Cidade real x cidade ficcional: literatura e memória coletiva como combustível para a construção política do espaço urbano
Por Ívna Mascarenhas e Abreu | 02/10/2019 | PolíticaIntrodução
- Por estes portos não serei capaz de traçar a rota no mapa nem fixar a data da abordagem. Por vezes basta-me um breve trecho que se abre no meio de uma paisagem incongruente, um aflorar de luzes no nevoeiro, o diálogo de dois transeuntes que se encontram durante as suas deambulações, para pensar que partindo dali juntarei peça a peça a cidade perfeita, construída de fragmentos misturados com o resto, de instantes separados por intervalos, por sinais que alguém manda sem saber quem os apanha. Se te disser que a cidade para que tende a minha viagem é descontínua no espaço e no tempo, ora mais dispersa ora mais densa, não acredites que possa deixar de procurála. Talvez enquanto falamos esteja a aflorar esparsa dentro dos confins do teu império; podes localizá-la, mas da maneira que eu te disse. (CALVINO, 2003, p. 165).
O enxerto acima, retirado do último diálogo que Marco Polo tem com o Imperador Kublai Kan, na obra do escritor italiano Ítalo Calvino, “As cidades invisíveis”, diz respeito à procura da cidade perfeita, aquela que, para ele, é formada por um conjunto de fragmentos que juntos, formam a silhueta de algo que, sólido, é descontínuo no espaço e no tempo. Assim, Marco Polo nos presenteia com uma imagem, a imagem de uma cidade qualquer - ou de todas as cidades, se preferir. Mas, esta cidade-imagem/imagem-cidade, cujas luzes afloram no meio de paisagens incongruentes sob um nevoeiro, fluida, efêmera, revela algo sobre as cidades reais, aquelas em que bilhares de indivíduos enfrentam todos os dias: as cidades se modificam no tempo e no espaço. Dado que as cidades são uma construção humana, e que transformação e mudança são inerentes à nossa condição, as cidades se desenvolvem, se dinamizam e são, pois, constantemente (re)construídas todo o tempo, são, dependendo da época, do contexto em que se encontram, “assim ou assado“. Desse modo, poderíamos inferir que, no presente, toda cidade é um conjunto de cidades ocultas, um palimpsesto, incrustadas de memórias, marcas e imagens do passado (NICOLATO, 2002). Assim, estas imagens do passado podem estar visualmente materializadas na arquitetura, nos monumentos, no traçado das ruas, podem ser vistas, mas só realmente dão lugar à cidade do passado quando lidas e interpretadas. A escrita da história das cidades, mesmo quando ficcionada, pode ser uma forma de trazer a tona este entrelaçamento entre ver e ler o espaço, pois, na rememoração de uma cidade, como o faz o personagem Marco Polo ao descrever a Kublai Kan as cidades de seu reino, e, portanto, Calvino, ao descrever suas “cidades invisíveis”, há um reavivamento de elementos que caracterizam o espaço a partir de sua (re)vivência através da memória que “é como se as sucessivas e antigas transformações se tornassem aparentes e eternas” (NICOLATO, 2002, p. 11) tanto no momento em que o autor escreve o seu texto quanto naquele em que o leitor o interpreta: Recuperar a cidade do passado implica, de uma certa forma, não apenas registrar lembranças, relatar fatos, celebrar personagens, reconstruir, reabilitar ou restaurar prédios, preservar materialmente espaços significativos do contexto urbano. Todo traço do passado pode ser datado através do conhecimento científico, ou classificado segundo um estilo preciso, mas o resgate do passado implica em ir além desta instância, para os domínios do simbólico e do sensível, ao encontro da carga de significados que esta cidade abrigou em um outro tempo. Ao salvaguardar a cidade do passado, importa, sobretudo, fixar imagens e discursos que possam conferir uma certa identidade urbana, um conjunto de sentidos e de formas de reconhecimento que a individualizem na história. (PESAVENTO, 2005, p. 11). Dessa forma, Calvino, ao retratar a história de 55 cidades a partir da rememoração do personagem principal, nesta obra, está a ligar, intimamente e de uma forma sensível, a temática das cidades ao ato de recordar, à memória, e à imagética da cidade, isto é, às imagens possíveis que são formadas através da junção dos diversos fragmentos relevantes que, combinados, informam e delimitam a história das cidades. Entretanto, a relação entre cidade e memória e desta com a literatura é vasta, e vai além das representações que podemos encontrar no texto de Calvino. Assim, ao longo deste trabalho se discutirá como se dão, mais propriamente, as relações entre cidades (espaços urbanos), a memória e a literatura, para, ao fim, novamente, localizá-las na obra deste autor. A memória e o espaço Memory is social because every memory exists through its relation with what has been shared with others: language, symbols, events, and social and cultural contexts. [...] We remember as members of social groups, and this means assuming and internalizing the common traditions and social representation shared by our collectivities. Memory cannot be removed from its social context (MISZTAL, 2003, p. 11 - 12). A memória e o espaço estão relacionados porque este trás em si as impressões do passado. De acordo com o trecho acima, a memória não é algo que somente está presente na esfera individual, a memória é social porque é compartilhada por membros de um grupo, os quais compartilham entre si a linguagem, os símbolos, os valores e a memória do passado que os caracteriza. A memória é social porque nos dá o senso de continuidade e nos liga a uma comunidade de pertencimento. Dessa forma, os indivíduos, ao modificarem o espaço e o contexto em que vivem, deixam neles marcas de sua história. Assim, lugares, paisagens, monumentos, ruínas e a própria arquitetura possuem um papel relevante na preservação e na manutenção da memória dos grupo e essa organização que esta toma no espaço, ou a partir dos objetos, nos leva a crer que, além de ligada ao contexto social, também se liga aos lugares de uma forma que só é plenamente percebida quando envolve o nível sensorial (MISZTAL, 2003). De fato, Misztal (2003) nos lembra que Halbwachs já chamava a atenção para este fenômeno, isto é, não importa quantos grupos diferentes possam existir que, para cada grupo social, haverá uma forma distinta de apresentar-se e representar-se no espaço deixando nele sua impressão. Assim, a partir destas marcas deixadas no espaço, as quais sempre carrega-se consigo, podemos relembrar fatos do passado, os quais nos vem à memória pelo simples fato de saber como aquilo está preservado no terreno, de forma que este serve, então, como suporte deste passado. Cada grupo, portanto, para este autor, intervêm e transforma o lugar que o rodeia de forma a compor um quadro que nos ajuda a recuperar e fixar aquilo que ele nos relembra, demonstrando, enfim que a memória é trabalhada, neste sentido, como uma impressão que remodela a topografia (MISZTAL, 2003). Já em relação ao espaço urbano, Misztal (2003) menciona outro autor que estuda a relação entre memória e este espaço propriamente. Para Benjamin’s (1968), diz a autora, a relação entre paisagem e cidade se dá na medida em que esta serve como um armazém de memória de seus habitantes. No espaço urbano, o passado está constantemente em aberto, sendo, portanto, contestável, de forma que esta paisagem é, na verdade, um campo de batalha e de negociação entre as múltiplas vozes que reverberam neste território. Em última instância, a cidade pode ser vista como um “topógrafo da memória coletiva onde as construções são símbolos mnemônicos que podem revelar passados escondidos e esquecidos” [BENJAMIN’S (1968) apud MISZTAL (2003), p. 16, tradução livre]. Assim, apesar da cidade enterrar e cobrir milhares de histórias reais sob a visão de passado que está estampada em si, a leitura e audição mais acuradas poderão encontrar, no espaço, as verdadeiras memórias ai encobertas no tempo, o que influencia as interpretações de passado que os próprios habitantes têm de si. Dessa forma, cidade e a memória estão também inter-relacionadas de tal maneira que na medida em que a memória (re)modela a cidade, esta também (re)modela aquela (MISZTAL, 2003). A cidade e a imaginação Depois de passar seis rios e três cadeias de montanhas surge Zora, cidade que quem a viu uma vez nunca mais pode esquecer. Mas não por ela deixar como outras cidades memoráveis uma imagem fora do comum nas recordações. Zora tem a propriedade de ficar na memória ponto por ponto, na sucessão das ruas, e das casas ao longo da ruas, e das portas e das janelas das casa, embora não apresentando nelas belezas ou raridades particulares. O seu segredo é o modo como a vista percorre as figuras que se sucedem como numa partitura musical em que não se pode mudar ou deslocar nenhuma nota. [...] Mas foi unitilmente que parti em viagem para visitar a cidade: obrigada a permanecer imóvel e igual a si própria para melhor ser recordada, Zora estagnou, desfez-se e desapareceu. A Terra esqueceu-a. (CALVINO, 2003, p. 19-20). De acordo com Pesavento (2007), as cidades possuem diferentes dimensões iconográficas. Mas a autora sublinha três, em particular, que compartilham e dão sentido à relação entre a cidade e a imaginação. São elas: a dimensão material, a dimensão social e a dimensão sensível, as quais serão explanadas adiante. Sabemos, como já mencionado neste ensaio, que a cidade é, sobretudo, uma materialidade construída pelo homem, é uma ação humana sobre a natureza e, nesse sentido, possui uma natureza própria: seja por sua verticalidade e pela arquitetura das edificações, seja pela densidade do uso do espaço, seja pela malha viária à entrecruzar-se em seu mapa. Por essa materialidade a reconhecemos em oposição ao fenômeno rural, por exemplo e temos representada a imagem iconográfica de sua dimensão material (PESAVENTO, 2007). No entanto, a cidade é também sociabilidade: ela é habitada e, por isso, comporta atores, relações sociais, personagens, grupos, classes, práticas de interação e de oposição, ritos, festas, comportamentos e hábitos. Tudo isso registra uma ação social também de domínio e transformação do espaço natural no tempo. É por isso que, ao lado das imagens icônicas da materialidade urbana, há toda uma outra linha de representação que exibe a cidade através da sua população, com seus movimentos, sua presença e sua diversidade, formando imagens ora tranqüilas, tenras, simpáticas, ora distorcidas, caóticas e terríveis (PESAVENTO, 2007). Mas a cidade é, ainda, sensibilidade, é, por excelência, um fenômeno cultural, ou seja, integrada a um princípio de atribuição de significados ao mundo. O fenômeno urbano se constitui a partir do compartilhamento de valores que o caracteriza. A cidade é, então, um lugar de produção de imagens e de discursos que se apresentam pela conjugação de sua materialidade e sociabilidade, representando-os. Assim, a cidade é, em si, um fenômeno à parte, constituindo-se de uma alma que revela emoções, sentimentos, expressão de utopias, de esperanças, de desejos e medos dados pelo viver urbano de seus indivíduos e pela coletividade que a habita (PESAVENTO, 2007). Ainda, se a cidade é sensível, a cidade sensível é uma cidade imaginária, pois a cidade sensível é aquela responsável pela atribuição de sentidos e significados ao espaço e ao tempo em que a cidade se encontra. As imagens da cidade são, assim, representações, factíveis ou não, baseadas na cidade existente, são os retratos que tiramos, em um dado momento, e que, ao interpretá-los sensivelmente, estes nos mostram um desenho mais fino, sob aquela materialidade, à qual atribuímos sentido e que se apresenta ligeiramente, ou profundamente, modificada. E aqui retornamos à idéia de que a cidade sensível, ou imaginada, é aquela composta pelas diversas imagens do passado, da onde, o ato de atribuir significado ao espaço é também um ato de rememoração. Daí a imagem do palimpsesto apresentada na introdução deste trabalho: um desenho que, não importa quantas vezes for apagado e redesenhado, sempre conterá, em sim, os traços, as marcas, os riscos esquecidos (PESAVENTO, 2007). . Portanto, as cidades, quando pensadas pela ótica do sensível, são todas sonhadas, desejadas, temidas, odiadas; inalcançáveis ou terrivelmente reais, mas que possuem essa força do imaginário, pois o imaginário é um motor de ação do homem de atribuição de significados à realidade, é o elemento responsável por sua criatividade que, pode tanto resultar em obras concretas, como aquelas da arquitetura, por exemplo, quanto pode resultar em obras que enveredam pelo pensamento e pela utopia, desembocando naquelas da literatura. Literatura e memória Memory is the experience of the past mediated by representation, so it is the construction of images that puts memories before our eyes and which reveals what experience means. [...] Memory and imagination are interconnected through their respective roles in assigning and reading meanings, as memory is crucial to our ability to sustain a continuity of experience, and this sense of continuity is essential for understanding the world, while our imaginative thinking is based on our ability to make the world intelligible and meaningful (MISZTAL, 2003, p. 119). Se a memória pode ser vista como um ato de imaginação, literatura e memória estão intimamente ligadas na medida que literatura é, em si, uma ato de imaginação. (MISZTAL, 2003). De acordo com Neumann (2008), se colocamos a premissa que a literatura é parte de um sistema simbólico aberto em que se dá o processo no qual os indivíduos dão sentido a sua cultura, a análise literária, no que concerne sua relação com a memória, deve levar à conclusão de que o texto literário pode apresentar informações sobre a concepção mnemônica predominante em uma cultura. A literatura representaria, portanto, um discurso integrativo na medida em que partilharia com outros sistemas, como o jurídico, a historiografia, a religião, etc., o desenho da memória que já circula nesta cultura. Assim, no texto literário as idéias mnemônicas predominantes vem trabalhadas de uma forma esteticamente condensada a partir da técnica utilizada, o que implica que, em cada época, este texto traria variantes históricas e pistas interpretativas para o entendimento do contexto social em que foi produzido e, por isso, da memória compartilhada nesta época. Literatura, seria, então, uma fonte de representação dos mundos particulares de determinada cultura, os esteriótipos que ela contém, sua transformações no tempo e no espaço, os conflitos mnemônicos pela qual passa e, dessa forma, condensaria a realidade transformada em ficção, em imaginação (NEUMANN, 2008). Por outro lado, por ser mesmo uma realidade transformada, literatura nunca é uma repetição do discurso mnemônico cultural predominante, mas sim, uma representação proativamente trabalhada deste discurso, que pode engendrar novos discursos, fazendo parte, de uma forma criativa, de suas negociações. Ainda, de acordo com Neumann (2008), quando as obras literárias trazem em si múltiplas e incompatíveis versões do passado, elas mantêm vivas os conflitos que determinam o que e como este passado deve ser (re)lembrado. Dessa forma, estudos têm apontado que a literatura, a partir de seus padrões estilísticos e sua trama literária, nos servem de base, como um modelo, para uma autonarrativa e interpretação do passado quando olhamos para as nossas próprias experiências. Consequentemente, ao disseminar novos interpretações de passados ou novos modelos de identidade, a literatura pode, simbolicamente, dar suporte às memórias marginalizadas ou esquecidas, empoderandoas, desempenhando, pois, um papel de “contradiscurso imaginativo“ (NEUMANN, 2008 , p. 341, tradução livre). Por fim, Lachmann (2008) nos lembra que, quando relacionamos memória à literatura, nos deparamos com a premissa de que todo texto literário têm nele incorporado a “intertextualidade”. Como escrever é tanto um ato de rememoração quanto um ato de (re)interpretação e todo texto reflete as concepções de memória de uma cultura, há, em um certo nível, uma relação recíproca entre este texto e todos os outros textos produzidos por essa cultura. Indo além, como a escrita é um ato criativo, esta intertextualidade pode ser apresentada não somente com os outro textos de uma mesma cultura (literários ou não), mas também com outros textos de outra culturas, na media em que a escrita é um ato de convergência ou divergência, assimilação ou repulsa, consubstanciação ou fragmentação em que o escritor alude, cita, parafraseia, parodia de várias formas diferentes estes outros textos. A intertextualidade demonstra, portanto, que a literatura pode ser vista como um livro de cultura que, em um processo dialético, continuamente é reescrita e redefinida na medida em que também ajuda à reescrever e redefinir a cultura que representa (LACHMANN, 2008). Assim, como diz Misztal (2003), entre memória, imaginação, história e ficção, não há separação. Cidade e memória no texto de Ítalo Calvino Nada garante que Kublai Kan acredite em tudo o que diz Marco Polo ao descrever-lhe as cidades que visitou nas suas missões, mas a verdade é que o imperador dos tártaros continua a ouvir o jovem veneziano com maior atenção e curiosidade que a qualquer outro enviado seu ou explorador. [...] Só nos relatos de Marco Polo, Kublai Kan conseguia discenir, através das muralhas e das torres destinadas a ruir, a filigrana de um desenho tão fino que escapasse ao roer das térmitas (CALVINO, 2003, p. 9-10). Em “Cidades Invisíveis”, Ítalo Calvino apresenta os diálogos que Marco Polo tinha com o imperador Kubali Kan, quando retornava de suas viagens pelo reino e contava sobre as cidades que havia visto. Como vemos no enxerto, “nada garante que Kublai Kan acredite em tudo que diz Marco Polo”, mas, é justamente pelo jeito que este viajante descreve-lhe as cidades em que esteve que prende sua atenção. Isto se deve porque, como nos conta Calvino, Polo utilizava-se não somente das palavras, mas de gestos, objetos e tudo aquilo que estava a seu alcance para que pudesse repassar a Kan as imagens e os detalhes que rememorava das 55 cidades que descreve. Assim, nesta obra de Calvino, temos a descrição de 55 cidades as quais estão divididas de acordo com a temática que caracteriza cada uma delas. Tem-se, então, 11 temáticas, quais sejam: 1) as cidades e a memória; 2) as cidades e o desejo; 3) as cidades e os sinais; 4) as cidades sutis; 5) as cidades e as trocas; 6) as cidades e os olhos; 7) as cidades e o nome; 8) as cidades e os mortos; 9) as cidades e o céu; 10) as cidades contínuas; e 11) as cidades ocultas. À medida que Polo descreve as “cidades invisíveis” à Kan, o discurso do viajante vai sendo entrecortado pelos diálogos entre os dois personagens e as apresentações feitas por um narrador, das formas, modos e dos espaços em que se dão estas conversas. Assim, além do leitor acompanhar as descrições em si, elas vão sendo enriquecidas a partir das reflexões e entendimentos que um personagem tem do outro e de todo o discurso apresentado. Neste ponto, é importante lembrar que este romance ficcional de Calvino se baseia em uma história real, a história de Marco Polo contada por Rustichello da Pisa em Il Milione, conhecido como a biografia deste comerciante e viajante veneziano que, durante a segunda metade do século XIII, viajou pela Ásia, Persa, China e Indonésia e, supostamente conheceu o grande imperador mongol Kublai Kan, tornando-se um importante informante e desempenhando papel chave nas suas decisões. Mas talvez, também estas histórias verídicas de Polo não seriam somente estórias que o mercador ouviu ao longo de suas viagens e recontou a Rustichello? À parte esta ironia, relembramos que o romance de Calvino, que conta uma história fictícia a partir de uma suposta história verídica, é construído com base na memória. As “cidades invisíveis” à Kan vão surgindo em sua cabeça à partir da descrição de Marco Polo das sua memórias de cada cidade. Para além disso, a memória também é, neste romance uma temática. No enxerto a seguir, uma das descrições de Polo sobre a cidade de Zaira, enquadrada na temática “as cidades e a memória”, podemos perceber como Calvino trabalha a idéia, já demonstrada neste trabalho, da relação entre o espaço e a memória e, como, poeticamente ele ilustra esta relação tão concretamente nesta cidade: As cidades e a memória . 3. Inutilmente, magnânimo Kublai, tentarei descrever-te a cidade de Zaira de altos bastiões. Poderia dizer-te de quantos degraus são as ruas em escadinhas, como são as aberturas dos arcos dos pórticos, de quantas lâminas de zinco são cobertos os telhados; mas já sei que seria o mesmo que não te dizer nada. Nãos é disto que é feita a cidade, mas sim das relações entre as medidas do seu espaço e os acontecimentos do seu passado: a distância a que está do solo um lampião e os pés a balançar de um usurpador enforcado; o fio estendido do lampião à varanda da frente e os arcos que enfeitam o percurso do cortejo nupcial da rainha; a altura daquela varanda e o salto do adúltero que a galgava de madrugada; a inclinação de uma goteira e o pulo de um gato que entra pela janela; a linha de tiro do navio bombardeiro que apareceu de repente por detrás do cabo e a bomba que destrói a goteira; os puxões das redes dos pescadores e os três velhos que sentados no cais a remendar as redes contam uns aos outro pela centésima vez a história do navio bombardeiro do usurpador, de quem se diz que era filho ilegítimo da rainha, abandonado à nascença ali no cais. É desta onda que reflui das recordações que a cidade se embebe como uma esponja e se dilata. Uma descrição de Zaira tal como é hoje deveria conter todo o passado de Zaira. Mas a cidade não conta o seu passado, contém-no como as linhas da mão, escrito nas esquinas das ruas, nas grades das janelas, nos corrimões das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos postes das bandeiras, cada segmento marcado por sua vez de arranhões, riscos, cortes e entalhes (CALVINO, 2003, p. 14-15). Como podemos ver, neste descrição de Zaira fica clara a relação da memória com o espaço, pois a cidade se embebe e se dilata a partir das recordações dos seus habitantes, sua memória, seu passado, está contido tanto nas “linhas da mão”, no seu traçado, na arquitetura de suas casas, está marcado nos “arranhões, riscos, cortes e entalhes”. Isto é informado já logo no início, quando Polo diz que Zaíra é feita “das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado”, montando, a partir daqui, as imagens da cidade que vão distingui-la das outras cidades, pois são compostas realmente a partir dos espaços e das relações sociais que ali se dão. Mas Zaira, assim como as outras 54 cidades descritas por Polo, podem ser vistas como, mesmo que recheadas de características singulares, arquétipos de todas as cidades ou de uma só. Este paradoxo é montado por Calvino, e é compreendido ao final, a partir dos sussurros daquilo que, distribuído pelos 11 temas abordados, é comum a cada uma delas: “a filigrana de um desenho tão fino que escapasse ao roer das térmitas”. Este susurro, que entrecorta o discurso permeado pelas imagens construídas tanto na cabeça de Polo quanto de Kan, por sua memória e imaginação, pode ser escutado mesmo que haja, em todo os relatos, uma riqueza de detalhes que compõe o retrato de cada uma delas. Por isso, podemos dizer que, como dito na introdução, a leitura de “Cidades Invisíveis” nos remete a várias cidades, ou se preferir, a uma em especial, a que surge em sua imaginação a partir de uma bivalência que se constitui tanto por este paradoxo, quanto pela figura do palimpsesto que Nicolato (2002) recorda, das várias cidades, reconhecíveis e recuperáveis, no tempo, daquela cidade do passado que sobrevive sob a cidade do presente. Por fim, voltando-nos para uma interpretação mais literária da obra, já percebe-se que intertextualidade é algo evidente, pois, trata-se de um romance ficcional baseado numa história real, ou que, pelo menos, já tenha sido abordado em outro livro, como já mencionado, No entanto, de que maneira Calvino, neste livro, reproduz sua cultura e, por isto, os valores culturais que trás consigo em relação às cidades quando conta-nos a história destas 55 cidades? Podemos inferir que, voltando-se para a época em que os personagens se encontram e o contexto que os circunda, as cidades que Marco Polo relata a Kan não parecem muito representações de cidade orientais da época, isto é, do século XIII, mas nos remete às construções urbanísticas das cidades européias medievais. E se, ao invés de relatar estas diversas cidades, Marco Polo só fazia alusão às diversas facetas de uma mesma cidade? A Veneza de sua época, da qual ele estava tão longe quando freqüentava a corte de Kan? Ou ainda, ao dizer de “Cidades Invisíveis”, Calvino não quer que seus leitores estejam mais atentos ao espaço que os circundo, abrindo-lhes os olhos para as diversas leituras que uma cidade pode oferecer e para os diversos passados que ela pode esconder? Estas seriam apenas hipóteses que, claro, mereceriam e devem ser mais profundamente estudadas, mas isto já é um outro, maior e mais aprofundado, trabalho de análise literária. Referências CALVINO, I. Cidades Invisíveis. Editorial Teorema: Lisboa, 2003. LACHMANN, R., Mnemonic and Intertextual Aspects of Literature. In: (ed.) ERLL, A. e NÜNNING. A., Cultural memory studies: an international and interdisciplinary handbook. Walter de Gruyter : Berlin-New York, 2008. MISZTAL, B. Theories of Social Remembering. Open University Pess: MaidenheadPhiladelphia, 2003. NEUMANN. B., The Literary Representation of Memory. In: (ed.) ERLL, A. e NÜNNING. A., Cultural memory studies : an international and interdisciplinary handbook. Walter de Gruyter : Berlin-New York, 2008. NICOLATO, R. Literatura e cidade: o universo urbano em Dalton Trevssam. Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Estudos Literários, Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 2002. Disponível em: http://dspace.c3sl.ufpr.br:8080/dspace/bitstream/handle/1884/24500/D%20- %20NICOLATO%2c%20ROBERTO.pdf?sequence=1. Acesso em: 29 nov. 2012. PESAVENTO, S. J., Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. In: Revista Brasileira de História, vol. 27, nº 53, p. 11-23. São Paulo: junho de 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbh/v27n53/a02v5327.pdf. Acesso em: 27 nov. 2012. [...]