análise do repertório a ser executado e ao desenvolvimento de uma motricidade específica a cada instrumento. Assim é objetivo do presente trabalho ressaltar a necessidade da investigação da noção de conhecimento musical, ou cognição musical, nas subáreas da pesquisa em música.

Para iniciar a resposta à questão do título desta seção, é necessário distinguir entre: conhecimento experiencial musical e conhecimento sobre música. A não distinção desses dois tipos de conhecimento vem acarretando uma série de equívocos na descrição da noção de conhecimento musical. Um desses equívocos pode ser descrito por casos como a situação paradoxal de um aluno que afirma conhecer a música mesmo sem alcançar uma execução adequada. Ele descreve seu conhecimento sobre música como sendo conhecimento musical. Consideramos que tal possibilidade de descrição está vinculada a uma teoria do conhecimento denominada racionalista e dualista.Tal abordagem teórica oferece condições para tal paradoxo uma vez que distingue entre conhecimento musical teórico e conhecimento musical prático. O que pretendemos afirmar durante o presente texto é que não se pode separar a noção de conhecimento musical de uma experiência musical. Quando se fala sobre música, não está ocorrendo uma experiência musical. Daí a necessidade de vincular a noção de cognição musical com algum tipo de experiência musical e, portanto, distinguir entre conhecimento experiencial (fenomênico) e conhecimento sobre música (reflexivo, a posteriori)

Nesse sentido cabe a referência aos diferentes níveis de análise possíveis ao estudo de um mesmo fenômeno. A compreensão de tais níveis de análise é importante para que não atribuamos mesmas características a elementos de diferentes níveis de análise. Segundo Maturana (1995) é imprescindível distinguir entre o nível do observador e o nível experiencial. O autor afirma que tudo o que pode ser dito sobre um fenômeno estará sempre no escopo do nível do observador e não do nível da experiência. Assim uma teoria da música é o fundamento para descrever possibilidades de organização dos fenômenos sonoros, no entanto essa teoria jamais se configura em condição suficiente para o que entendemos como conhecimento musical. Também a experiência, desligada das reflexões que orientarão a própria escuta e ação musical, só pode ser designada como condição necessária e nunca suficiente, para ocorrência do que denominamos por conhecimento musical. Dessa forma aquilo que um observador descreve como conhecimento musical nos parece precisar necessária e suficientemente desses dois aspectos: a experiência, a ocorrência do fenômeno musical e o falar sobre essa experiência.

Nossa perspectiva é de descrição de cognição musical como um ciclo que se inicia no conhecimento experiencial, procede como conhecimento sobre música, e retorna ao primeiro estágio, orientando-o. Tal abordagem encontra apoio na fenomenologia de M.-Ponty por retomar a própria experiência como objeto central de seu próprio estudo e colocá-la como fundamento ontológico de toda e qualquer descrição sobre ela, como afirma o prefácio de sua obra "Fenomenologia da percepção":

 

Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, (...), precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda. (Merleau-Ponty, 1996, p 3)

 

Essa descrição de cognição musical não é corrente entre as áreas que utilizam tal noção. E mesmo do ponto de vista do operador do desenvolvimento da cognição musical, em seu cotidiano, o professor de música está subordinado a uma concepção de conhecimento musical que, mesmo de forma não consciente[2], direciona toda sua atividade. O professor de instrumento, por exemplo, visa desenvolver no aluno condições para uma execução musical adequada. Desenvolver cognição musical, nesse caso, vincula-se diretamente à ação motora e à música percebida como resultado dessa ação. Mesmo com a consciência de tal fato, o professor de instrumento vivencia e aceita situações paradoxais como a que descrevemos acima.

É corrente na literatura da área a diferenciação entre um conhecimento mental e um conhecimento corporal, não como nossa proposta de distinção entre conhecimento musical e conhecimento sobre música. Mas como derivada de uma abordagem dualista e racionalista de conhecimento e especificamente, de conhecimento musical. Como exemplo de tal abordagem podemos ler em Kaplan a seguinte afirmativa:

 

Cabe salientar ainda que a Qualidade – no sentido de clareza e precisão – da imagem mental da obra condiciona não só, e é óbvio, - o grau de excelência artística da versão, como também a eficácia e facilidade motora (…). (Kaplan 1987, p. 31 e 32).

 

 

Para o referido autor, o conhecimento musical se dá na mente e posteriormente no corpo. Por mais que o autor relate detalhadamente os processos do sistema nervoso central e periférico envolvidos na execução musical, tal relato não alcança a explicação sobre a experiência musical, nem sobre o conhecimento musical. Uma vez que essa abordagem descreve mente como substância distinta do corpo, toda ação desse corpo é descrita como conseqüência da ação da mente. Tal posição encontra grande dificuldade epistemológica e mesmo ontológica em diversos aspectos. Como se pode verificar a realidade de uma verdade que se situa na mente, se essa mente não é descrita como substância física? A dificuldade com essa resposta traz conseqüências desastrosas para o desenvolvimento de teorias consistentes sobre cognição musical.

É quando se examina, por exemplo, os conceitos de aprendizagem nas diferentes perspectivas em educação musical, que se observa a diversidade das opções epistemológicas e mesmo ontológicas que são feitas para responder a pergunta sobre a natureza e o funcionamento da cognição musical. Embora nosso objetivo aqui não seja revisar filosoficamente os métodos e sistemas em educação musical, vamos nos referir especificamente a uma tradição representacionista[3] no estudo da educação musical, em oposição a uma alternativa não-representacionista para descrição de atividades relacionadas à cognição musical. Como exemplo de tal tradição representacionista podemos nos remeter à um trecho de Gainza (1974, p. 22) que trata exatamente da descrição do processo de aprendizagem musical:

 

La música, el ambiente sonoro – exterior al hombre – al entrar en contacto con las zonas receptivas de éste (sentidos, afectos, mente) tiende a penetrar e internalizarse, induciendo un mundo sonoro interno (reflejo directo o representación de aquel) que a su vez tendera naturalmente a proyectarse en forma de respuesta o de expresión musical.

 

 

Fica clara, pelo grifo da autora, sua posição dualista e sua opção internalista para localizar a atividade de aprendizagem e os fenômenos relacionados à cognição musical. Aautora não apresenta suas definições de conceitos que são fundamentais em sua proposta. Como um exemplo entre vários, podemos citar alguns dos conceitos utilizados na citação acima. O que são exatamente os "sentidos, afetos" e especialmente a "mente" para a autora? Tais conceitos são bastante debatidos no escopo da filosofia da mente e ciência cognitiva, mas, ao que tudo indica, as conclusões sobre tais debates não parecem ainda muito próximas.

No entanto há alternativas teóricas para a descrição de determinadas atividades como as de percepção e aprendizagem que propõem novidades especialmente no que diz respeito ao repertório conceitual utilizado. Enquanto as abordagens tradicionais em educação musical e outras subáreas da pesquisa em música estão fundamentadas numa tradição representacionista, as alternativas teóricas têm conseguido desenvolver bons modelos conceituais distantes da noção de representação mental.

Uma perspectiva tem sido crescente nos últimos quinze anos entre os cientistas cognitivos e vem recebendo diferentes denominações, tais como ciência cognitiva dinâmica, enacção[4], ou cognição incorporada e situada. Essas perspectivas buscam alternativas aos conceitos acima e realizam explicações e mesmo modelagens de ações cognitivas sem o uso de noções que caiam nas armadilhas da perspectiva metafísica do dualismo-cartesiano, como as que são citadas acima.

Diversos pesquisadores, ao fazer um histórico da ciência cognitiva, tais como Gardner (1985), ou Varela et al (1991), ou ainda Gonzales (1989) falam em duas vertentes que marcaram os dois primeiros momentos daquilo que se tem chamado de ciência cognitiva[5]. Todos assinalam o desenvolvimento de um terceiro caminho que Varela (1980) ou Varela et al.(1991) chamam de enacção, ou que Gonzales (1989) denomina por naturalização das descrições de fenômenos cognitivos e perceptivos. Este caminho se configura, entre outros aspectos, por optar por um conjunto conceitual não impregnado pela noção de representação mental simbólica. Também, por não entender o conhecimento como aquilo que acontece dentro de um organismo, mas nas possíveis interações existentes entre esse organismo e seu meio-ambiente. Ainda uma terceira característica relevante na explicação de conhecimento dada por essa nova abordagem consiste em uma nova proposição da noção de sujeito, principalmente se distanciando de opções metafísicas e dualistas da tradição cartesiana.

Varela et al (1991) passam em revisão às três perspectivas da ciência cognitiva acerca da noção de cognição e de como ela ocorre. Para os autores, a versão cognitivista clássica, que se apóia em modelagens da inteligência artificial entende cognição como:

 

Information processing as symbolic computation – rule-based manipulations of symbols. How does it work? Through any device that can support and manipulate discrete funcional elements – the symbols. The system interacts only with the form of the symbols (their physical attributes), not their meaning.(Varela et al. 1991, p. 42).

 

Tal descrição sobre o cognitivismo mostra bem o que foi a primeira vertente desenvolvida no âmbito de uma ciência que nascia tendo como objeto central a explicação e modelagem computacional simbólica de fenômenos cognitivos.

Como segunda corrente da ciência cognitiva, Varela et al (1991) apontam um caminho alternativo ao do processamento simbólico. Há um grupo de cientistas que desenvolvem outros tipos de arquitetura computacional para modelagem de atividades cognitivas. Tais tipos de modelos são basicamente denominados de redes neurais artificiais. O uso dessas redes como possibilidade de modelagens para atividades como reconhecimento de padrões, por exemplo, tem sido ampla e crescente dentro e fora da ciência cognitiva.

Varela et al. (1991) apontam as mudanças que essa perspectiva conexionista, ou emergentista, trazem para a descrição de cognição e para a explicação sobre seu funcionamento. Segundo os autores, para o conexionismo a cognição é:

 

The emergency of global states in a network of simple components. How does it work? Through local rules for individual operation and rules for changes in the connectivity among the elements.(Varela et al. 1991, p.98).

 

 

O que os autores enfatizam aqui é a saída de cena dos símbolos. Nos modelos propostos pela alternativa conexionista/emergentista não é necessário sustentar que a mente seja algo como um processador simbólico. Muitos autores falam sobre um sabor biológico (biological flavor) nos modelos conexionistas justamente por sua inspiração na arquitetura de redes formada pelo sistema nervoso.

Embora tal posição represente um conjunto de mudanças no entendimento e na modelagem de atividades cognitivas, os autores acima citados indicam ainda alguns aspectos em comum entre o cognitivismo clássico e o conexionismo. Tais aspectos têm em comum a grande distância entre a realidade, a experiência do dia-a-dia e as pesquisas desenvolvidas especificamente nos laboratórios de cada área. Com isso, Varela et al. (1991) propõem uma definição de cognição que está intimamente ligada à proposta por M.-Ponty(1945), ou àquela indicada por Gibson (1966 e 1979), ou Bateson (1972), ou ainda outros cientistas cognitivos e filósofos da mente preocupados com descrições sobre percepção e cognição. Para Varela et al. cognição é:

 

Enaction: A history of a structural coupling that brings forth a world. How does it work? Through a network consisting of multiple levels of interconnected, sensorimotor subnetworks.(Varela et al. 1991, p. 206).

 

 

Tal definição tem em comum diversos aspectos com outras teorias sobre o conhecimento e a percepção[6], tem também grande proximidade com a realidade do dia-a-dia, com a experiência cotidiana. Nem por isso ela se distancia da realidade de experiências em laboratório. Ao contrário, ela permite ampliação das perspectivas epistemológicas, e mesmo ontológicas, da explicação sobre o conhecimento e a percepção, como esperamos deixar claro nas seções seguintes.

 

  1. Cognição musical como enacção.

 

Nessa etapa se faz necessário retomar a descrição de conhecimento musical do começo da seção anterior. Em princípio reconhecemos que o conhecimento musical é um tipo específico de conhecimento, e que precisa ser especificado como tal. Posteriormente utilizaremos uma alternativa à noção de cognição buscando alcançar uma definição também alternativa de cognição musical. Tal caminho alternativo, como já dissemos baseia-se em abordagens como a enacção, fenomenologiae ecologia.

No início da primeira seção fizemos uma distinção acerca de conhecimento experiencial e conhecimento sobre música. Podemos notar uma distinção semelhante desenvolvida na definição de música de Serafine (1988). Para a autora música é:

 

Aural-cognitive activity -- that is, thought having to do with sounds -- and it excludes all such thinking that does not involve sounds. `Sound' here may be construed as including not only actual sounds in the physical environment but also mental images of sounds that occur internally -- that is, sounds occurring in the imagination ... and not merely represented there through some nonaural cue such as verbal pitch names, visualizations of music notation, or images of colors, spaces, or objects. In fact all such nonaural material is excluded from this definition of music, including items that may be about but not in music, such as the following: entertainments about musical characteristics that reach the level of verbal description (`The music sounds jagged'; `This sounds like such-and-so'); conscious awareness of the compositional or performance techniques of the piece; speculations about historical or biographical matters; verbal labellings of the progress of musical events (say, moving beyond felt changes in harmony to the exercise of labelling them after audition).


Desse modo a autora afirma que música é um tipo de cognição, especificamente uma atividade cognitiva auditiva. Isso é relevante para caracterizar cognição musical como um tipo de conhecimento com um alto grau de dependência da percepção.

No entanto os caminhos utilizados para explicar cognição pela referida autora diferem-se dos nossos por se filiarem a uma perspectiva representacionista e dualista para a explicação da cognição. Embora a citação enfatize a importância da experiência sonora para a definição de música, o conhecimento é sempre tratado como manipulação adequada de pensamentos (representações mentais) adequados.

O nosso estudo propõem descrever conhecimento musical nos termos da noção de enacção (Varela, 1991). Para alcançar essa concepção de cognição musical como história de condutas perceptivamente orientadas em um meio específico é necessário um novo entendimento de conceitos como: aprendizagem, memória e controle motor.

Para a abordagem atuacionista de cognição, e de acordo com Maturana (1995, p.32): Há duas perspectivas básicas a partir das quais se pode encarar o fenômeno de aprendizagem a fim de explicá-lo.A primeira ele denomina como interações instrutivas entre o percebedor e meio. O meio dá ao percebedor as informações e significações necessárias para que este monte representações adequadas para orientar sua conduta. Assim, aprendizagem será o processo de construção de uma representação interna adequada. Tal perspectiva está nitidamente implícita na proposta de Gainza (1974), como já demonstramos em citação na seção anterior. A outra perspectiva, segundo Maturana (1995, p.32) é a que descreve aprendizagem como:

 

(...) o caminho da mudança estrutural que segue o organismo (incluindo seu sistema nervoso) em congruência com as mudanças estruturais no meio como resultado da recíproca seleção estrutural que se produz entre ele e este, durante a recorrência de suas interações, com conservação de suas respectivas identidades.

 

 

É mesmo de senso comum entender aprendizagem por apropriação. A própria palavra enfatiza isso, no entanto é bastante complicado localizar especificamente o que é apreendido, retido e guardado. Nesse sentido, cabe a definição de aprendizagem para Maturana no mesmo artigo (1995, p.45) que afirma que: (...) aprendizagem é um processo que se estabelece no viver, porém que não consiste em captar o mundo como a palavra sugere, o fenômeno de aprender é mudar com o mundo (...). Posto dessa forma fica bastante clara a proximidade entre as noções de aprendizagem de Maturana (1995 e 1997) e de Gibson (1966, 1979). Segundo a abordagem ecológica gibsoniana, o organismo aprende por enriquecimento de seu sistema perceptivo. A aprendizagem melhora a sintonia, a história das condutas do organismo no mundo faz com que ele vá se auto-ajustando, se auto-sintonizando cada vez melhor com o tipo de informação específica a ser detectada. Nas palavras de Gibson:

 

However, this is not the kind of learning that the theory of association, one of "differentiation" (Gibson and Gibson, 1955)or of conditioning, or of memorization, has been concerned with. It is not an accrual of associations, an attaching of responses, or an accumulation of memories. Perceptual learning has been conceived as a process of"enrichment", whereas as might better be conceived as Gibson, 1966, p.269.

 

Com a utilização da noção de auto-ajustee de aquisição de informação, Gibson propõe que se dispense a utilização da noção de memória de armazenagem simbólica[7] para explicar aprendizagem. Aprendizagem não precisa desse tipo de memória, ela ocorre enquanto enriquecimento da sintonia, uma melhor afinação com determinado padrão informacional do meio ambiente, conforme observa a citação acima[8].

Gibson (1966) apresenta também um "mecanismo da aprendizagem perceptiva" que explica a atividade de "auto-sintonia" e nos direciona à concepção de conhecimento musical como conhecimento perceptivo, como uma forma de conhecimento intimamente dependente da experiência musical. Tal mecanismo é descrito como tendo duas etapas, uma de aquisição da informação, e outra de registro dessa informação através da ressonância, da sintonização, do acoplamento entre o padrão de informação detectada no meio e o padrão de ação realizada no meio por esse sistema perceptivo em todos os seus diferentes níveis.

No caso da audição humana, toda a vibração dos ossículos do ouvido médio, assim como os padrões de vibração das fibras na membrana basilar, e conseqüentemente os múltiplos padrões de disparo das células ciliadas para o nervo auditivo, bem como os padrões de ativação do córtex, são considerados por Gibson (1966, p. 271) como atividade de ressonância auto-sintonizada entre o sistema perceptual e o meio-ambiente. A atividade de músculos como o estapédicoe o tensor do tímpano nos seres humanos dão mostra de que há um controle que não depende unicamente do percebedor, mas das condições que o meio-ambiente lhe possibilita. Tal evidência corrobora a noção de auto-ajuste e também de auto-organização[9], como já referido anteriormente.

Também a noção de controle motor é transformada a partir da noção de auto-ajuste. De acordo com a tradição da abordagem do processamento de informação, o controle motor, as escolhas musculares necessárias para a execução musical são ações causadas pela mente de um sujeito, que precisa ser descrito como um sujeito cartesiano, separado do mundo, do próprio corpo, como uma espécie de homúnculo[10]. Se nos orientamos pela noção gibsoniana de auto-ajuste, a partir do acoplamento entre percebedor e meio, não há espaço para que o sujeito, como responsável absoluto por suas ações, se configure. O controle e as escolhas musculares e motoras são de responsabilidade do fluxo continuo entre percepção e ação, e do acoplamento mutualístico entre percebedor e meio. Não há ação de uma mente, existente independente do processo, que receba as entradas perceptivas, as processe e tenha como output, as escolhas de coordenações musculares para a realização musical. Para Varela et al (1991) também não existe um mundo pronto independente de uma mente que o perceba. A auto-organização é ação do sistema corpo-mundo ajustando a si próprio, não há um controlador externo ao sistema.

Uma vez que cognição é definida por Varela et al (1991) como atuação: uma história de acoplamento estrutural que produz um mundo, e que funciona por meio de uma rede consistindo de níveis múltiplos de sub-redes sensório-motoras interconectadas, a cognição musical pode ser descrita como uma história de condutas motoras orientadas pela audição. É importante notar que aquilo que entendemos aqui como conhecimento musical envolve em primeiro lugar a experiência musical e a reflexão como conseqüência dessa experiência. Nesse sentido a música será relatada como parte do mundo produzido por essa história de acoplamentos entre um corpo que age orientado pela história de escutas dos resultados de suas ações e um mundo que é o resultado dessas ações e fonte para suas novas orientações.

Esperamos que fique claro o papel do conhecimento sobre música na constituição daquilo que denominamos cognição musical. Ele orienta a ação em tempo real e a história de suas orientações constitui-se no desenvolvimento de hábitos de execução musical e de auto-ajuste nessa execução. Assim, tal conhecimento sobre música é também fundamento da orientação da experiência. Quanto àquilo que denominamos por conhecimento musical, ou experiencial, entendemos, como M.-Ponty, Gibson e Maturana,que constitui-se em objeto primeiro de todo o conhecimento sobre música.

 

 

  1. Possibilidades metodológicas em treinamento de execução musical a partir da perspectiva de conhecimento musical como enacção.

 

A partir da noção dualista-cartesiana é que se estabelece a possibilidade do paradoxo citado no início da primeira seção. A noção de cognição musical como enacção não permite afirmar que há desenvolvimento cognitivo musical se o acoplamento entre percepção e ação não tem como resultado de seu fluxo a produção musical adequada. Quando o aluno afirma que sabe a música, todavia não consegue a execução adequada, de acordo com a nossa abordagem, ele conhece diversos aspectos sobre música e não alcança a experiência, que é o fundamento do próprio conhecimento sobre música. Nesse sentido, mesmo o seu conhecimento sobre música é carente de fundamento epistemológico, uma vez que, tal conhecimento é expressão segunda da experiência[11].

Se por um lado nossa abordagem abandona a possibilidade de tal paradoxo, por outro ela amplia o conjunto de ações possíveis integrando a experiência do fenômeno musical e a sua descrição como cognição musical. Na tradição do ensino de música a experiência encontra-se geralmente desvinculada da descrição, ou daquilo que muitas vezes denomina-se por reflexão e tal fato fica explícito na constante divisão e desintegração entre matérias denominadas como: teóricas e práticas.

O aspecto metodológico central que apontamos no presente estudo diz respeito à ênfase no entendimento de matérias teóricas e práticas como complementares e como referentes aos dois estágios do ciclo percepção-ação. Não é o caso de entender percepção como teoria e ação como prática, mas sim propor uma nova descrição da cognição musical que não utilize conceitos como teoria e prática, uma vez que um depende diretamente do outro. Nessa nova abordagem a experiência musical e as possibilidades de descrição dela são relatadas nos termos da descrição do ciclo percepção-ação. Dessa maneira as atividades no ensino de música nas disciplinas relacionadas a percepção musical precisam valorizar a ação musical como parte integrante do processo gerador da própria percepção.

O que acontece no ensino tradicional nas disciplinas de percepção é que a ação motora, responsável pela execução instrumental, permanece fora do conjunto de atividades. Mesmo no caso do treinamento de leitura musical (solfejo) não há preocupação com aspectos musicais (cadências, frases, movimentos), mas apenas com aspectos locais[12], (leitura de notas, intervalos, acordes, células rítmicas, entre outros).

O mesmo princípio é válido para as disciplinas de execução instrumental. De acordo com a abordagem enaccionista de cognição musical deve-se sempre levar em conta que é a percepção a responsável pela orientação do controle motor. O que ocorre na tradição do ensino instrumental é que o foco da percepção auditiva fica direcionado à aspectos sonoros básicos, locais, como o som da passagem do segundo dedo para o terceiro dedo no piano, por exemplo. A abordagem proposta no presente estudo aponta para a necessidade da mudança do foco da percepção auditiva em direção à aspectos musicais, globais. Em outras palavras, a sonoridade da frase musical, que é o mais importante para o controle da ação, deve ser mais evidenciada do que a sonoridade da passagem de dedo a dedo.

A partir da concepção de conhecimento musical como enação acreditamos que é possível desenvolver procedimentos metodológicos no ensino de música que valorizam a experiência musical como produto e produtora do fluxo percepção-ação. Nosso estudo não teve como objetivo tratar exaustivamente de tais procedimentos metodológicos, mas sim oferecer o que acreditamos ser alguns dos princípios fundamentais de uma nova perspectiva no entendimento de cognição musical, a partir da concepção de conhecimento como a história das condutas de um corpo em um mundo.

 

4.Referências bibliográficas

Maturana, R. H. (1997) A ontologia da realidade.Belo Horizonte: Editora da UFMG.

M.-Ponty (1945/1996) Fenomenologia da percepção.São Paulo: Martins Fontes.

Varela, F; Thompson e Rosh (1991/2003) A mente incorporada – ciência cognitiva e experiência humana. Porto Alegre: Artmed.

Gibson, J. J. (1966) The Senses Considered as Perceptual Systems. Houghton Mifflin Company, Boston.

Gibson, J. J. (1979/1986) Ecological Approach to Visual Perception.: Lawrence Erlbaum Associates Publishers, Hillsdate.

Gonzalez, M. E. Q. A cognitive approach to visual perception. Londres, 182 f.Tese (Doutorado em Filosofia. University of Essex), 1989.

Kaplan, José Alberto. (1977). O ensino do piano. Pderações sobre a necessidade de umenfoque científico. João Pessoa: ed. Universitária.

Gainza, V. Fundamentos, materials y técnicas de la educacion musical. Buenos Aires: Ricordi, 1977.

Serafine, M. L. Music As Cognition: The Development of Thought in Sound. New York: Columbia University Press, 1988.

Bateson, G. Steps in ecology of mind. Ballantine: New York, 1972.



[1] Entre tais áreas, destacamos aquelas que se relacionam diretamente com o conceito de conhecimento musical: Educação musical, performance musical e musicologia em geral.

[2] Utilizamos o termo consciência para nos referir a alguém que sabe que sabe.

[3] Nos referimos às teorias do conhecimento que se utilizam da noção de representação mental como fundamento para as explicações acerca dos fenômenos relacionados à cognição.

[4] Entendemos enacção de acordo com o termo criado por Varela et al.(1991) enaction que pode ser traduzido como atuação.

[5] ver noção e programa da ciência cognitiva em Gardner 1985, ou Gonzales, 1989.

[6] van Gelder 1995; Beer, 2000; Bateson, 1972; Gibson, 1966, Maturana e Varela, 1994, Haselager, 1999...

[7] Estamos nos referindo à forma de representação simbólica e não ao conteúdo representacional.

[8] Estamos tratando de semelhanças pontuais entre Gibson, Maturana e Varela embora saibamos das divergências também pontuais entre eles.

[9] Nos referimos a teoria da auto-organização de acordo com Ashbi 1962, Maturana e Varela, 1980 e Debrum 1996a e1996 b.

[10] Especialmente os sentidos referidos nas obras de Gregory (1987): The Oxford Companion to Mind. Oxford University Press; e Ryle (1949): The Concept of Mind. The University of Chicago Press.

[11] ver citação do prefácio da "Fenomenologia da percepção" de M.-Ponty na primeira seção.

[12] Estamos nos referindo á dois níveis de análises distintos, um "local" próprio de cada um dos elementos do sistema; e outro "global", próprio dos aspectos resultantes do funcionamento do sistema através da inter-relação de seus componentes elementares.