Catulo e o advento de uma nova poética em Roma

Por Rafael Henrique de Matos | 31/08/2016 | Literatura

Por Rafael Henrique de Matos

Introdução

Não raramente ao se ouvir falar de Catulo uma assertiva de Cícero entra em cena: “O poetam egregium! Quamquam ab his contoribus Euphorionis contemnitur”[1] (Ó poeta fora de série! Embora seja desprezado por esses “cantores de Euforião”). Cícero aqui expressa seu desprezo por Catulo e seus pares que se põem de lado oposto ao bom conceito de poética empregado por Ênio[2], assim os acusa de neóteroi (juvenis) e posteriormente cunhará o termo poeta noui (poetas modernos)[3] pelo qual Catulo e seus companheiros serão conhecidos.

  A partir desta invectiva de Cícero podemos compreender as questões que rondaram o fazer poético dos poeta noui, eles que em um período de transição e influenciados pela poesia helenística[4] desfizeram os vínculos (temáticos e estilísticos) com o passado literário romano (representado principalmente por Ênio). Mas quem detém a razão neste querela de perfeição poética? Catulo ou Cícero, o moderno ou o conservador? É em busca dessa questão que analisaremos aqui o que é considerado o fazer poético (na visão de Horacio e Cícero) e como se estruturam os poemas de Catulo de acordo com tais preceitos, para que assim possamos ter uma visão mais ampla e esclarecida sobre o assunto.

O fazer poético

É através do texto Pro Archia poeta que podemos ter uma melhor visão sobre o que Cícero considera a boa poesia. Cícero vê em Arquias o exemplo de bom poeta, pois possuía não apenas talento literário mas também excelente caráter[5]. O encantamento por Arquias é por este escrever sobre questões que cultivam o espírito e beneficiam a coletividade[6], assim são poemas que incitam a moralidade e honra, que ao elevar a imagem dos antigos heróis servem de exemplo às novas gerações[7].

  Porém no trecho 16 do texto, Cícero, admite ser também digno de homens livres o deleite poético mesmo que seja por fruição estética. E o que diz Horacio a respeito do fazer poético?

  Tendo uma posição mais analítica e moderada do assunto, Horacio, anda acima de prejuízos e preconceitos. Diferentemente de Cícero (que elogia a poesia longa e “clássica”), Horácio considera positivamente o preceito da breuitas/brevidade (desde que não descambe em obscuritas/obscuridade)[8]. Também discursa Horácio a respeito da qualidade das palavras, pondo em contras as “escolas gramaticais” Analógica (apoiada por Cícero, indo contra a formulação de neologismos) e a Anômala (que admitia a introdução de novas palavras na língua)[9]. Horacio também não via problema no uso de neologismos, desde que com zelo e não em demasia, e diz ser a qualidade de um bom poeta saber diferenciar os tons/gêneros poéticos[10].  Ao discursar sobre os gêneros, Horacio os divide em hinos, encômios, poemas eróticos e os escólios.

  Assim, ao se por em choque as assertivas de Cícero sobre o que seria a boa poesia e a analise poética de Horacio chegamos a seguinte conclusão: Cícero considera como excelente apenas as poesias elevadas que se alinham a hinos (elogio aos deuses) e encômios (celebração de personagens de altas qualidades), relegando a um segundo plano (porem não dizendo ser de todo inútil, como visto anteriormente) os poemas eróticos (em que se canta o amor) e os escólios (prazeres da mesa e vinho). Cícero também, ao ir contra os poeta noui, vai contra a qualidade da breuitas pois, considerando de melhor qualidade os poemas épicos, considera de melhor qualidade os poemas longos (não se dando conta, como Horacio diz no verso 148 de sua arte poética, que a brevidade pode ser uma boa característica até em poemas épicos, como na Ilíada de Homero).

Catulo e o seu fazer poético

  Assim como evidenciado anteriormente as principais características da poesia de Catulo são a brevidade e um emprego anômalo das palavras (neologismos, diminutivos, vulgarismos e arcaísmos). Como nada em poesia se da por separado podemos dizer que estas características poéticas de Catulo estão presentes em complemento à uma outra característica: o intento do fazer poético fora do âmbito elevado e sua aproximação à esfera coloquial da vida (tanto nas ações quanto na fala).

  Catulo mesmo tendo um processo de fazer poético homogêneo, trata de temas bem variados. Entre seus poemas podemos qualificar alguns tipos de maior destaque: programáticos, ciclo de lésbia, sexualidade, amor e morte e os poemas políticos.

Poema I, a proposta poética de Catulo.

  No poema I temos uma espécie de condensação do que é em seu todo a poesia de Catulo: breve, coloquial, direta. Este é um poema programático[11], ou seja, um poema que discursa sobre o próprio projeto poético do autor, um poema que fala sobre a poesia e o seu fazer. Portanto presenciamos aqui as qualidades que Catulo considera imprescindíveis à poesia:

--  nouum libellum (livro novinho) à se distancia do modo tradicional do fazer poético, preza por novas qualidades. A utilização de termos em diminutivo é marca distintiva de Catulo, que os emprega não apenas nas composições mais simples, mas também nas mais elevadas (em questões temáticas). Usado como uma marca do estilo neotérico[12], o diminutivo também marca o traço de afetividade.

-- nugas (coisa sem importância) à ao denominar a própria poesia como uma mera “coisa” Catulo pretende dizer a qual âmbito sua poesia pertence, pertence às coisas simples e cotidianas da vida.

-- tribus explicare cartis (explicar em três volumes) à ao evidenciar a qualidade de Cornélio em compor apenas em três volumes uma história inteira da Itália, Catulo afirma a sua predileção pela qualidade de ser breve e claro, pois são “três volumes mui sábios...e laboriosos”

-- quare hube tibi quicquid hae libelli qualecumque (contigo então, leve, leva este, o que for, de livrinho) à ao pronunciar para Cornélio que leve consigo o livro, talvez Catulo esteja fazendo não apenas uma referência metafórica (levar em coração) mas também um referência física, já que à época do poeta despontava a forma escrita da poesia em detrimento da oralidade. A materialidade do livro proporcionava uma maior proximidade da platéia com a poesia, a forma escrita de propagação poética sintoniza-se perfeitamente com o ideal de Catulo, que pretende por uma poesia que viva no coração das pessoas muito mais que na memória (esforço mental dos que apreciam a poesia oral).

  Além das qualidades referidas acima também observamos nesse poema I, através da referencia e a figura de Cornélio, o tipo de audiência que Catulo almeja (despretensiosa, que aprecie a concisão) e o valor da amizade entre colegas poetas[13].

Amor e morte

  O que há de mais supérfluo e simples na vida (em relação a grauitas/gravidade que Cícero defende na poesia) do que o amor? Parte dos poemas de Catulo é dedicada a Lésbia, sua amada. Ao fazer de seus poemas uma espécie de diário, e relatar aos leitores suas paixões, Catulo está empregando um ar de novidade na poesia. Em seus pensamento e digressões sobre seu amor o poeta convida o leitor para participar de sua viagem emocional[14].

  Observando o poema 5 notamos a presença de algumas palavras chave: viuamus (vivamos), senum seueriorum (velhos mais severos), breuis lux (breve luz). Fazendo uma interpretação própria, a partir das qualidades dos poeta noui  e de Catulo, julgo aqui estar o poeta fazendo uma assertiva sobre quais temas lhe convém. O amor lhe convém como tema, e não importa a opinião dos tradicionalistas em relação ao seu fazer poético, pois curta é a vida e se deve aproveitá-la de forma gozosa, amando.

  Em Catulo a relação entre amor e morte se encontra, por vezes, bem próxima. No poema 68 temos os lamentos do poeta pela perda de seu irmão amado. E aqui poderíamos nos perguntar, tendo Cícero em mente, se elevada não é esta poesia de Catulo? O que há de mais elevado do que  honrar os mortos, quão honrada e nobre não é a tarefa de fazer viver nos versos a imagem de um homem bom ( mesmo que não seja figura publica)? Também presenciamos aqui as referências e alusões aos deuses e à textos míticos (Ilíada), assim o poeta que é acusado erroneamente de desprezar a tradição se mostra um propagador da mesma, porém apenas utilizando-a de forma diversa, de acordo com os novos modos de fazer poético (tema e estrutura).

Sexualidade

  Levaremos em conta agora os poemas 6 e 16 para ver de que formas diversas o poeta se usa da esfera sexual em sua poesia.

   No poema 6 Catulo convida Flavio a discursar sobre suas aventuras sexuais, a falar sobre a “puta” com a qual ele esta envolvido amorosamente e não omitir nenhum detalhe sórdido sobre o desenrolar do ato sexual. Até o verso 14 do poema parece haver um rebaixamento de Flavio e seus atos sexuais, já que nos cerca uma impressão de ataque, por parte de Catulo ao seu interlocutor, ressaltando o senso vexatório da situação ao explicitar a vergonha de Flavio em relatar o ato deselegante e evidenciar a parceira puta.

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