Chico dá lição de vida com Geni
Por Edson Terto da Silva | 08/10/2010 | ArteEdson Silva
O contato com genialidade poética de letras de Chico Buarque de Hollanda não é missão que passa aleatoriamente, como se estivessemos só ouvindo uma canção descompromissadamente para nos distrair. Nas músicas de Chico, quando paramos, analisamos e pensamos nas letras encontramos entrelinhas e ensinamentos que, prá dizer a verdade, nem sabemos se o artista teve pretensão de ensinar alguma coisa, embora certamente ensine.
Ouvindo e lendo Geni e o Zepelim, aquela que se popularizou justo pelo mais chulo, como cuspir, jogar pedras e outras "coisas" na pobre coitada, achamos uma aula sobre a hipocrisia humana. Talvez o lado pejorativo da música prevaleceu, pois ela surgiu quando estávamos na transição do governo militar para a democracia civil, não tinhamos liberdade sequer de pensar, quanto mais de nos expressar e aparece o educado Chico falando "palavrão" em música, "horrorizando" a hipócrita sociedade burguesa.
Pois bem, aparentemente, a Geni da música é alguém de pouco pudor, amaldiçoada pela sociedade devido seu comportamento, julgado e condenado como promíscuo, embora, como diz a música, ser donzela era seu segredo. A genialidade de Chico coloca o fato de a moça já ter ido na morada e não ter sido namorada, como pensava o povo, das pessoas mais necessitadas, os vidas tortas, errantes, cegos, retirantes, dos que nada mais tinham na vida, evidenciar aos seus co-cidadãos ser ela, digamos, mulher da vida.
Quando, na verdade, a Geni da música é alguém que dá-se ao trabalho desde menina, atrás de tanque lavando roupa, ajudando em garagens, trabalhando em cantinas ou no mato, falamos de cidade pequena, estendendo roupas, por exemplo ! Essa doação a faz rainha dos mais necessitados, detentos, loucas, lazarentos, órfãos de internato, velhos sem saúde, viúvas sem provimentos. Por ser tal poço de bondade, julgado e condenado pela hipocrisia do povo, a moça é ironizada e hostilizada na cidade.
A situação prevalece até o dia que a cidade corre o perigo de ser aniquilada por dois mil canhões do enorme Zepelin que pairou entre nuvens, sob o comando de um vistoso, temido e poderoso comandante. A desigualdade vista motiva tal guerreiro optar pela destruição, explosão, de transformar em "geléia" todo horror e iniquidade vistos. Como na vida tudo tem porém, ele evitaria o drama se fosse compensado pela mais formosa dama do local, no caso para ele: Geni
O povo tinha a mulher como vulgar e não acreditou no que ouviu, ficou ainda mais apavorado ao saber que Geni, que eles tinham como a que dava pra qualquer um, tinha como segredo ser donzela. Ela tinha brio e capricho e a deitar com alguém tão nobre e rico, ela preferia até amar com bichos. Diante do que considerou heresia, o povo faz romaria e a então maldita Geni passa ser bajulada como bendita. Entre os pedintes para que salve a cidade unem-se bispo, prefeito e banqueiro, este oferecendo um milhão.
Ante a pedidos tão "sinceros", tão "sentidos" e vendo que a cidade que não a acolhia bem, mas que ela tanto amava, corria sério perigo, Geni dominou o asco e entregou-se ao guerreiro, como dá-se ao carrasco da morte. Cumprido o trato, o comandante retira-se com o Zepelin prateado e seu canhões. O riso aliviado de Geni e a tentativa de enfim descansar com sensação de dever cumprido, após tarefa tão ingrata, é interrompido por nova romaria dos cidadãos, não em agradecimento, mas para hostilizar a moça, afinal o perigo tinha passado, num claro gesto de ingratidão. Partindo de Chico Buarque, a arte imita a vida e vice-versa.
Edson Silva, 48 anos, jornalista, nasceu em Campinas e trabalha como assessor de imprensa em Sumaré. edsonsilvajornalista@yahoo.com.br/