Ciclo da borracha da mangabeira

Por Ivan Brscan | 21/12/2009 | Adm

*Josué Francisco da Silva Junior

*Raquel Fernandes de Araújo Rodrigues

 

Quando se fala no Jalapão, aquela região de paisagem cinematográfica guardada no leste do Estado do Tocantins, logo vem à cabeça (e aos olhos, sobretudo) o cerrado selvagem, repleto de cachoeiras, veredas, dunas, emas e capim-dourado. Foi exatamente com isso e muito mais que uma equipe de cientistas da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e da Universidade Federal do Pará (UFPA) deparou durante uma expedição à região, em busca das áreas naturais de ocorrência da mangabeira no Brasil Central para conservação dos seus recursos genéticos. Isso mesmo, a planta que dá a frutinha que faz a delícia dos moradores do litoral do Nordeste também ocorre no cerrado, mas não é lá tão aproveitada. A razão é que o seu uso não é exatamente para a finalidade que se pensa, como veremos mais na frente.

Para descobrir isso, subimos serras e chapadas, cruzamos rios, atravessamos cerrados, cerradões e campinas, e enfrentamos estradas de areia que parecia estarmos andando em dunas. Topamos com magníficas mangabeiras eretas no platô da Serra do Espírito Santo, retorcidas na Chapada das Mangabeiras, isoladas no Capão e bosques delas em Novo Acordo, um dos quatro municípios esmiuçados (os outros foram Mateiros, Ponte Alta do Tocantins e São Félix do Jalapão). O saldo disso? Muitas populações naturais mapeadas, várias entrevistas, inúmeras surpresas (às vezes boas, como as diversas unidades de conservação criadas na região, outras nem tanto, como as gigantescas lavouras de soja e milho cercando o Jalapão) e uma (re)descoberta...

 Já sabíamos que o lobo-guará adora mangaba, que ela gosta de sol e de solo fraco (areia e pedra), que as populações tradicionais usam o seu látex para remédio e que um dia esse “leite” foi usado (isso já desde o final do século XIX) para a fabricação de um tipo de borracha exportado durante e após as duas guerras mundiais. O que não estava no roteiro (ou até estava, mas encarávamos como um prêmio) foi o encontro com os lendários “mangabeiros”, que trouxe à baila inúmeras histórias sobre o período conhecido como “Ciclo da Borracha de Mangabeira”, em cujo apogeu floresceram cidades como Formosa do Rio Preto, Santa Rita de Cássia, Barreiras e São Desidério (BA); Januária (MG); Corrente (PI); Porto Nacional (TO) e muitas outras. Os “mangabeiros” eram a população (normalmente de homens, mas algumas mulheres da vanguarda da época também praticavam) que vivia do extrativismo do látex da planta nos cerrados de mangabal (com o “l” final bem pronunciado no melhor sotaque do Jalapão).

 O “garimpo da mangaba”, como era conhecida a exploração das mangabeiras nativas para extração do látex, foi durante décadas a mais importante atividade econômica daqueles “gerais” e era tão lucrativa que, como se viu, tinha até o nome de “garimpo”. Foi fonte de sustento para inúmeras famílias e fez nascer povoações nos lugares mais remotos. “Mangabar” era o verbo que designava o trabalho duro, mas prazeroso, como afirmou Seu Domingos Ribeiro, filho, neto e ele mesmo “mangabeiro”. Maravilhosa mesmo foi a sua descrição sobre a arrumação de um “mangabeiro” ― “Eita arrumação feia!”, disse com sua graça peculiar e simpatia típica dos “jalapoeiros”. Colocavam o cofo (bolsa de palha de buriti) nas costas, carregado com a “lega” e o “trisco” (instrumentos para “riscar” a planta), copos de flandres, cabaças e panelas. Vestiam-se de roupas velhas, “alpercata de três pontos” e “carocha” (capa de folha de buriti).

 Uma equipe boquiaberta (era assim que ficávamos a cada história que ouvíamos) e emocionada via surgir um passado registrado somente na memória de alguns senhorinhos, hoje com mais de 80 anos. Pegamos o túnel do tempo para uma viagem às décadas de 1940 e 1950, quando nos deparamos com tropeiros, saindo antes do sol nascer, conduzindo jumentos e burros e carregando mantimentos para passar semanas no cerrado, “riscando” os pés de mangaba para extração do “leite” que escorria até os copos de flandres. Bom mesmo era quando o entardecer chegava, pois era hora de voltar ao acampamento feito de folha de buriti, naturalmente. O trabalho continuava, mas agora era regado a uma cachacinha. O látex era despejado numa panela de ferro e levado ao fogo para coalhar e virar uma grande bola de borracha. Depois era só pisar até virar uma “manta”.

Com o tempo e o fim da Segunda Guerra, a atividade entrou em decadência ¯ borrachas de seringueira de excelente qualidade e maior rendimento tomaram o lugar da de mangabeira. Alguns “jalapoeiros” ainda confeccionam maravilhosas bolas de brinquedo a partir do “leite”, mas “mangabar” virou um verbo que não se conjuga mais e os “mangabeiros” ficaram apenas na saudade de pessoas como Seu Tomé, Seu Tonico, Seu Olavo e, claro, Seu Domingos.



* Os autores são, respectivamente, pesquisador e analista da Embrapa Tabuleiros Costeiros (Aracaju, SE). Além deles, participaram da expedição os pesquisadores Dalva Maria da Mota, da Embrapa Amazônia Oriental, e Heribert Schmitz, da UFPA, ambas em Belém, PA.