Cérebro na varanda
Por Olivee | 07/02/2014 | CrônicasCérebro na varanda
Bateu com o cérebro na parede. Uma, duas, três vezes. E só para ter plena certeza de que não funcionava mesmo, conferiu e bateu pela quarta, quinta, sexta vez. Era o bastante. Há alguns anos havia se submetido a uma cirurgia. Moda de seu tempo, todos os jovens se sujeitaram a nova regra estética. Até que a moda finalmente chegou a uma encruzilhada: se firmava como cultura e parte do cotidiano ou perdia força até morrer, para, quem sabe, voltar daqui uns anos.
A onda de intervenções cirúrgicas foi tão espontânea que não havia explicação e nem cabelos, apenas cérebros expostos. Dias depois, notícias sobre as mortes mais banais começaram a se espalhar. Era farpa no lobo frontal, coceiras no lobo parietal. Se com cabeça já era difícil viver, sem ela então a vida piorou muito.
Bêbados e especialistas discutiam o assunto incessantemente. Não chegavam a um concesso sobre um procedimento, tão perigoso e sem sentido, encarado como normal.O que fizeram com estes cérebros antes de convencê-los que remover parte de suas cabeças seria algo viável?
Alguns pais, acusados de irresponsáveis, autorizavam e pagavam pela nova moda. Não queriam que seus filhos, ainda tão pequenos, sofressem com a exclusão da sociedade descabeçada.
Um a um, todos esses seres inovadores foram morrendo, até que restou ela. A única esquisita sem o topo do crânio de toda a sociedade. Teve a sorte de ter um cérebro mas duro do que a cabeça de vento que o envolvia.
Ainda estava de frente para o muro, pensando no que fazer quando uma criança passou atrás dela. Nem precisava se virar para saber que o pescoço da criatura estaria erguido, e seus olhinhos encaravam o cérebro ensanguentado e exposto. Era um ser estranho que toda a sociedade repelia. Como se meses atrás não estivessem aguardando vagas para fazer o que viam nela.
Começou a andar de volta para casa. Derrotada. O cérebro não queria morrer e o pior! Impedia que ela tentasse matá-lo. Parecia rir de cada tentativa dela, como se não fossem a mesma coisa. Devia ser sortuda, isso sim! Mas de uma maneira ruim.
Às vezes, acordava no meio da noite - não era fácil dormir sentada - pensando na cabeça perdida, vendida. Antes dos procedimentos serem proibidos - após o filho de uma das personas alto escalão padecer da moda - todos os crânios removidos foram utilizados para a confecção de bonecas humanas. O que vendeu feito água no deserto, lotado de turistas sedentos.
Conspiradores dizem que a espontaneidade cirúrgica não foi tão espontânea assim. As especulações iam de acordos milionários com a grande imprensa, que teria ajudado na formação da boa imagem da intervenção, à drogas de controle da mente, diluídas na água.
A última sobrevivente sabia que não fora nada disso que a levou a tal atitude. E ao mesmo tempo não entendia bem os porquês de ter feito aquilo consigo. Portanto, quando o pânico assaltou seu controle, ela deixou de se questionar para tentar sobreviver a outro dia. Pois, então sobreviveu demais. O suficiente para que todos os outros fossem antes de ela ter a chance de escapar.
Os olhares vinham de todo canto. Até os objetos pareciam olhar estranho para ela. Perguntava-se por que não a matavam logo? As propostas feitas para tentar amenizar as consequências foram ignoradas. Ninguém queria ajudar. Aquele era um capitulo da história da humanidade que decidiram deixar morrer e esquecer. O crânio de acrílico, ideia de um acrânio, agora morto, nunca foi levada em frente.
Decidida a ignorar os olhares repletos de ódio e repugnância, sentou-se num banco embaixo de uma árvore e escancarou o cérebro, não literalmente, em busca de uma solução.
Começou a perceber que da repugnância para a piedade é um passo. E decidiu que a partir de agora seria a vítima, não das próprias decisões, mas deles. Diria que a culpa de tudo aquilo era dos malditos padrões. E que os padrões eram culpa deles. Choraria se precisasse, contaria que perdeu mãe, pai e cachorro. Eles se sentiriam dó e seria mais fácil viver, embora fosse impossível que depois de quase dois anos ainda continuasse ali. Como não morrera? O ambiente era propício para cérebros? Deveria morrer só de poluição, ou de pó, de fumaça de cigarro. Mas continuava ali. Teria uma vida digna dali para frente e levantaria a voz em prol de direitos. Não era justo continuar assim. Lutaria pelos milhares de mortos e pela própria vida. Aquilo não poderia simplesmente ser esquecido. E ela não poderia viver sabe-se-lá quanto tempo mais sobre a mira repugnante daqueles olhos.
Matutava tanto sobre tantos porquês que nem ouviu o pássaro que cantava de um dos galhos da árvore. Matutava tanto que nem sentiu quando a merda do pássaro cantor atingiu em cheio o lobo parietal. Quando aquilo escorreu, ela já estava morta.
- Olivee
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